segunda-feira, 28 de junho de 2010

Não me deixei infectar

Scott Sigler tem uma boa dose de talento como escritor. As suas descrições são ricas e vê-se que ele se demora nelas com muito conforto.
No entanto, esse talento é um contra-senso num livro assim, um livro a pedir velocidade de execução, ritmo frenético de leitura e incapacidade de nos contentar com meia dúzia de páginas de cada vez.
Estamos a falar de um livro disposto a disputar o campeonato da imagem. O tema, o género, a forma, tudo isso aponta para o tipo de história que veríamos numa série televisiva.
Mas quando a descrição pormenorizada de Sigler invade o texto, o leitor perde o embalo em que já seguia. A culpa não é só da qualidade da descrição, mas das suas características.
Explorando ao pormenor de um realismo obsessivo cada descrição, Sigler traz-nos mais informações do que aquelas que precisamos.
Que interessa em que cruzamentos de que ruas estão estacionados três carro que rodeiam uma casa, se não reconheço nenhuma dessas ruas. Para construir o cenário do que está descrito ali bastava-me uma breve frase com a disposição dos mesmos em vez de um parágrafo com nomes que nada me dizem.
Isto vai desgastando o leitor que tão depressa acelera pelas páginas fora como de irrita com outras tantas que o demoram.
Acabei por pousar o livro e não vejo hipótese de a ele voltar. Talvez ainda pergunte a alguém como acaba, mas nem mesmo isso me desperta tanto interesse assim neste momento.


















Infecção (Scott Sigler)
Gailivro
1ª edição - Setembro de 2009
456 páginas

sábado, 26 de junho de 2010

Os sacramentos do livro

Papel a Mais junta um interessante conjunto de trabalhos do seu autor e de outros autores seus amigos, da poesia ao conto, da crónica ao desenho.
Mas o destaque do livro vai todo para as primeiras 60 páginas em que o autor faz uma introdução ao livro que é um percurso de vida o que, para um livreiro-poeta-leitor, se trata de um percurso da relação com o livro.
A descoberta do objecto raro e precioso, o prazer de finalmente poder escolher e comprar o seu próprio livro, a procura de criar o seu próprio livro, o trabalho de escolher e publicar os melhores livros dos que estavam à sua volta e o privilégio de poder cuidar dos livros que os autores entretanto tornados seus amigos lhe confiam.
A única constante de tudo isto é o prazer e a devoção pelo livro. Para um jovem a estudar no Seminário e que por lá encontrou, pela primeira vez o livro, pode falar-se de um percurso pelos sacramentos do livro.


















Papel a Mais (Resende Ventura)
Esfera do Caos
1ª edição - Novembro de 2009
312 páginas

quinta-feira, 24 de junho de 2010

A bela guerra

Olha-se para a capa de Se Houver um Paraíso e aquele perfil a contraluz é de uma beleza inquestionável. Não importa que ele esteja a perscrutar o horizonte para enfiar com precisão absoluta uma bala mesmo no meio dos olhos de uma outra pessoa.
Assim pode a arte transformar a guerra num motivo de admiração e beleza, sobretudo se tem uma linguagem rica, inventiva e enérgica como este livro.
A partir dela ficamos invejosos do grau de camaradagem que estes soldados vivem. Das suas provocações, piadas, lutas e partilhas. Das suas emoções mais palpáveis do que as de quaisquer "civis" e das formas que inventam para lidar com elas, de as experimentarem e de as reprimirem, de se deixarem ir com elas.
A arte, como a guerra, não é moral. É um acto, quanto muito uma interpretação. A moralidade de tudo isso vem da nossa avaliação de tais actos. Se sentimos vergonha de invejar a vida daqueles que sofrem no interior do conflito, é a nossa consciência que a isso obriga. Se sentimos embaraço de admirar a beleza da morte, é a nossa susceptibilidade que nos afecta e não a obra em si.
A arte está para nos despertar um olhar sobre algo que tem de nos manter interessados para que sozinhos possamos depois reflectir.
Se invejámos a camaradagem, também acabaremos aflitos e emocionados com as perdas destes homens. Não somos, afinal, menos humanos, portanto, não precisamos de nos amedontrar com o que de errado se passa connosco.
O livro faz da presença israelita no Líbano um admirável trabalho, fascinante, mas que acarreta emoções. Como a silhueta da capa, é bela quando nos chega aos olhos, mas é perversa quando nos toca a consciência da nossa própria percepção.
O fascínio é profundamente humano, tal como o acto da guerra, tal como a emoção. Tudo tem o seu lugar, errado é não admitir que todos estão dentro de nós, de uma forma ou de outra.


















Se Houver um Paraíso (Ron Leshem)
Contraponto
1ª edição - Fevereiro de 2010
296 páginas

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Muito mais que cabras

Acaba-se de ler este livro e nem se sabe bem o que verdadeiramente havemos de reter dele, não porque seja disperso mas por ser inesgotável.
Esta reportagem sobre um dos mais absurdos empreendimentos humanos, sobretudo tendo em conta que parte do interior do exército americano, faz um retrato lato e complexo mas subreptício da condição humana.
Basta olhar como todo o projecto do exército de guerreiros jedi parte do interior do exército mais poderoso do mundo, um mundo de seriedade que à conta da derrota no Vietname busca uma redenção espiritual que lhe permita vencer a guerra sem a lutar, apenas encantando os inimigos que se lhe apresentar. Um contra-senso feito de música apaziguadora, ofertas e olhares de encantamento.
Um contra-senso que acaba, eventualmente, desfeito e transformado na essência da instituição que a contemplou, uma arma bizarra e incerta, motivo de piadas e de uma perseguição jornalística que fica como uma cómica epopeia.
Todo o projecto, uma forma de pacificação espiritual global revela-se ao longo dos anos uma forma de absurdo em todas as suas formas. Os super-poderes outrora pensados como capacidades inatas (e, daí, razoáveis) ao ser-humano e geradoras de um maior entendimento de si mesmo e do outro, tornam-se, a nível individual, na obsessão de quem corre sistematicamente contra uma parede tentanto atravessá-la, de quem gasta três dias a olhar para um hamster até o matar ou de quem prevê e anuncia ao mundo o fim do mundo numa base quase diária - independentemente de falhar numa base também tão sistemática. Mas a nível colectivo tornam-se na motivação para melhor perturbar e causar dano ao outro.
O exército perdeu o seu rumo quando foi derrotado e procurou uma forma atípica de se perdoar. Foram momentos de catárse, humana e institucional, que passaram quando a consciência do que a instituição representa voltou ao de cima.
A partir de um ponto tão pequeno, toda a ramificação da realidade a partir daí ganha em complexidade e em imaturidade - ou inocência, dependendo do cinismo pessoal do leitor - e, daí em diantes, só o absurdo é possível.
Aqui trata-se de olhar os homens e as suas crenças, os homens e os seus logros, os homens e as suas ilusões.
Ninguém, nem o exército americano, se livra da necessidade de esperança mas também ninguém, nem o exército americano, se livra de arruinar tal sentimento.
São muito mais do que as cabras que aqui interessam, são realmente os homens que para elas olham.


















Homens que matam cabras só com o olhar (Jon Ronson)
Civilização Editora
Sem indicação da edição - Janeiro de 2010
232 páginas

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O eterno policial típico

A Europa-América tem vindo a construir uma colecção muito consistente de literatura policial.
Ritual é mais um caso exemplar disso mesmo combinando elementos enriquecedores que permitem que o livro supere a categorização ou a tipificação da sua audiência.
Neste caso trata-se de combinar o policial com um eficaz retrato de realismo social da Inglaterra contemporânea onde a emigração ganha um peso relevante a níveis que nem sempre exposto; e igualmente com uma inteligente inclusão das crenças e das suas práticas no seio do crime, tanto daquele mais comum como do que assume uma perspectiva mais grotesca.
Isto, claro, assente no que ainda é o essencial de qualquer livro para se relacionar com o leitor, uma história em torno de personagens cujas características e acções apelam a quem as segue e que acaba por as querer reencontrar.
O policial é tanto o género em que se correm riscos e se procuram temas e narrativas radicalmente originais, como aquele em que se preserva a mais clássica das formas literárias.
Por isso, também, o policial continuará a ser um género de grande público e capaz de resistir à passagem do tempo.


















Ritual (Mo Hayder)
Publicações Europa-América
1ª edição - Março de 2010
360 páginas

domingo, 13 de junho de 2010

O homem comum

O interesse que têm as vidas destes Intelectuais não se prende com uma qualquer forma de coscuvilhice. Se fossem apenas pormenores da privacidade dos homens que dão corpo a autores, este livros seria um desperdício de papel.
O que aqui se analisa é a forma como os autores que se dispunham a alterar o pensamento humano respeitaram pessoalmente o que "pregavam".
Nenhum dos homens que aqui estão retratados parece ter sido capaz de justificar pelo exemplo a correcção dos seus argumentos.
Estes são homens capazes de reflectir abstractamente mas incapazes de lidar com a realidade das suas emoções. Homens capazes de criar teorias a partir do vazio ou de um mínimo de informação mas incapazes de se relacionarem com a humanidade que tanto pretendiam influenciar.
Os intelectuais aqui analisados podem ter sido génios mas não tinham sentido auto-crítico nem uma compreensão individual de moral que os ajudasse a comandar as suas vidas pelas suas próprias ideias. Viviam desfasados do que pensavam, indulgentes aos seus caprichos pessoais.
As suas emoções eram a fraqueza pela qual se tornavam nos mais narcisistas exemplos daquilo que pretendiam erradicar pelas suas teorias.
O que este livro prova é a banalidade dos homens que se resguardavam por detrás de uma pensamento extraordinário. A obra mantem-se imaculada - pelo menos nos casos em que a obra é, sem qualquer dúvida, genial - mas as suas ideias deixam de ser encaradas com reverência para serem colocadas ao nível em que todas as ideias devem estar.
Mesmo tendo alterado o pensamento da humanidade, estes intelectuais podem e devem ser questionados, tanto para compreendermos as suas ideias como para delas nos aproximarmos.
E se estes intelectuais sofriam de uma tão grande discrepância entre o que eram e o que esperavam dos outros, o homem comum pode, felizmente, sentir-se menos dilacerado pelas suas contradições.


















Intelectuais (Paul Johnson)
Guerra e Paz
1ª edição - Janeiro de 2009
496 páginas

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Poeta sentido

Eis um poeta que escreve, em absoluto, a partir das suas emoções, daquelas que ia vivendo a cada momento e que se traduziam depois no imaginário que ele traduziu em palavras.
Este poeta não escreve a partir da racionalidade do sentimento (re)criado, mas do que lhe era dado a sentir e que compreenderia ao mesmo tempo que o traduzia em palavras.
Alberto Riogrande não evita, por isso mesmo, que algumas imagens supérfulas se inscrevam nos seus poemas.
É a vontade de prolongar o momento ou o efeito, algo natural a quem sente e que não tinha como se aperceber disso mesmo na altura.
Sente-se que o verso e a sua imagem poderiam resultar melhor na simplicidade que antecedia o verso que se segue - apenas um floreado a pontuar a imagem já estabelecida.
Isso não retira aos poemas de Riogrande o melhor da sua capacidade de criar pequenos universos nascidos à flor da pele que debitam sensualidade e que existem como espaço de dedicação à feminilidade.
Feminilidade sempre carnal, umas vezes de beleza doce, outras de tormento áspero. Assim resumido parecerá, obviamente, banal e tolo, mas as imagens não o são.
Num país de Poetas, Riogrande tem lugar e não desmerece o epíteto.


















A lua no teu umbigo (Alberto Riogrande)
Esfera do Caos
1ª edição - Maio de 2010
128 páginas

sábado, 5 de junho de 2010

Alienado de si mesmo

Um homem não se perde quando dá por si sem saber o caminho de casa num país cuja língua desconhece.
Um homem perde-se quando tem de abandonar o seu próprio país convicto de que lá nada de bom lhe resta.
Depois, o seu périplo desventuroso pelo labirinto que é uma cidade ininteligível por completo, é a concretização do seu desmembramento interno.
Anda à deriva com a mulher e o filho ao lado, tentando, sem qualquer sucesso, reencontrar o caminho para casa.
Mas a sua deriva, que começa pela falha de comunicação, cresce porque ele é incapaz de dialogar com a sua própria existência.
Este homem não acredita em nenhuma das suas decisões, não se aceita como pessoa, nem sequer se permite manter num percurso que tenha sido o acaso a decidir de tão paranóico com o falhanço - o seu falhanço, sempre, obviamente. Mesmo quando toma a decisão de recorrer ou matar Deus, tem relutância em depois aceitar e manter tais actos, retirando a promessa de retribuição ou restituindo-lhe a vida, porque não acha sequer que Deus lhe possa emendar a existência errante. Nada de si mesmo lhe parece correcto.
Daí que lhe seja impossível atravessar o mundo em linha recta. A sua deriva é física porque não resta outra forma de expressão à deriva da sua existência.
Um homem alienado de si mesmo é um homem para quem não há esperança, a menos que ela venha do exterior de si. Seja este emigrante sem conhecimentos da língua ou seja outro homem qualquer com a vida de aparente normalidade.

Ricardo Adolfo trata as palavras com uma mestria admirável, usando a linguagem ao estilo "da rua" com dignidade e dela retirando os maiores proveitos.
Com termos convencionais, quotidianos e que pouca importância daríamos ele cria parágrafos de enorme força e surpreendente deslumbramento. Uma sofisticação escrita a partir de ferramentas que se diriam toscas.
Ele, que neste momento, olha para Portugal a partir de fora, parece ter uma maior percepção do que por cá se passa do que muitos dos que passam o tempo a opiniar, bem como da maneira mais imaginativa de usar a Língua Portuguesa.


















Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas (Ricardo Adolfo)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Setembro de 2009
200 páginas