sábado, 31 de março de 2012

Finalmente, brilhantismo

Mesmo sem os dois tomos que completam a trilogia iniciada com O Príncipe da Neblina - que não parecem ser essenciais para entender o percurso como autor - é possível perceber que passos deu Záfon para chegar desse seu primeiro livro até este segundo tomo de histórias em torno do Cemitério dos Livros Esquecidos.
Sempre com o seu gosto pelas assombrações dos contos góticos, Zafón tentou encontrar um público mais abrangente tentando primeiro exagerar a influência romântica dos mesmos e acabando por quase o substituir pelo melodrama de baixa qualidade.
Ao mesmo tempo, Zafón foi procurando uma plataforma literária que lhe permitisse solidificar os momentos de detectivismo com as vertentes aventurosa e bibliófila bem equilibradas.
O Jogo do Anjo é o livro em que ele consegue a combinação correcta, sem abdicar das várias hipóteses narrativas que lhe proporciona o mais largo espectro de géneros. Quer isto dizer que ele percebeu que o seu género de história funcionaria melhor por diminuir o tom do romance trágico e fazendo prevalecer uma combinação do gótico com um noir desavergonhadamente saído das páginas de velhos folhetins.
Mesmo para o estilo de escrita que ele cultiva, estas formas literárias recuperadas ao século XIX e usadas neste preciso rácio, são as mais indicadas para ele.
O ambiente que ele cria para a Barcelona de antes da segunda Guerra Mundial está povoada de casas amaldiçoadas e ruas mal iluminadas. Fundem-se perfeitamente, assombrando por demasiadas possibilidades à espreita, reais ou imaginárias.
Polícias corruptos e velhos diabos, todos acercando-se de David Martín, um jovem escritor a braços com as agonias dos primeiros passos profissionais.
Os tormentos das obrigações e das motivações do jovem escritor têm origem na sua venda aos diabos reais e ocultistas: editores que só se preocupam com dinheiro e uma figura sombria que não é nomeado como tal mas que deixa todos os sinais de ser o próprio Lúcifer.
Algo mais existe num escritor que se entrega sem descanso ao trabalho, um desígnio que determina a necessidade de criar e, com isso, influenciar o mundo.
Por via das suas criações, cada livro um filho de que não pode abdicar mesmo se nunca deva ver a luz do dia, Davida Martín está a criar o seu próprio tormento.
Barcelona é tão demoníaca quanto ele a recria da sua torre de vigia de onde lhe chama a "cidade dos malditos".
Mas é o seu outro livro, uma base para a criação de uma nova religião, que mais lhe arranca as entranhas, que mais avisa sobre o poder da narrativa.
A exposição da sua alma traz delícias e perigos que só a nobre arte de narrar poderia conter e, por isso, fica-lhe a culpa das desgraças que poderá desencadear neste mundo - a das que, desde logo, desencadeia sobre si mesmo.
Esta exclusiva motivação pela dificuldade (e intensidade) da vida de escritor vem em benefício do livro de Zafón proporcionando uma estrutura bem mais sólida do que as anteriores.
A história é sobre a vida do escritor e o parto dos seus livros e o cerne mantem-se sempre aí. As pequenas derivações ou as variações de tom, são sempre maneiras de integrar as muitas ideias que Zafón mostra, mas que servem à definição da personagem central e à maneira original de reinventar a vocação de escritor.
A importância dos livros, do trabalho de escrita e do próprio Cemitério, sempre influentes e longe de serem curiosidades exóticas para ornar alguma banalidade romanceada.
Não é por isso que Zafón deixa de fora de mais este livro os seus temas predilectos - pessoais, acaba-se por crer - que, no caso essencial da tutelagem emocional e criativa dentro do mundo dos livros, tanto desagua como parte de Martín.
A sugestão é de que Zafón já não procura apenas definir o reencontro com figuras parentais desaparecidas mas está em vias de entender como passar essa responsabilidade adiante.
Se David Martín é uma representação ficcional do próprio Carlos Ruiz Zafón poderá não ser uma especulação completamente correcta, mas que este é o melhor dos seus heróis (evitei deliberadamente a palavra "personagens" pois não há maneira de esquecer Fermín), também porque é dos que acumula mais falhas, persistindo nos seus erros em nome do que lhe nasce naturalmente. E não nos podemos revoltar com essa sua insistência pois é das poucas coisas que sempre o acompanhará.
O Jogo do Anjo é a concretização dessa beleza imperfeita do labor de escritor que o livro traduz numa visão mais saborosa - porque extravagante.
Trata-se de um livro a guardar, independentemente do desapontamento anterior ou das emoções que os tomos seguintes venham a proporcionar. Talvez só o espírito completista se perturbe com tal decisão.


O Jogo do Anjo (Carlos Ruiz Zafón)
Booket / Planeta Manuscrito
1ª edição - Maio de 2011
576 páginas

sexta-feira, 30 de março de 2012

Outra versão do mesmo livro

Faço batota e cito de O Jogo do Anjo (uma crítica que pertence ao porvir) a fórmula para livros de Ignatius B. Smason: ...que desse a tudo um tom um pouco sinistro e que centrasse a história num livro secreto possuído por um espírito atormentado, com enredos secundários de aparente conteúdo sobrenatural.
Dirão que é um jogo metaliterário de Zafón, mas é ele a confessar a fórmula que lhe serviu para este livro. Fórmula que pertence aos romances de cordel e aos folhetins escabrosos.
Entendo mal que tal fórmula tenha merecido tantos e tão repetidos elogios e despertado tão avassaladoras paixões - ouvi uma vez, da pessoa que me emprestou este livro, que quem não gostar de A Sombra do Vento não poderia ser seu amigo.
Talvez me tenha tornado num leitor cínico mas todos os mistérios vitais deste livro - havendo muitos outros menores - são previsivelmente resolvido ainda ele não se aproxima do meio.
Conhecendo as versões de menor qualidade de exagerados melodramas amorosos e de impossíveis mistérios difusos, sabemos logo quais serão as causas dos tormentos do casal Júlian e Penélope ou a identidade da figura que se move nas sombras atrás do último exemplar d'A Sombra do Vento (o livro dentro do livro).
E conhecendo as de maior qualidade, sabemos de onde andou ele a retirar referências e inspiração, numa recombinação de técnica e estilo que não se comparam aos originais, mesmo se Zafón merece que lhe elogie o domínio da escrita (mas isso já o fizera com os seus livros anteriores) e a criatividade com que vai pontuado a previsibilidade - e, por vezes, elevando a qualidade - da sua narrativa.
Sobretudo na criação do Cemitério dos Livros Esquecidos se vê o grau de inventividade que ele pode alcançar mas também, a partir da sua revelação (e essa é logo no início do livro), se lamento que ele não persiga sempre o melhor do seu imaginário mas acabe a utilizar as fórmulas menores (e gastas) dos géneros que combinou.
Para um livro sobre o amor pelos livros, esse importante ponto de partida que é o Cemitério dos Livros Esquecidos, não tem influência senão como pequena digressão chamativa para uma história que dali parte mas ali não volta.
Tal como o livro de Carax que é praticamente um MacGuffin para uma história - mais uma história, na verdade, quando se lê cronologicamente a obra do escritor - de um rapaz à procura de passar à idade adulta pelo entendimento, tanto dos mistérios das raparigas que inevitavelmente amará como da vida da figura tutelar que lhe chegou pela autoria de um livro que só ele encontrou no interior do labirinto.
Os episódios da vida do rapaz e, depois, os episódios da vida do autor - e desses episódios, infelizmente, são os amorosos que prevalecem - ganham relevância sobre os mistérios dos livros ou do lugar onde as memórias rejeitadas destes acabam por encontrar um refúgio.
Dito tudo isto, não posso deixar de olhar para A Sombra do Vento como a versão  seguinte (eventualmente um pouco mais madura) de Marina.
Uma versão onde o único verdadeiro traço de génio é uma personagem secundária de nome Fermín Romero de Torres que pontua o romance com um humor delicioso e altamente eficaz. Resultante das frases quase absurdas ou apenas irónicas que ele lança a meio dos diálogos - com uma seriedade que não admite reacção - é um humor reforçado pelo seu envolvente linguajar.
Com ele corremos páginas afora resistindo aos erros estruturais de Zafón à medida que acumula personagens e enredos secundários em torno do fio central (que, sem elas, seria pobre).
Sempre que Zafón se perde por caminhos secundários não tem engenho para resolver o retorno ao eixo nevrálgico, usando soluções facilitistas onde revelações úteis surgem artificialmente para que a história, então, avance.
Não há maior caso de Deus ex machina neste livro do que a absurda carta que Nuria deixa a Daniel. Várias dezenas de páginas escritas em grandíloquo estilo literário durante uma noite em que ela já corria perigo de vida e em que ela deveria ter tentado fugir.
A falsidade da carta no seio do livro é de tal ordem que ela se substitui a quase tudo o resto, pelo que teria sido suficiente para evitar tanta delonga até chegar ao confronto em que todas as linhas se cruzam em definitivo.



A Sombra do Vento (Carlos Ruiz Zafón)
Publicações Dom Quixote
2ª edição - Junho de 2005
408 páginas

quinta-feira, 29 de março de 2012

Para satisfazer o mercado e o ego

Ainda que Carlos Ruiz Zafón diga que este é um dos livros que recorda com maior apreço, é o menos interessante de entre os que dele pude ler.
A sua introdução ao livro deixa a sensação de que tenha sido pela resistência do livro a uma década de más edições que ele tanto o aprecia. Um sentimento de pai à espera do ressurgimento do filho pródigo que o seu sucesso com A Sombra do Vento viria, finalmente, a proporcionar.
Deve ser esse o motivo - a par de ser o seu livro "mais pessoal" - pois logo no primeiro parágrafo da introdução o autor diz que o favoritismo dos autores recai sobre obras independentemente da sua qualidade literária.
Essa não abunda neste livro que o esfaimado sucesso levou a ser reeditado para disfarçar o tempo de espera por um novo livro.
Marina não é mais do que uma versão mais cheia d'O Príncipe da Neblina. E à conta disso, uma versão menos interessante.
Os temas são os mesmos: a busca de uma figura tutelar e o heroísmo do primeiro amor, sobretudo. Mas também os detalhes menores da história se repetem, do prenúncio mecânico (relojoeiro) dos perigos orgânicos que se aproximam ou a jovem rapariga envergando o alvo vestido de pureza.
A história tem o mesmo rasto de mistérios obscurecidos pela sombra do sobrenatural: uma aventura detectivesca nas mãos de protagonistas que, pela sua juventude, olham ainda para o inexplicável como brumas de magia.
Trata-se de glorificar o acto de fé dos ingénuos que ainda partem por um bairro desconhecido (já o dizia Dinis Machado em O que diz Molero) e encontrar uma aventura sem medida.
O mesmo terror gótico os assombrará mas tal só existe como forma de brindar os jovens com as peripécias que prometem a morte a quem tem ainda tanto que viver. Bem ao contrário d'O Príncipe da Neblina onde o terror impregnava a essência de uma história feita da aventura de pura amizade - um amor em sentido lato - entre dois rapazes.
Falta a Marina a agilidade desse outro livro que levava o leitor de susto em susto crendo que esses sustos teriam consequências concretas sobre as personagens.
Aqui a história parece demasiado cheia por um núcleo que não é mais do que uma derivação por terrenos de fascínio acrescido quando comparados ao arco narrativo que liga o início ao fim do livro e que não precisa.
Núcleo fechado, quase independente, sem desfecho que toque o arco narrativo que revela o verdadeiro tema do livro.
Um arco narrativo que não é mais do que a história simples de um amor cândido mas condenado. Uma tragédia de apaixonados escrita melhor por outros.
O miolo fantástico do livro parece estar lá porque é esse o terreno de eleição de Zafón e ele não sabia que mais fazer com as suas personagens entre a descoberta e a perda dos seus personagens. Como se duas matrioshkas desemparelhadas coubessem, por acaso, uma dentro da outra.
Marina é uma releitura do que estava para trás com um aviso do que está por vir (e de que falarei na crítica que se segue, a A Sombra do Vento).
Só se entende que tenha honras editoriais por preencher o vazio de vendas e o desejo do autor ver a sua obra recuperada com qualidade e cuidado.


Marina (Carlos Ruiz Zafón)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Setembro de 2010
264 páginas

quarta-feira, 28 de março de 2012

Um bom livro juvenil

Lancei-me à tarefa de conhecer o máximo da obra de Zafón por via do seu primeiro livro, sabendo de antemão que se tratava de uma novela dirigida a um público juvenil.
O seu grande benefício está precisamente em ter sido escrita (1993) quando os leitores ainda podiam ser tratados como jovens e não como os jovens adultos de hoje em dia que obrigam a que os livros tenham um retrato do mundo que conhecem pelo meio da literatura.
Tendo sido escrito para os jovens, consegue romper a barreira que os separa do público adulto e mais exigente, que aqui reconhecerá um conto gótico classicista deslocado para um período em que o grande avanço tecnológico é um projector de cinema caseiro.
Motivo de serenidade, portanto, que não haja mensagens de telemóvel ou chats de internet a tomarem o lugar da boa construção narrativa - e a gerar a rejeição dos leitores amadurecidos que quererão experimentar este livro por conta dos mais recentes do autor.
O herói não tem mais do que 13 anos e o seu arqui-inimigo é o ser que dá nome ao livro, de grandes e misteriosos poderes.
A luta desigual vive de mais do que o desequilíbrio das capacidades e das chances de cada um triunfar. Vive de mais do que o confronto do entendimento puro e pueril do Bem com a matreirice antiga do Mal.
Vive, sobretudo, da capacidade de vitória e derrota que o mais novo dos oponentes revela no espaço do desconhecido que lhe sobra entre o que descobre e o que nem imagina sobre o inimigo.
Zafón alimenta a história dos medos naturais do rapaz recém-chegado a uma aldeia, vindo da cidade para escapar à guerra.
Elementos habituais - e sempre eficazes - para esses medos são a atmosfera tensa da nova casa há muito entaipada, os perigos fantasmagóricos que aguardam nos destroços de um antigo barco afundado, a vida sugerida pelas estátuas que ocupam o espaço central de um jardim de que ninguém cuida ou um misterioso faroleiro com conhecimentos da velha maldição cigana que está finalmente em marcha.
Perante isto, os perigos de se perder no jardim ou se afogar por entre os escombros são tanto realistas como carregados do sobrenatural que o indefinido mas poderoso vilão insufla naqueles objectos inanimados que tentam se voltam contra ele.
Max enfrenta tais terrores em nome do grande amigo que fez naquele Verão e da promessa que fez ao faroleiro (um mestre que o toma sob protecção); e que esse amigo serve de cavaleiro andante à irmã de Max, entendemos que as voltas que Zafón dá em torno desta pequena estrutura de relações é de uma nostalgia dos feitos - reais ou imaginados, amorosos ou aventureiros - que muitos adultos alcançaram, em tempo de férias, quando tinham a idade dos protagonistas.
Uma nostalgia que sublinha o prazer pronto a ser desvendado pelos adultos leitores para lá das aventuras que mexem com os mais novos que não saberão nada de tal sentimento.
Também etravés da escrita de elevado cuidado, Zafón vai mexer com essa nostalgia. Neste caso, nostalgia pela possibilidade de saborear a linguagem no processo de encarnar as personagens que disputam à imaginação própria o divertimento (quando não deslumbramento) que ela ainda saberá criar.
Conclui-se que a ligação ao livro serve tanto as camadas juvenis e adultas, sendo uma boa entrada na leitura ou uma boa recordação de como outrora tal se fez.
Quanto aos jovens adultos, parecem (tristemente) condenados a ficar de fora dos que podem apreciar este livro.


O Príncipe da Neblina (Carlos Ruiz Zafón)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Setembro de 2011
208 páginas

segunda-feira, 26 de março de 2012

O uso das etiquetas literárias

A categoria a que chamam Policial Nórdico é tão alargada que acabam por lá estar livros que seriam olhados como estudos de uma comunidade em torno de um elemento estranho.
Um elemento estranho que envolve um crime, mas que sem a etiqueta correspondente acabaria por ser tratado abordado de outra maneira desde o seu começo.
Entenda-se que há um crime e há uma investigação, mas Karin Fossum afasta-se bastante do que é a expectativa normal para este tipo de ficção.
Mesmo Henning Mankell, que usava os seus livros para mostrar com realismo a investigação policial e para ir olhando os males à espreita numa sociedade aparentemente "quase perfeita", criou uma personagem central, algo perto do clássico detective.
Karin Fossum, ao contrário, dá protagonismo a todas as personagens, seja qual for o papel de cada uma. E fá-lo aprofundando sempre a investigação com uma especificidade que nos faz crer no realismo e que nos produz muitas dúvidas em vez de tentar deixar pistas pelo caminho que o leitor gosta de fazer a par das próprias personagens.
Sejam testemunhas, suspeitos, investigadores, comentadores de café ou a própria comunidade, todas as personagens agem credivelmente, cometendo erros por estarem envoltas com o acaso da situação ou suscitando dúvidas por tomarem opções justificadas apenas pela apreensão que os inocentes sentem perante um crime.
A culpa por mera proximidade ao crime - um assassinato de uma mulher indiana recém-chegada à Noruega - é mesmo a principal causa transformadora daquela sociedade pequena, crente do seu auto-conhecimento e pacifismo.
Essa proximidade tanto leva a que os papéis elementares de cada personagem se alterarem num cenário social mais amplo do que aquele que rodeia o crime, como leva à fractura comunitária por perturbação da percepção confiante gerada pela familiaridade do reconhecimento mútuo.
Olhe-se para o caso sumarizante da testemunha principal, rapidamente desprezada pela comunidade que não admite que alguém possa ter acusado (justa ou injustamente) um dos seus. Ela sente uma paixoneta obsessiva pelo detective que a interrogou e torna-se obsessiva no contacto com ele até que ele tem de ignorar o momento em que a comunidade passou do desprezo ao ataque a esta testemunha.  Para ela, a culpa de se ter visto indefesa não é da comunidade mas daquele homem e a última mensagem que ela lhe deixa são quatro pneus cortados à faca.
Aquilo que não era mais do que um justo acto de civismo torna-se na principal acha de uma atacante em potência que, numa mescla de motivos pessoais e sociais desviantes do que se espera que seja a norma, revela que a popularidade não está mais longe da propensão para o crime do que a solidão.
O domínio de Karin Fossum é espantoso, construíndo uma visão ampla das ramificações de um crime inconcebível - a comunidade até convive com alguns emigrantes - e dando uma vida profunda às personagens através dos seus papéis num momento limitado mas muito específico que, pela sua intensidade, altera o estado de espírito de uma pessoa numa vertigem.
Ela não confunde realismo e crueza com uma perda da expressividade da linguagem e a sua escrita é admirável.
Mas a sua grande arma é a falta de uma resolução para o crime referido. Os leitores que venham à espera de um policial acabarão por ficar algo frustados com as dúvidas que são lançadas na última página como se esta fosse ainda a primeira.
Tudo porque o verdadeiro crime é a destruição que uma comunidade faz das suas fundações por medo do que só existe na cabeça de cada um dos seus membros ao olhar para si mesmo pelo olhar alheio.
O crime é essa destruição e o que mais está por vir a afectá-los.

Já agora, refiro que a mais recente edição deste livro ganhou uma capa diferente. Não é muito melhor do que esta mas não confunde o livro com outra categoria literária, a dos testemunhos de sobrevivência de mulheres em países cuja realidade está ainda muito longe da nossa.
As etiquetas literárias podem ser perniciosas ou uma útil ferramenta para orientar uma potencial leitor. Não são boas nem más senão pela maneira como são usadas.
Tentar juntar várias delas para vender livros a compradores incautos é, certamente, a maneira errada de as usar.
Ou então o designer da capa (não creditado) limitou-se a ler o título e nada mais, o que é um grau de incompetência perante o lado cultural do produto comercial que deve levantar suspeitas várias ao leitor.
Seja qual for o caso, a imagem da editora saiu prejudicada, sobretudo quando antes já tinha conseguido uma capa assim.


A Noiva Indiana (Karin Fossum)
Oceanos
1ª edição - Julho de 2009
280 páginas

quinta-feira, 15 de março de 2012

Nada mais do que um homem e uma mulher

Não duvido que a fruição de Alabama Song será maior para quem conhecer a dicotomia que parece estabelecer-se entre Terna é a noite e Save Me The Waltz, as leituras ficcionais que Francis Scott Fitzgerald e Zelda Sayre fizeram do mesmo período do seu casamento.
Conhecendo o tipo de reacção e interpretação que cada um teve aos mesmos eventos, a invenção de uma nova verdade sobre a sua vida comum tornará o romance numa partilha emocional de possibilidades abertas sobre ícones cujos segredos o leitor já tendia a perscrutar.
Não tendo eu tal intimidade com a  história do casal, acabo por ver neste livro algo como um primeiro esboço da verdade que merece que procure ambos os romances que eles escreveram e, ainda mais, uma biografia objectiva sobre temas que são mais profundos do que umas quantas dezenas de páginas podem mostrar. (Se o chegarei a fazer é, claro, uma discussão inteiramente distinta da vontade assim despertada.)
Mas um esboço que é um retrato integral que sobrevive a qualquer grau de ignorância do leitor - que, estou em crer, nunca será tão grande assim que não conheça os traços gerais deste casal ou nem mostraria interesse nesta obra.
Este é um livro que tanto fala de duas personagens reais como constrói duas personagens por mérito próprio.
O casal Fitzgerald definiu os anos 1920 porque Scott Fitzgerald os escreveu e depois ambos trataram de os viver.
Essa construção de uma Era por via literária e vivencial é substancial a este livro porque marca a divisão principal entre a o tempo de maior e menos dignidade do casal.
A exploração da realidade na ficção de cada um torna-se o principal e definitivo motivo de confronto entre ambos, com ela internada como histérica e ele bêbado sem capacidade para escrever com a qualidade anterior.
Até que cheguem a esse ponto, a indistinção entre as vidas deles e as histórias dele era motivo de enorme prazer e com poucos problemas então sentidos.
Zelda tornou-se nun ícone do desafio das convenções roubando a atenção à sua volta. Francis Scott brilhava no convívio com a multidão aduladora.
Criavam e mantinham um estilo de vida mesmo quando já não o podiam fazer e, também porque viviam em excesso a criação que ele devia colocar em papel, começaram a ver a sua estrutura de casal desmoronar-se tão rapidamente quanto a forma de ilusão que os equiparava directamente à década em que se moviam.
O casal é tocado pela tragédia auto-infligida mas nesta história é sobretudo ela que fica mal tratada. Uma mulher a quem foi roubado tudos ao longo da vida, sempre de maneiras distintas mas sempre por via de subterfúgios dados ora como naturais ora como acidentais.
A reputação, um filho, o verdadeiro amor, a possibilidade de ser bailarina, a vontade de ser escritora. Tudo isto lhe foi retirado ao longo da vida. Em cada momento a crueldade subindo de tom mas com as marcas de cada perda adiadas.
Até que chega o momento em que não é o azar do destino que lhe retira o que ela tanto fazia por merecer (deixemos o talento de lado) e todas os dramas lhe caiem em cima mostrando que foram os homens - com prevalência do seu marido - que lhe custaram que seja uma carcaça tratada a choques eléctricos e não a bela mulher que encantava multidões.
A menina do Sul dos Estados Unidos da América subiu ao topo da fama mas, para tal, foi perdendo todas as aspirações que uma digna filha de Juíz, também porque a promessa de uma vida de topo que o Alabama lhe trazia aconteceria num lugar pequeno demais para ela.
Se teve culpa de começar a perder a sua hipótese de ser uma mulher independente como o espírito da época - que era, também, o seu próprio espírito - lhe exigia, foi o marido que lhe terminou com as aspirações no roubo maior: o da sua vida enquanto matéria escrita e o da sua matéria escrita enquanto moldagem da sua vida.
Alabama Song é, portanto, o apagamento de uma mulher de enorme dimensão por detrás do poder de um homem falhado.
Isso o torna mais do que um texto dependente da fama das figuras escolhida, antes tornando tal fama numa forma de evidenciar como este tipo de drama a dois era inevitável, fosse qual fosse o meio em que o casal estivesse inserido.


Alabama Song (Gilles Leroy)
Esfera do Caos
1ª edição - Novembro de 2008
176 páginas

domingo, 11 de março de 2012

Um bom e velho thriller político moderno

Malgrado o título sonante e a forma espalhafatosa como é estampado na capa do livro, Assassino Americano não é um chorrilho de cenas de acção e morte apontadas ao gosto patriótico Republicano.
Aquilo que o título verdadeiramente vem a revelar é que Vince Flynn sabe como lançar o isco para o que é uma história de origem do que virá a ser um homem ao serviço das tomadas de decisões mais obscuras e secretas da CIA em nome da manutenção do mundo livre.
Com isso, além de uma interessante história individual, o autor tem ainda possibilidade de incluir alguma reflexão de fundo sobre a actuação americana nos muitos conflitos em que participou de forma directa ou velada.
Fala da responsabilidade de algumas decisões políticas americanas na geração do terrorismo que agora coloca em causa o país ou do tipo de manobras - tortura, por exemplo - que os equiparam aos países que tanto censuram.
A sua apologia do grande herói americano, com tanto de instinto e individualismo quanto de treino, não vem sem um claro sentido crítico para com o contexto onde este se insere.
Por isso é que Assassino Americano surge como uma conjugação das velhas e novas formas de abordar o thriller político.
Das velhas retira o foco nas personagens e a multiplicidade de facções políticas - e consequente densidade de relações. Das novas retira o heroísmo violento e solitário e a pontuação do ritmo pelas cenas de acção.
A mistura é potenciada pelo período em que o livro decorre, onde a Guerra Fria começa a dar lugar às actividades da Jihad Islâmica.
Claro que o que acabamos por acompanhar com mais interesse é a história individual que já referi e que parece merecer o investimento que promete vir a ter de ser feito ao longo de uma série de romances com o protagonista.
A composição de uma estrutura de agentes altamente capazes mas descartáveis por não possuírem uma ligação directa à CIA não é particularmente original. Nem a forma como Mitch Rapp acaba por ser escolhido para esta unidade de combate ao terrorismo - o desejo de vingança pela morte da sua namorada num atentado contra um avião.
Já o desenvolvimento da personagem e o conjunto de decisões que toma no terreno tornam-no mais interesse e desenvolvem matizes na sua personalidade. E as suas relações com os seus superiores - tanto no tempo de treino como já em pleno período activo - são muito bem exploradas.
Para o fim deixei o destaque que, quanto a mim, traz um merecimento de distinção a Vince Flynn. Se os parágrafos acima poderão ser usados para muitos autores igualmente capazes de misturar acção em doses moderadas de ensaio político, menos serão aqueles que demonstram ser, de facto, escritores.
Vince Flynn arriscou uma estrutura de vagabundagem temporal que controla com precisão para gerar expectativa sem deixar o leitor perder-se.
Isso torna o livro em algo mais do que uma leitura de inconsequente ocupação dos tempos livres para a tornar numa apreciação de talento.


Assassino Americano (Vince Flynn)
Clube do Autor
1ª edição - Setembro de 2011
440 páginas

domingo, 4 de março de 2012

Um mundo promissor e a protagonista que o ocupa

A saga Os Jogos da Fome é apontada a um público juvenil, como bem se poderá ver pelo triângulo amoroso que percorre a quase totalidade dos volumes (mas que, para ser justo, não é uma obsessão permanente).
Se consegue, em sentido inverso, seduzir um público de faixas etárias mais variadas é porque sabe construir, no pano de fundo da acção, uma abordagem cujos elementos políticos importam tanto quanto os elementos individuais ligados à protagonista e, mais ainda, sabe utilizar o tal triângulo amoroso como elemento de desenvolvimento desse pano de fundo.
Pois se é a acção - agora no sentido com que se usa para definir um género contendo um conjunto alargado de obras de ficção - que torna estes livros numa leitura que se deseja fazer sempre num contínuo veloz, é pela forma como estes integram e fazem reflectir sobre expedientes políticos - que, da ditadura à democracia, continuam a ser usados sem excepção - que eles vão além da distracção inconsequente.
A construção do mundo futuro com elementos políticos que seriam então arcaicos - sejam os Jogos Romanos ou a Guerra Fria - sublinha algo mais importante do que a realidade mais óbvia da crítica aos limites modernos do voyeurismo televisivo, algo que já era parte da provocação de Battle Royale (e falo, neste caso, do filme e não do livro que lhe deu origem e que não tive oportunidade de ler).
Começando pelo controlo da população pela imposição de medo perpétuo (algo que também não era estranho a Battle Royale) através da transmissão televisiva e visualização obrigatória por parte da população sob o jugo tirânico, a saga vai mostrando que a propaganda pode ser uma arma essencial na política.
A utilização de um instrumento tão pouco controlável mas tão abrangente como a televisão - em directo, ainda para mais - torna a situação mais interessante pois a manipulação torna-se recíproca e vai mesmo para lá disso.
Se o ditador a usa para controlar a população, também os protagonistas dos Jogos da Fome revelam que sabem muito bem como utilizar a sua presença perante as câmaras e, finalmente, é a própria audiência, incluindo aquela que está absorta pela propaganda e pelo gosto pela violência, que manipula o resultado do que está a acontecer recusando a morte dos heróis que se vê formarem nos ecrãs.
Outras considerações têm de ser feitas a propósito dos intervenientes que produzem o evento para a televisão. Os produtores, os estilistas, os maquilhadores...
Por mais pequeno que seja o seu papel, fica por saber (antes de algumas revelações de crença do política dos mesmos) se estarão obrigados a criar o melhor programa possível em que os jovens que vão morrer são apenas mais uma ferramenta ou se serão fanáticos igualmente culpados pela barbárie da qual retiram prazer em funções artística em vez de políticas. Uma questão que seguiu Leni Riefenstahl toda a sua vida e que implica julgamente morais além de estéticos para com a sua obra.
Em direcção ao final da saga a propaganda - bem como a encenação, a manipulação de afectos para com as personagens heróicas e alguma falta de escrúpulos naquilo que é filmável - revela-se como uma arma que ninguém pode ignorar, transitando do Governo para a Resistência e sendo usada efectivamente tanto como arma como contra-arma na exposição das falhas de segurança e da insegurança que deveria permanecer fora de câmara.
São temas que preencheram boa parte do Século XX e que mesmo agora estão em discussão; que não se perdem desde que e enquanto existirem meios de comunicação activos e populares onde os graus de liberdade - visados, executantes e audiência, pelo menos - estão para lá de qualquer possibilidade de controlo absoluto.
Mas este não é um conjunto de temas que a autora trate de perseguir e, não haja dúvidas, nas mãos de um autor mais interessado num público adulto (e, portanto, que colocasse um pouco de parte a protagonista) este pano de fundo - que é a essência do mundo distópico do futuro, afinal de contas - seria o verdadeiro protagonista.
A obra alternativa seria mais rica mas, eventualmente, ler-se-ia com menos ritmo. Não creio que tal fosse mau para o público juvenil a que, primeiro, apontava a obra, mas talvez apagasse aquele que é o forte da autora.
A sua escrita é eficaz porque, colando a narrativa à jovem Katniss Everdeen, esta constrói a sua personagem enquanto esta está em acção ao invés de tentar separar momentos de reflexão de momentos de execução.
Interagindo com os elementos que a rodeiam na arena ou tentando perceber os fundamentos de planos que só lhe são revelados parcialmente ou por sugestões fragmentadas, Katniss mais do que se revela como personagem, evolui.
Katniss não é a perfeita combatente, mas tem a vantagem do instinto prático. Já no que toca à relação com a sua construção como heroína televisiva, ela é a menos capaz de entender o valor e a forma de lidar com tal situação. E, no entanto, as suas debilidades não desaparecerão por completo, mas darão lugar a formas pessoais de se salvaguardar e de levar por diante a libertação de um povo que a toma como inspiração apesar da sua falta de vontade.
Há um grande senão a fazer a esta descrição das forças da autora. Ao terceiro livro desvia-se parcialmente deste tipo de relação com a protagonista e divide o foco, sobretudo, com a realidade da Resistência.
O terceiro livro aprofunda a forma como se chegou àquele ponto de conflito, o que pareceria ir de encontro às expectativas de aprofundar as alegorias sobre o mundo passado e presente.
Não vai porque o conteúdo dedicado à guerrilha e às armas do poder instituído acrescenta muito material que parece não ligar bem com o resto da saga mas, sobretudo, obrigaria a que a escrita encorpasse em vez de continuar a depender da execução rápida e de uma personagem que já está quase totalmente definida (mesmo se lhe peçam ainda para assumir um novo papel).
O terceiro livro não se lê como os anteriores pois ao expandir a visão sobre os acontecimentos deste universo criado deveria ter também deixado de ter a âncora em que se transforma a protagonista depois de ter deixado de ser o elemento aliciante e individualizante da vivência no interior da arena onde decorriam os Jogos da Fome.
Até porque, se formos a olhar ao arco narrativo global desta trilogia, é em Peeta Mellark que encontramos uma personagem mais complexa e interessante.


Os Jogos da Fome (Suzanne Collins)
Editorial Presença
2ª edição - Outubro de 2011
256 páginas


Em Chamas (Suzanne Collins)
Editorial Presença
2ª edição - Outubro de 2011
268 páginas


A Revolta (Suzanne Collins)
Editorial Presença
1ª edição - Novembro de 2011
280 páginas