sexta-feira, 29 de junho de 2012

A curiosidade que nos engana

No segundo livro desta saga destacava-se algo que não acrescentava nada ao que pretendia dizer na crítica que então escrevi, mas que agora recupero: as referências cinematográficas que relembravam muitas vezes a origem visual da obra.
Eram detalhes que acrescentavam uma certa dinâmica graças às memórias que evocavam. Memórias de outras formas narrativas que influenciavam o estilo (ou, pelo menos, a sua percepção pelo leitor).
Havia referências directas - a Goldfinger, por exemplo - mas, sobretudo, a combinação de detalhes que davam ideia do que o texto estava a emular - um assistente chamado Ripley ajudava com a autópsia de um ser da Nova Raça que tinha visto uma criatura romper-lhe pelo peito.
Neste terceiro livro essas referências tornam-se tão raras que por pouco não dei apenas com aquela que é directa e relativa a Rebecca de Alfred Hitchcock.
O filme é tenso e assustador, vivendo de uma excelente atmosfera. Pode ter sido aqui incluído como sugestão de como o texto deveria passar a imagem (mas não se sente que isso pudesse ter sucedido).
Mas a escassez desse género de referências evidencia um mal que já referenciara antes, o sempre crescente número de personagens novas acrescentadas à história, protagonistas de eventos intermédios que nunca deixam o leitor desocupado.
Isso impede que chegue a haver personagens centrais sólidas que se possam recordar ou que sejam dadas explicações que se possam saborear por mais dúvidas que levantam. Sobretudo porque o esquema continua sem abrandamentos numa fase em que a história deveria estar em trajectória de conclusão.
O livro é frenético na maneira como não quer deixar o leitor pensar as suas possibilidades - e ver as suas falhas, suponho - o que o torna maníaco no estilo de invenções sucessivas da degeneração que as criaturas de Vitor Helios vão sofrendo no caminho para o seu declínio.
A coerência é muito menos importante para Koontz do que uma tentativa de demonstrar algum do virtuosismo da sua imaginação.
Virtuosismo que se fica pela aparência do que seria possível sem o levar aos seus verdadeiros limites.
Demonstrá-lo é fácil por via de um casal da Nova Raça que ele criou, Janet e Bucky - e são sempre algumas das personagens secundárias que se destacam como provas de imaginação que poderia ter dado origem a uma história melhor e mais focada, como já com Randal e Erika anteriormente. São um casal de assassinos que se desnuda para banhar na carnificina, mas o traço mais interessante da sua personalidade é o facto de terem encontrado para essa execução no (irritante) Dr. Phil a sua motivação mais profunda: estabelecer um conjunto de valores pessoais.
Proibidos de matar senão no momento determinado pelo seu criador, os dois acabam por ser os defensores imorais do livre-arbítrio contra a designação do plano superior. Mas o tipo de questões que essa sua forma de existência poderia levantar perde-se no momento em que se envolvem em confrontos com os detectives da saga.
Mas nem é por aí - já sabíamos que eles estavam condenados e todas as criaturas, à sua maneira, estão a contestar o mestre - que a imaginação de Koontz se mostra superficial.
Koontz diz do casal que mata com um requinte de malvadez gráfica que nem filmes série Z conseguem imitar sem, por uma única vez, tentar dar uma ideia desses métodos.
Só mesmo com Frankenstein é que o autor vai um pouco mais fundo, encorpando um pouco a qualidade de vilão e tornando-o numa figura humana por ligação à obra original.
Claro que, nos interstícios de tudo o que Koontz vai acumulando no livro, sobram poucas páginas para Deucalião (a criatura original) sobressair como anatagonista de Frankenstein tal como merecia, pelo seu domínio da Física Quântica concedido pelo relâmpago que o animou ou pela sua angústia humana perante a origem criminosa dos pedaços do seu corpo.
Não é livro em que a acção possa dar lugar ao pensamento. Precisa de estar sempre a lançar o próximo passo até mesmo na última página, com o cliffhanger para o que seria uma segunda temporada. Segunda temporada a que não aderirei e que precisava de ser cancelada.
Não posso dizer que não estava já preparado para vir a encontrar um resultado final assim... desapontante de falhado... neste trabalho de Dean Koontz. Mas o conhecimento prévio da Criatura e do Criador - sobretudo nas versões de Mary Shelley e James Whale - e a inevitável curiosidade de saber como iria terminar a história fizeram-me ignorar quaisquer pressentimentos que pudesse ter.
Deixei-me levar pelo meu lado humano e pelos interesses pessoais que sustento há muito, mesmo quando desfasados da evolução do gosto. Não creio que seja a última vez, espero apenas que não acabe da mesma maneira.


Frankenstein - Morto e Vivo (Dean Koontz)
Contraponto
1ª edição - Fevereiro de 2012
248 páginas

quinta-feira, 28 de junho de 2012

A falta que as mulheres fazem

Estamos perante ficção científica nascida de uma ideia radical aplicada a uma versão plausível do presente.
Obra escrita num português desafiante - o que já se sabia - mas de contornos universais que assume a herança de alguns dos trabalhos de José Saramago e lhe encontra as relações com as obras de nomes como George Orwell ou Anthony Burgess.
Tudo começa com o primeiro dia de escola d'Ele numa sociedade exclusivamente masculina onde não se aprova ou ensina a violência mas onde esta é valorizada como medida da afirmação pessoal.
Os homens deixados por sua própria conta - e decididos a apagar todos os traços de efeminização - recorrem à violência como única expressão possível para a dureza dos valores que os rodeia e que não é atenuada por uma acolhedora compaixão (que pertence apenas às mulheres).
A existência grupal torna-se parte integrante do quotidiano porque os outros servem de escudo à agressividade mas, também, porque são o público que esta necessita para alcançar um significado hierárquico. São as formas de resistência das crianças que os homens nunca deixam de utilizar.
À medida que crescem, os rapazes do trio tornam-se mais eficazes e calculistas. servem-se do boxe para ganhar estatuto, protagendo-se sem abdicar de praticar a violência.
Também o boxe lhes serve de desculpa para viajarem para o exterior da cidade-estado e, depois, desertarem.
Longe da severidade da sua terra natal, este grupo descobre a indulgência de explorar a violência dos comportamentos excessivos tendo sempre a protecção das mães que lhes foram atribuídas e que os protegem em excesso ou a admiração dos que os consideram um novo espectáculo.
Procuram o confronto porque os outros o evitam. Consomem drogas porque os outros as censuram. Partem para uma louca road trip porque os outros não seriam capazes.
Repetem comportamentos que pertenciam ao seu domínio original porque não conhecem mais nada nem se dispõem a conhecer.
Até que tudo lhes falhe, até que a realidade venha exigir algo mais das suas existências, eles levarão ao limite o que as sociedades estão dispostas a aceitar.
Explorando esses limites num ambiente de atraente camaradagem, Hugo Gonçalves retrata os temas da violência que já conhecemos - hooliganismo ou crimes de ódio - para com eles fazer uma previsão de futuro muito mais certeira e um aviso muito mais tenebroso: as motivações para a violência estão cada vez mais distantes dessas comandadas pela falta de entendimento individual.
Tornaram-se agora reacções correntes a todas as situações, exibidas sempre que possível pelo prazer do efeito choque de uns concretizarem o que os restantes não foram capazes. Violência exibida pelos seus próprios executantes - cada vez mais novos - orgulhosos dos feitos e ignorantes das consequências.
Mas a jornada pessoal d'Ele obrigará a que regresse à cidade-estado depois desta sofrer uma revolução. A distopia criada por um regime vigilante e cheio de regras cedeu à sua própria limitação.
Ao nível político, como aos níveis biológico e sociológico, a cidade-estado falhou por incentivar apenas a agressão e nunca a reconciliação.
A cidade-estado que só aceitava que lá se produzissem homens criava armas que vendia ao exterior enquanto comprava de lá tudo o resto. Quando decide usar a força contra outros estados que lhe devem dinheiro, ameaça com o uso da força, esquecendo que à sua volta todos estão equipados com os mesmos meios de ataque, mas também com os meios de subsistência que a eles hes falta.
Aquela sociedade exclusivamente masculina não percebe que o brado masculino é inerente a todos, estando apenas acalmado pelo sossego feminino. Para a política externa falta aos governantes a sensibilidade de amenizar as palavras enquanto dá o murro na mesa.
Não é, também esta, uma visão extrema dos conflitos movidos a urânio enriquecido e palavras pouco ponderadas?
Fazem falta mulheres nos postos-chave da vida das nações como fazem falta no posto-chave - o de mãe... - da vida dos homens a quem estas serão confiadas.
Pode não ser totalmente visionário, mas é um alerta de moralidade para um mundo a desintegrar-se. Melhor ainda que seja uma óptima história, escrita com a dureza dos capítulos curtos e intensos (como rounds de boxe, pois claro) e com a sensibilidade de olhar em volta e descrever o que vai na alma dos que se preocupam com o mundo.


O Coração dos Homens (Hugo Gonçalves)
Oficina do Livro
1ª edição - Março de 2006
232 páginas

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Se isto é um policial

Dizia um amigo do meu pai que as mulheres não sabem escrever policiais.
Claro que Agatha Christie, Patricia Highsmith ou Donna Leon contrariam tal ideia, mesmo se Damas do Crime é uma designação que parece prometer a fuga à condição feminina de "escritora de policiais" para um patamar em que se admite que algumas mulheres são capazes de igualar ou superar os homens.
Seja como for, de tempos a tempos a boutade confirma-se e as razões para tal parecem constituir um padrão.
Este trata-se de um caso exemplar em que a autora encontrou (ou assim pensa) no policial um formato fácil para chegar aos seus propósitos.
A sua vontade é a denúncia do sofrimento da condição feminina - do sofrimento que se arrasta uma vida inteira só por se ter nascido mulher - mesmo quando se pensa que as suas causas ficaram enterradas para sempre (o que faz do livro uma metáfora muito evidente).
Podem os leitores achar o contrário durante algumas páginas, mas há um momento em que se revela a verdadeira razão do livro e este se afasta do policial em direcção à noveleta.
Dois quintos do livro lido e até o leitor menos atento será incapaz de ignorar as pistas exibidas abertamente para revelar os crimes que a civilidade islandesa continua a calar.
Como tal, o policial que o livro deveria ser está perdido desde logo, mesmo se o culpado - essa redução de um policial a um factor mínimo - ainda possa vir a ser uma surpresa para alguns leitores (embora o truque usado seja tão antigo quanto o texto de A visita inesperada, por exemplo).
Se a meio do livro ainda houver alguém que não tenha percebido o que significa o aquela cabeça com os genitais enfiados na boca, a autora trata de mostrar aquelas páginas caóticas do diário da jovem rapariga - entretanto adulta a trabalhar num centro de apoio a vítimas de violação (e, depois, morta). Se, mesmo aí, o leitor demorar a perceber, então esse será um leitor pouco interessado em investir - com ou contra- as quinhentas páginas de um livro que se quer literatura de elevada qualidade.
Até porque todos os outros pequenos mistérios que se agregam ao do crime actual acabam por ser consequência desse acontecimento do passado que deixou a marca de uma cabeça encaixotada. O seu encadeamento nunca é casual mas é a consequência mais básica de um conjunto de eventos: uma jovem rapariga escondida da vida pública durante um ano e que, já adulta, procura estabelecer contacto com um homem mais novo que lhe deveria ser completamente estranho.
Fosse para contar esta história ou fosse para executar a aproximação ao policial, os leitores mereciam que o livro tivesse bem menos páginas. As derivações minuciosas mas inúteis (sobretudo depois de tudo se tornar tão evidente) não dão um verdadeiro retrato da Islândia.
A demora frusta ora porque na primeira metade do livro nos afasta da linha central da trama, ora porque na segunda metade do livro nos atrasa a finalização de uma história que está mais do que resolvida.
Até porque não há nenhum factor redentor para a investigação, conduzida por aquilo que imagino (porque, de facto, nunca deles li senão a sinopse e, portanto, sirvo-me do preconceito) ser a figura tutelar dos romances femininos de mulheres nas faixas etárias terminadas em "onas".
Thora Gudmundsdottir é uma advogada que parece pouco interessada em perder tempo com o seu cliente acusado de homicídio. Se vai atrás da verdade de forma arriscada e à margem da boa educação (mais do que da legalidade) é porque está desejosa de abandonar a pequena ilha e voltar para a capital onde o seu namorado alemão está prestes a chegar.
Conta, ainda para mais, com o apoio de uma assistente mais jovem, capaz de descobertas essenciais, mas a quem Thora apenas inveja - com um oco moralismo crítico - a vida sexual liberta que a vê praticar todas as noites.
Voltamos a ter de olhar para a questão da feminilidade - e nada me move contra tal temática por si mesma - agora na forma inversa, da independência que esta também pode proporcionar.
Trata-se de exibir o acessório aos eventos do livro ou, pelo contrário, de tornar acessório o crime que definiria o romance. Tudo para dar a conhecer uma crueldade que assombra as mulheres no país do gelo e dos vulcões e que, por isso, não admite dificuldades (leia-se manutenção dos mistérios) ao leitores.
Aproveito o que Alexandra Lucas Coelho ouviu dizer a Caetano W. Galindo, para afirmar que se o leitor quer ficar com os pés na mesinha de café como na trilogia Millenium, então encontrou o livro certo.
Falso policial, romance de acasos telenovelescos, cujo tema "maior" está mais do que revelado naquela citação estrondosa da capa sobre ser esta a resposta islandesa a Stieg Larsson.
Se isto é o policial moderno e a visão do que será o seu futuro, prefiro reler os policiais datados que não procuravam fazer retratos fiéis da actualidade a que pertenciam. Esses onde a narração do mistério ainda era a força motriz!

Uns parágrafos finais para falar da edição. Não importa quão boa sejam o design e a encadernação de um livro quando, depois, durante quinhentas páginas, as gralhas são constantes e impossíveis de ignorar.
O esforço de leitura não chega a causar a desistência do livro mas incomoda e deixa a nú uma revisão deficiente que, aos olhos dos leitores exigentes, deixa mal vista a editora mais do que quem esteve a cargo dessa tarefa.


Cinza e Poeira (Yrsa Sigurdardóttir)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Junho de 2011
512 páginas

terça-feira, 26 de junho de 2012

Pelo gosto de ser (bem) enganado

A passagem a romance não apaga os melhores traçoes de uma obra que, nos seus melhores diálogos, deve ter sido excelente de assistir representada em palco.
A única falha do livro será a opção de não juntar à versão romanceada (por Charles Osborne) o texto da peça (esse sim obra de Agatha Christie) para os seus leitores mais dedicados.
Nada que impeça que se aprecie o livro sem dificuldade, minimalista nas suas descrições e veloz nas suas interacções, ambas as características consequência da origem do texto.
Este não é um policial, é uma revelação das secretas motivações humanas. Uma morte é sempre um bom ponto de partida para separar os que se desfazem dos que se revelam mais afoitos.
Mas o livro é, também, um quebra-cabeça manipulador que dá ao leitor/público uma sensação de conforto para crer que sabe o que se anuncia no porvir... apenas para ser contrariado e alegrar-se com isso.
O conforto é proporcionado por um conjunto de personagens muito bem composto em pouco traços. Personagens da história que estamos a ler e que são ainda melhores personagens das pequenas narrativas individuais que constroem umas para as outras.
Por todo o tipo de motivos que o leitor quererá descobrir, as personagens querem enganar-se mutuamente, acabando por se enganar a si próprias sobre o que devem pensar de quem as rodeia - e ao leitor por acréscimo.
Não sendo uma obra excepcional tem o condão de manter perto de si a memória de outras que o são. (Infelizmente, neste ponto, tenho de recorrer ao Cinema e não ao Teatro, embora sejam obras de uma teatralidade fulgurante.)
Como jogo de manipulação, Uma visita inesperada está perto de Sleuth (o original) embora não vá tão longe na minimização do número de personagens ou no tipo de manipulação que ousa fazer em crescente tensão. Como retrato de grupo em ambiente claustrofóbico está perto de 8 femmes, embora num registo mais sereno ( e mais próprio, eventualmente).
Como tal, acabo com a certeza da próxima afirmação. Quem comprar o livro acabará bem enganado, mas pela trama. Seguir para a compra do pequeno volume devido ao nome de Agatha Christie inscrito na capa não levará ninguém ao engano.


A visita inesperada (Agatha Christie)
Edições Asa
1ª edição - Janeiro de 2012
162 páginas

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Músico e/ou escritor

Esta história do Sul dos Estados Unidos da América é contada por Deus e o Diabo. Figuras do Antigo Testamento cuspidas como ácido nas palavras dos fanáticos, pregadores e atormentados que vivem à base da sua Fé ou Loucura, consoante o grau de cinismo que o leitor lhe queira estampar.
Este Sul é um local que se preserva pela dureza das crenças e dos actos. Se há uma beleza no Sul - lugar mítico da narrativa americana - ela pertence a algumas pessoas, focos de luz entre o obscuro gerado pelo coração humano comum que transforma uma american small town num antro de crueldade obcecada com um Bem que morre com cada acto da população local.
A beleza vem de Euchrid e Beth, crianças - a primeira criança eterna, a outra criança - em ambiente explosivo em que a ignorância serve de rastilho. Eles olham-se mutuamente encontrando o que a comunidade nunca será capaz de ver.
Comunidade que reage com um grau de crendice e preconceito à mesma situação: crianças nascidas como estranhos no seio da comunidade.
A diferença? Euchrid é mudo (e visto como o idiota da aldeia) e parte de uma família disfuncional. Beth é a menina pura que cai nos braços de um homem religioso a precisar de uma missão.
Aclamam uma criança, rejeitam a outra. O ressentimento pertence a ambos porque Euchrid vive numa crescente solidão e porque Beth vive numa crescente constrição.
Euchrid sonha em vingar-se de todos os que o atormentam (de todos, portanto) mas acaba por ser a resposta inabalável às suas preces, dando aos seus conterrâneos a hipótese de odiarem e amarem o que querem ver como encarnações das figuras tal como eles as julgam encontrar descritas na Bíblia.
Afinal Euchrid é, como julgava na sua loucura alimentada pela solidão, a figura que Deus enviou àquela terra. Não a mão vingadora de Deus, mas a apaziguadora. Apenas a Fé cega e fatalista dos outros não lhes permite ver isso.
Mesmo assim sentem a mão de Deus na palmada violenta que as pessoas lhes assentam, erguendo entre eles o último foco de pureza. Claro que toda a pureza acaba destruída.
Aqui não é excepção pois Euchrid, desde o parto em que é o único dos gémeos a sobreviver até à morte em que paga por crime alheio, está a sacrificá-la para redimir os outros.
Redime o irmão vivendo por dois a vida de desprezo e violência que lhes caberia. Redime Beth porque acidentalmente a faz sentir o amor que as mulheres que a vigiam apenas lhe sabem prometer em abstracto. Redime até a comunidade porque sendo morto a deixa crer que vingou o mal e foi recompensada com um milagre.
Depois de apagada a pureza, a comunidade - ignorante - ainda continua em busca do profeta. Quer forçá-lo a ser como deseja. Mais facilmente cria o demónio ao querer afastar as características do que nunca poderia ter esse papel.
Nick Cave compôs um relato de uma beleza figurativa nascida no meio do caos violento. O seu uso da linguagem, excessivo e inventivo, é sedutor mesmo ao descarregar nos leitores imagens dolorosas.
Mas o retrato de três décadas de uma comunidade sulista sob amarras religiosas é um feito difícil, sobretudo com tantas variações nas vozes narrativas em torno da preponderância daquela que está para sempre silenciada - levantando dúvidas (talvez propositadas) sobre de onde lhe vem aquela qualidade -, e Nick Cave não o alcança.
A veia literária foge-lhe várias vezes para a sua inspiração de cantautor e certas passagens parecem pensadas a propósito do género de episódios extravagantes que canta na sua música, valendo pelo efeito fonético e não pelo seu papel na estrutura do romance.
Isso prejudica o livro porque distrai o leitor - sobretudo se também conhecer a música de Cave - tal como fragiliza a definição de algumas personagens (embora esta questão possa acabar por ser consequência directa da anterior).
Terá sido uma tentativa mais corajosa de criar uma obra literária do que era A Morte de Bunny Munro. Nesse livro Nick Cave pareci escrever apoiado no seu instinto (e estranheza pessoal), enquanto aqui parece querer incluir muitas das suas obsessões num monumento de inspiração que o coloque ao lado do inevitavelmente recordado William Faulkner.
Mas em A Morte de Bunny Munro o humor negro e o foco literário estão apurados como aqui ainda não estavam. Talvez os livros devessem ter surgido em ordem inversa, para os defeitos ficarem encobertos na bela cacofonia desse outro livro e este fosse, agora, mais conseguido.


E o burro viu o anjo (Nick Cave)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Março de 2011
372 páginas

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O leitor ou o detective permanente

O detective bibliófilo que protagoniza O Último Livro defende a literatura policial indicando Crime e Castigo como livro que pode ser lido como policial.
Mais do que concordar com o argumento, que dá jeito a um fanático do policial para citar com distinção em qualquer dicussão, concordo com o conceito e alargo-o.
Todos os livros são lidos como policiais. Os primeiros capítulos são as pistas pelas quais se tentará chegar à descoberta que só chega com a última página.
Cada um usa as mesmas armas, perspicácia e imaginação, nunca em medidas iguais, daí o maior ou menor grau de surpresa final.
Os escritores são, também e primeiro, leitores que com um certo privilégio exercitam os dotes policiais aos seus próprios textos - em primeiríssima mão e com hipóteses falhadas até à hipótese correcta - e que não deixarão de o fazer aos dos seus colegas.
Por isso quando dentro d'O Último Livro se refere a proximidade da trama à d'O Nome da Rosa, o leitor já teve amplas oportunidades para recordar o livro de Umberto Eco por si mesmo. Não esperaria é que num livro, mesmo se este se dedica à metalinguagem como exercício criativo, o seu autor revelasse esta essência do processo criativo da extracção de uma excelente pista (leia-se ideia) alheia em direcção a um crime (leia-se obra) própria e original, espera-se.
Um "livro assassino" nas mãos de um Stephen King dava azo a circunstâncias bizarras mas nas mãos de Zoran Živković dá azo a uma receita em que se frui da mistura ainda melhor do que os seus componentes soltos: policial, fantástico, bibliofilia, metalinguagem, classicismo no seio da modernidade (entre outros elementos a encontrar e enumerar a gosto).
Se tanto o comparam a Borges é pelo elevado padrão que o escritor argentino estabelece, mas cada detective (leia-se, leitor) fará, consoante os conhecimentos e referências de eleição, a sua enumeração de outros escritores a quem Zoran Živković dá resposta à altura.
Escritores a quem Zoran Živković poderia ter pilhado ideias para outros finais ou que gostariam eles de ter pilhado em nome das suas criações.
Por esta combinação de elementos, os leitores deste livro tirarão enorme prazer de serem detectives das suas páginas. Mais ainda quando se aperceberem que as pistas aqui não são simples e que dificilmente adivinharão o desfecho ou o quererão apreciar apenas uma vez para dele desfrutarem na sua totalidade.
Este livro é uma cri(me)ação para (resol)ver mais do que uma vez!


O Último Livro (Zoran Živković)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Março de 2011
280 páginas

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Acidente de escritor

Creio que já noutra crítica referi, em passagem, uma certa admiração pelas pessoas que fazem das auto-biografias confissões despudoradas.
Escolhem mostrar-se humanas a comporem uma vida a jeito para a admiração alheia e, com isso, não só se tornam personagens com quem nos relacionamos no imediato - ao invés de, suponho, estarem a tentar arrepiar caminho em direcção à memória que a História fará deles -, como tornam a leitura do livro muito mais interessante.
As vitórias são o que tornam os biografados ícones e as quedas são o que os tornam humanos. Mas as quedas reveladas por si só e não como momentos escritos de propósito para as vitórias que vêm com o reerguer-se.
Philppe Pozzo di Borgo mereceu-me essa admiração em O Diabo da Guarda, o segundo dos livros que constituem esta edição.
Aí ele não se perdoa os falhanços e não deixa de fora as vulnerabilidades. E estes não são os causados pelo acidente que o deixou tetraplégico e totalmente dependente de outros, mas antes por uma necessidade universal. Ou necessidades.
Necessidade pelo afecto da camaradagem. Afecto que venha de alguém que não mostre preocupação apenas porque o seu salário depende disso.
Necessidade pela escapatória da situação corrente. Situação limitada não só fisicamente à cadeira onde está instalado mas a uma situação de vida esterilazada da diversidade cultural.
Necessidade pelo desafio que o equipare ao passado. Integrar um "jovem rebelde dos subúrbios" numa vida como a que ele levou, a partir de uma posição de dependência, pode ser tão difícil quanto gerir a casa de champanhes Pommery.
Philippe conta as peripécias da contratação que fez de uma forma tão honesta que nos pode parecer que  o deixaria menorizado (ainda mais?) visto que está limitado a uma cadeira de rodas.
Lê-se a confissão de que perdeu dinheiro ao investir num negócio de transporte, do qual Abdel se aproveitou para empregar alguns dos seus amigos - pequenos criminosos - num serviço a que faltava ainda alguma transparência, e fica-se com a sensação de que ele o fez porque criou um dependência emocional do mesmo grau da dependência física. Que teria sido, através de tácticas casuais, manipulado ou chantageado a fazê-lo.
Mas a sua oposição final ao negócio e as suas exigências revelam que ele o fez ainda no domínio pleno das suas capacidades, que o fez em nome de uma esperança num empreendorismo individual e que o fez em nome da sua própria preponderância em algo criado por si (depois minada, claro).
Revelador dessa preservação é, acima de tudo, O Segundo Fôlego, a primeira das obras do livro. Essa uma memória mais extensa, indo até à infância, acaba por revelar um escritor mais dedicado à sua arte que dá grande cuidado à escrita e vai usando ferramentas literárias variadas que enriquecem a leitura.
A sua acuidade mental não diminuiu com o seu acidente e este, apesar de não ser nunca desejável, proporcionou-lhe o tema (físico) e o espaço (mental) que ele necessitava para revelar um lado filosófico que todo o Homem tem mas a que poucos se dedicam.


O Segundo Fôlego seguido de O Diabo da Guarda (Philppe Pozzo di Borgo)
Editoral Presença
1ª edição - Abril de 2012
208 páginas