sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Um bom primeiro exercício

Quando a Chuva Parar toruxe-me à memória Os Afogados pela proximidado do mecanismo que os faz funcionar: uma conversa tida no carro, em viagem.
Diferenças à parte, como o facto de aqui apenas uma das personagens estar em viagem e a sua interlocutora estar na outra ponta de um telemóvel.
O diálogo é a essência de ambos. Mas onde no outro livro a descontextualização era o fenómeno principal, isolando o diálogo para que as opiniões, a geografia e a realidade fossem de um qualquer espaço europeu.
Aqui, pelo contrário, o contexto - sobretudo do que veio antes - é o essencial, pois o diálogo é o método pelo qual as personagens avançam de um estado para o outro. A viagem ajuda a tornar essa ideia de percurso pessoal a materializar-se, a tornar-se fisicamente mensurável em distância, tempo e velocidade.
O diálogo é um processo de clarificação e análise. Nada de novo nessa ideia, apenas o contexto muda. A viagem de carro e o telemóvel (os elementos destacados como sendo usados pela primeira vez num romance) limitam-se a formar um contexto distinto de uma tarde numa esplanada ou de uma consulta num psicólogo.
A viagem afecta o diálogo - é expressa preocupação acerca do excesso de velocidade e dos perigos de falar ao telemóvel enquanto se conduz - mas não fica incorporado nele, nem o transforma.
Não se gera a sensação de que o diálogo se altera com as transformações do caminho (difíceis, é verdade, visto que a viagem é quase toda por auto-estrada) ou com as particularidades do método da viagem. Afinal, há duas crianças no banco de trás, mas nenhuma chega sequer a parecer que vai acordar e fazer soar a sua voz entre a das duas amigas.
O diálogo tem um tom que não se altera. Depende apenas de quem o está a ter porque não chegam a existir circustâncias externas. Os elementos novos deste romance parecem contribuir, involuntariamente, para um encerramento do diálogo naquela pequena via de comunicação oral entre as duas amigas. Se estivessem ambas fechadas no carro, a simbologia do que escrevo seria ainda mais óbvia.
Não que o diálogo não tenha o seu interesse, tanto que se lê à mesma velocidade excessiva a que o carro vai. Até porque surge como um desperdiçado bom ponto de partida para marcar o tempo do romance, afectando-o da velocidade do carro e dos momentos de paragem - um reabastecimento de gasolina com a impaciência a nascer do outro lado da linha...
Expedito e realista, é uma expressão sincera daquilo em que se tornou o "amar português", de marialvas meninos da mamã e de discretas senhoras impúdicas.
Capta a forma moderna do diálogo sem deixar de atentar em detalhes que o adjectivem de literário em vez de se aproximar de uma mera transcrição.
Não sei se as referências perdurarão no tempo, mas no futuro poderá ser capaz de funcionar como registo "limpo" de outros tempos.
Não cumpre ainda com o epíteto de "Grande Ficção" que a Guerra & Paz deu à colecção, mas é um interessante exercício.
Espera-se que os próximos funcionem ainda melhor nesta brevidade imposta, pois as limitações sempre se superaram pelo aguçar da criatividade.


Quando a Chuva Parar (Joana Pereira da Silva)
Guerra & Paz
1ª edição - Abril de 2013
96 páginas

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