quinta-feira, 18 de abril de 2013

Aprender Português

Não foi só por cá que Axila e outras histórias indecorosas foi lançado em simultâneo com José. Foi assim no Brasil, como se Rubem Fonseca quisesse com este livro compensar os leitores daquele outro.
Como se, sabendo ele que as memórias que dera em escrever não correspondiam à literatura que queria apresentar, beneficiasse os seus leitores com um conjunto de contos onde as suas melhores características se evidenciam.
Aquela forma sucinta de narrar tudo o que é essencial, evitando os artifícios narrativos que deveriam simplificar a tarefa de um escritor mas que parecem levar ao excesso de palavras. São as acções que acabam por adjectivar os personagens que as executam.
Aquela aspereza com que brinda as suas personagens, que devem existir na folha como se as tivesse visto a passear pela cidade. É a cidade que se faz cenário priveligiado para Rubem Fonseca e que aglutina o pior da natureza humana.
Aquela forma de conjugar a violência e o desejo, a crueldade e o humor. A natureza humana retratada pela brevidade do confronto entre a indiferença com que se mata e o entusiasmo com que se ama.
O domínio de Rubem Fonseca sobre as ferramentas de escritor que criou para si mesmo continua no seu máximo, causando o vício eufórico do leitor.
É no conto que os talentos de Rubem Fonseca sobressaiem, porque a vertigem da linguagem é tanto maior quanto menos superfície tem para explanar as considerações do autor.
Tudo isso fica bem evidenciado num dos contos do livro, Livre-Alvedrio, que merecerá figurar entre o conjunto dos seus melhores. Um noir, como sempre deu algum jeito para que Rubem Fonseca juntasse morte e sexo, secretista até ao último - e doloroso e magnífico - parágrafo e com uma eficácia desobrigada que Raymond Chandler teria gostado de reclamar para si mesmo.
Tudo o que está escrito neste conto tem maneira de desabrochar em leituras mais completas e complexas que romances com cem vezes mais páginas nunca encontram forma de projectar no leitor.
Ainda assim, a antologia está bem longe de ser perfeita. Há alguns contos que parecem reciclar ideias com a veleidade de quem se começou a citar a si próprio.
A presença, repetida em vários contos mas com protagonismo diverso, do detective Guedes de Bufo & Spallanzani denota que há um encerramento do escritor num seu universo que deixou de se expandir, também porque o Brasil parece vir perdendo as formas de violência que durante muito tempo lhe alimentou a ferocidade.
Claro que isto significa que as suas obsessões predilectas continuam todas lá, embora a possamos resumir numa: carnalidade. Ora pelo sexo, ora pela morte.
Há muitas mulheres que a geram pelas duas vias ou, melhor dizendo, que merecem a morte (aos olhos do narrador) porque colocaram em causa o sexo.
Poderia falar-se em machismo dominante, mas se os homens de Rubem Fonseca estão sempre à procura de uma justificação e de uma forma para se livrarem das suas mulheres é porque começam a sofrer com o convívio prolongado e constante... com a humanidade. A solidão - e as liberdades que isso proporciona - é o estado favorito das personagens masculinas de Rubem.
Embora também haja motivos mais mundanos, daqueles que são das personagens mas devem pertencer ao autor. Afinal de contas, alguém diz a páginas tantas que há três coisas que odeia em mulheres: peitos de silicone, tatuagens e burrice.
Tudo relacionado com o coito, com o durante e o depois, mas também com o envelhecimento. Não poder trocar umas palavras depois do sexo é tão mau como não poder trocar umas palavras ao longo da vida. Um corpo alterado envelhece ainda pior em torno das "partes falsas". E lá estão de novo os homens e a olharem para um futuro juntos e a conseguirem descobrir como lhe fugir...
Nestes contos, mais do que em José, em que Rubem Fonseca se fica pelos seus primeiros anos e foge vezes demais ao que interessa saber, ficamos com uma ideia do que ele pensa e de como ele é.
A maneira como integra nas histórias alguns parágrafos de dispersão do tema central, apenas para poder dar a opinião do personagem - que será a sua - é perfeita.
Opiniões que vão desde o que não gosta numa mulher até a considerações sobre o Acordo Ortográfico, já no penúltimo conto.
Escreveu Rubem, sobre um acento, que fica sem saber onde o colocar e que, se o mandar "meter aí" só os leitores portugueses o perceberiam. Ainda bem que ele se lembra de nós, do lado de cá do Atlântico, mas ainda bem que ele continua radicado no seu próprio país, retirando inspiração de Machado de Assis para Axila, por exemplo. Porque se em José recordava ao seu país os nossos escritores, agora relembra-nos a nós os escritores que por lá reinventavam o Português.
Como ele próprio continua a fazer, mesmo se algumas das suas ideias já não têm a força dos seus melhores anos. A sua escrita contista continua a ser para acompanhar sem falta!


Axila e outras histórias indecorosas (Rubem Fonseca)
Sextante Editora
1ª edição - Outubro de 2012
144 páginas

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Biografia envelhecida

Desta vez Rubem Fonseca escreveu um livro que é uma autobiografia dos seus primeiros anos. Ou julgamos que é, queremos acreditar que sim.
Ficamos a saber que Rubem Fonseca, que sempre cultivou uma certa violência de abordagem, está demasiado perto de si mesmo para revelar mais do que já fez.
Mesmo se escreve na terceira pessoa, para se distanciar da personagem José que leva o seu primeiro nome e que guarda a sua origem portuguesa, não consegue Rubem Fonseca deixar de se levar pelos sentimentos.
Até um velho autor duro lacrimeja quando escreve sobre a mãe, o primeiro amor, a descoberta da literatura, a descoberta do sexo, entre outros temas que formam o carácter de um homem enquanto ele ainda não é adulto - o livro termina aos 29 anos de José, o que nos deve fazer 
Alguns destes temas acabariam por se tornar os temas constantes do autor - ou não tivesse Rubem começado a escrever logo aos 18 anos, num livro que se perdeu e que adiou o escritor até, quase, aos 40 - e são os que surgem melhor tratados, por serem naturalmente seus.
Para os outros, aqueles que não podem terminar em ironia violenta, Rubem parece ter pouca prática e demasiado coração. Como quando escreve sobre a mãe e como os restos dela eram a delícia dos três filhos.
O relato é de uma descrição directa, mas é impossível não ler uma metáfora para a qual tocante é o adjectivo obrigatório. Estilisticamente Rubem claudica, treme-lhe a mão, e ele vai povoando o parágrafo com redundâncias frásicas.
São pedaços de texto onde o controle do escritor sobre o homem falha e, portanto, aqueles em que Rubem é verdadeiramente José.
Entre os pedaços de prosa ora de Rubem ora de José, fica o espaço para as referências várias, sobretudo a escritores portugueses, que moldaram o homem e libertaram o escritor para o que ele sabe fazer com as palavras. Afinal, ele escritor é quem refere que "a melhor inspiração ... é sempre encontrada nos livros".
Nas referências também faz ressoar a ligação que tem tanto a Portugal como ao Brasil, origens parentais e literárias.
As descobertas de José são as memórias de Rubem e os ensinamentos do leitor, no caso de não conhecer, não valorizar ou não usufruir dos homens que formaram a maneira como o autor usa a Língua Portuguesa, sem leis restritas - acordos, se preferirem - para dizer como é a ortografia. Aqui é conhecer profundamente a Língua e os seus escritores maiores para depois inventar melhor.
Uma maneira, também, de religar as duas margens do Atlântico que já partilhavam o talento dos seus melhores escritores antes de lhes dizerem para padronizarem a escrita.
Julgo que essa é a missão que Rubem guardou para o seu livro, a de usar a sua ascendência portuguesa para apelar à memória da ligação que está por construir.
Admira-se a sua intenção, mas não a maneira como ela o faz dispersar-se no momento de afirmar que o Passado era melhor.
Porque Rubem lá vai escrevendo que o Passado literário era melhor, para acrescentar que também o Passado brasileiro era melhor. Os elogios de tempos em que orgias se faziam à porta fechada parecem um anacronismo num autor que nunca dispensou o Brasil violento como alvo da sua melhor literatura.
Como leitores aceitamos que Rubem tenha sentido, do alto dos seus (então) 86 anos, a vontade de voltar a ser o menino José por algum tempo.
Aceitamos, também, porque discreto como é nos permite assim sondar um pouco mais da sua figura, mesmo que ao mesmo tempo adense a sombra de ficção que sobre ela paira.
Mas deixamos-lhe o aviso de que não aceitamos que se volte a deixar perder, literariamente, nos meandros de uma emoção que lhe atrapalha o domínio que tem sobre a Língua Portuguesa.
Porque se há prazer nesta leitura, é pelo jogo de espreitar para detrás da cortina (de uma delas, pelo menos) e descobrir o homem que continuamos a moldar através da sua ficção (deverá haver outra cortina a esconder o homem por detrás desta figura).
Enquanto obra literária não é um livro de Rubem como os que nos enchem de prazer, revelem-se obras maiores ou menores do seu percurso.
Rubem Fonseca escreveu sobre a sua (possível) infância, mas esta é antes uma biografia da sua velhice - e da velhice humana, desconfio - que tem de materializar - em palavras, neste caso - as memórias afectivas e a sabedoria pedagógica dos seus anos acumulados.


José (Rubem Fonseca)
Sextante Editora
1ª edição - Outubro de 2012
112 páginas

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Irrealismo canalha

Gosto de Charles Bukowski, embora não tenha lido tudo quanto queria da obra dele. Gosto da maneira desabrida como escreve mas, mais ainda, de como esparralha a sua existência nessa escrita.
Um tipo encher os seus parágrafos de peçonha é um efeito que pode dar bom ou mau resultado. Um tipo transformar a sua própria misantropia desanimada em literatura - e com ela criar empatia no leitor - é um feito de que se pode gostar ou não mas não se pode negar.
Li-o pela primeira vez depois de o ver referenciado na contracapa de um livro de Pedro Juan Gutierrez - um favorito do qual prometo (a mim mesmo) reler (mais uma vez...) a obra toda - mas para o qual tem substanciais diferenças que não vou enumerar agora.
Só que como escrevem ambos sem impôr restrições morais às palavras e aos temas, logo catalogaram Juan Gutierrez no mesmo Realismo Sujo (ou não fosse o seu primeiro livro A Trilogia Suja de Havana) de que Bukowski é o criador, o mais merecedor de receber tal classificação nas suas obras e, provavelmente, o único que mais deu sentido à designação.
Confesso que não gosto da designação por não a achar correcta. Talvez seja porque em português o seu sentido se estreita, remetendo para os adjectivos que Scola usou no título do seu filme: feio, porco e mau.
Prefiro chamar-lhe Realismo Canalha, pois tem aquela abrangência que fala de baixeza e inocência.
Realismo Canalha está equidistante da ignorância e do desconhecimento das regras sociais. Ou porque se está numa classe marginal(izada) e elas pouca importância têm ou porque se está numa idade em que se encara o mundo ainda sem essa restrição.
Pense-se que patifarias são actos tanto das crianças como dos canalhas. Mudam apenas as motivações.
Mulheres - o primeiro livro que dele li e o que mais vivamente resiste na memória - era assim, um livro em que não me recordo de uma narrativa mas antes de uma pulsão para ir adiante contando cada uma dos casos cada vez menos satisfatórios que o protagonista vai tendo com mulheres conhecidas por uma noite só.
Como os livros de Bukowski são auto-biográficos, os seus protagonistas são alter-egos e os sentimentos que eles nos merecem são os mesmos que criamos para com ele, autor. Bukowski é, por isso, um simpático sacana de quem é ou muito fácil ou muito difícil gostar. (E a minha posição está assumida desde início, portanto sigo adiante.)
Pois o carácter auto-biográfico é o que liga os seus vários livros, até este que é o seu último. Uma obra em que uma das personagens centrais é a Senhora Morte num momento em que Bukowski se debatia com a última fase de um cancro.
Mas se a forma perdura, o tema parece escapar às suas forma de Realismo Canalha. Ele não escreve sobre a vida de uma personagem vinda do lado menos polido da realidade como a conhecemos.
Escreve sobre um detective privado a braços com os mais absurdos casos, sempre com a investigação metida em becos sem saída. Em seu socorro vem sempre o acaso e as mais extraordinárias criaturas: um extra-terrestre, por exemplo.
Aqui tudo é perfeitamente inacreditável e, no entanto, a atitude de Nick Belane (que nome fantástico para um detective) é a de calma aceitação.
Aqui temos de voltar a ler a biografia do autor na sua ficção. A leucemia e a morte são mais duas extravagantes irrealidades que ele aprendeu a aceitar, um homem apaziguado com a inevitável estupidez do destino que é igual para todos os seres humanos.
Na sua vertente de homenagem paródica a Chandler e Hammett, também ganha mais força se lido pelo prisma da própria vida do autor.
Pois quem não lhe tenha um carinho perverso não conseguirá aceitar facilmente as extravagâncias literárias de Pulp, mesmo sabendo das restantes origens que o inspiram - não esquecer que o livro está Dedicado à má escrita.
Quem não esteja habituado a tal mas aceite o desconforto dessa suspensão da descrença será recompensado com ironia e sarcasmo - ambos de génio - sempre em crescendo até ao delírio.
Já perto do final do livro, o diálogo com a operadora de linhas eróticas é daqueles que impossibilita que se contenha a gargalhada (negra, claro). Aliás, o recurso sistemático ao diálogo corrido por várias páginas é uma das ferramentas que melhor permite a Bukowski debitar os seus humores
Pena apenas que na tradução se percam alguns deliciosos momentos, como o trocadilho com detective e pila (dick).
Pelo contrário, na tradução não se perde a noção de um certo sentimentalismo - derrotado e insatisfeito, mas ainda assim um sentimentalismo (pouco habitual no autor) - pela humanidade, como que a perdoar-lhe as causas da misantropia de que sofria.
São as tiradas de alerta de um filósofo que só o poderia ser no limite do fim da vida, que avisa para os perigos próprios das nossas acções e das nossas considerações. Os seus avisos são demasiado certeiros para não pesarem sobre os leitores, apesar de contaminados com a devida ironia.
Belane alerta-nos para que a maioria dos homens não vive bem, vai-se desgastando ou que um bom bairro é aquele em que não temos dinheiro para viver. Espera-se que um dia essa sabedoria exerça o seu efeito.
O livro carrega ali uma beleza poética que resiste a ser lamechas, apesar de tudo o que acontecia a Bukowski. E se este alter-ego de Bukowski acaba o livro de bem com a Senhora Morte, Bukowski recusou-se a pontuar a sua obra com um livro mais afável.
Esta é a despedida afectuosa com os seus leitores - aqueles que aprenderam a encontrá-la e retribuí-la por entre a dureza - mas com o mesmo espírito do "vão-se lixar" que os agarrou a todas as páginas que vieram antes.
Quando naqueles dois capítulos brevíssimos - capítulos 5 e 10, de um parágrafo apenas - nos descreve a inutilidade de dias em que o que há para contar nada importa ou que nem sequer já tem algo para contar, estamos muito perto da ternura por quem confessa o desalento com o desperdício do tempo que já não tem.
Haveria mais a dizer, sobretudo sobre os simbolismos e referências várias que o romance guarda nos seus detalhes. Como estes se ligam com as influências, a vida e a aproximação da morte para Bukowski.
Mas isso deve ficar de fora deste texto para que algum leitor que (ténue esperança minha) se forme ao passar os olhos por este blogue.
Na verdade, não sei como voltarei a ler livros de um Bukowski mais enérgico e feroz depois de o ter encontrado tão mais tocante.
O grande absurdo do seu livro é o realismo a que nos obriga a viver depois dele. No final, Bukowski não nos poupou ao seu estilo de vida e de escrita.
Diria que Pulp pertencerá ao género do Irrealismo Canalha, cheio da inventividade que nos faz julgar estar perante um agradável escapismo antes de nos vermos confrontados com a rispidez literária sobre os aspectos da vida que todos partilhamos.


Pulp (Charles Bukowski)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Setembro de 2012
240 páginas

domingo, 14 de abril de 2013

Ser grande é apontar aos grandes

Olho para trás, para Agosto de 2009, e espanto-me de ter escrito tão pouco acerca de um livro que constituiu uma das mais surpreendentes descobertas de um autor que fazia em algum tempo.
No entanto, por pior que a transmitisse, já lá estava a ideia principal que agora tenho de voltar a destacar, a da enorme coragem de Rosa Montero ao escrever na herança directa de grandes nomes.
Coragem porque esta acção de assumir frontalmente a linhagem de um outro autor não costuma acontecer porque permanecem as ideias de que o resultado será sempre um falhanço - em comparação com... - e porque atestará das intenções arrogantes do autor - querendo fazer-se notar como...
Em ambos os casos o medo surge por antecipação nos autores e vamos vendo obras que deveriam transformar a literatura - como a banda desenhada, o cinema, etc... - como que esquecidas a cada nova criação, embora influentes a título pessoal.
Rosa Montero, pelo contrário, cria novas obras dentro de uma tradição excepcional. E se não é possível arriscar mais do que com a obra de Cervantes - ou não fosse o destacadíssimo primeiro lugar na lista dos cem melhores romances (tal como votados por escritores de todo o mundo) em que não era atribuída uma classificação - atirar-se ao universo de Philip K. Dick e a sua leitura visual (mas não só) feita por Ridley Scott não andará longe do mesmo risco dentro do género da Ficção Científica.
Quem não reconhecer o título do livro como o título de uma icónica cena de Blade Runner, reconhecerá logo nas primeiras páginas os replicantes.
A autora não se limita a integrar ou adaptar um universo alheio à sua sensibilidade. Neste caso, ainda mais do que com História do Rei Transparente, Rosa Montero transforma a herança literária para que fale de temas que lhe são essenciais. Com aquele livro era a condição feminina no mundo (tanto antigo como presente). Com este é a sua Espanha e a (eventualmente) sua Europa, para onde a acção passou agora depois da Los Angeles de 2019 (sobretudo esta metrópole inventada que se reflecte nas descrições de Madrid).
Dois espaços geográficos e políticos onde as forças políticas radicais conseguem cada vez mais usar as circunstâncias para se exibirem e ganharem apoiantes, onde as maquinações secretas se multiplicam, onde os verdadeiros decisores permanecem na sombra.
Mas este texto não se limita a lançar um aviso sobre o nosso presente. Na sua distância temporal aproveita para fazer a crítica de um futuro que está a formar-se para breve.
Um futuro onde a preservação da memória se arrisca a ser corrompida de forma muito mais evidente. Se antes os vencedores escreviam a História tal como lhes interessava, agora qualquer um escreve a História como lhe interessa. E tal versão anónima e incorrecta persiste porque cada vez menos exigem verificação.
Os capítulos em formato wikipédico, mais do que maneira simples de criar uma mitologia para o universo, servem para evidenciar as questões de edição que os textos sofrem quando estão abertos à edição online pouco criteriosa.
Não se trata apenas de falar das polémicas com erros óbvios que levaram a The Free Encyclopedia a criar um registo de alterações a cada artigo (embora tal continue a ser feito nos bastidores e, por isso, invisível a muitos).
Trata-se, sobretudo, de reflectir em como é possível atacar - uma ideologia, uma pessoa, uma nação - por alteração intencional da realidade conhecida. E de como isso será mais perigoso e difícil de contrariar quando for feito sobre o Passado e não sobre o Presente.
A escassez de elementos históricos preservados em formato menos susceptível a manipulações pode levar a que, no futuro, se denigra o registo histórico para atacar a realidade naquele momento.
Rosa Montero está, dessa forma, a defender o seu próprio meio, o texto impresso, contra o monopólio do texto imaterial.
Se estes são os factores singulares de Rosa Montero enquanto autora de Ficção Científica, essencial também é falar dos temas que a unem às bases deste seu livro. Se a sua filiação ao trabalho de Philip K. Dick fosse apenas a existência de replicantes então ela seria demasiado ténue (até porque eles só foram denominados assim pelo filme).
A abordagem às questões sobre o que define "Ser Humano" repercutem-se no trabalho de Montero, em certos momentos amplificadas.
Não se trata já de discernir entre memórias verdadeiras ou implantadas, pois todos os replicantes sabem que as suas memórias são falsas - e nem assim conseguem desprender-se delas, ponto essencial para o desenvolvimento da história do livro.
Trata-se daquele traço tão destacado do animal humano: ser o único consciente da sua morte.
Neste futuro, essa consciência afecta antes os replicantes, limitados a uma década de vida antes de uma morte agonizantes. Os humanos retocam-se e prolongam as suas vidas, tentando levar o limite da imortalidade a mesma vaidade do início do século XXI.
A questão em aberto é agora mais abstracta do que prática: sempre que se descobre um traço que distinga o ser humano, se ele o conseguir superar - ou replicar ou anular - , há que repensar a definição de ser humano ou há que inventar nova designação para ele?
Neste aspecto é uma continuação do universo especulativo dos andróides - que não começa nem acaba com Philip K. Dick - de bastante interesse.
Claro que o livro tem elementos de Ficção Científica menos satisfatórios, sobretudo por serem detalhes referidos mas que não são depois tratados mais amplamente. A sua falta de influência no universo ficcional deveria inibir o seu surgimento.
São pecados insignificantes contra a qualidade do livro, sobretudo por funcionar muito bem no estilo noir que já servia a melhor das versões de Blade Runner e que prova ser um meio equilibrado para agregar as reflexões mais amplas com a necessidade criativa de um mundo (quase) de raíz.
No fundamental, trata-se de um livro de elevada qualidade, que só o foi porque a sua autora se apoiou nos ombros de outros gigantes (Newton não se importará com a adaptação da sua frase). Espera-se que outros se venham a apoiar nos ombros dela - e de Philip K. Dick por acréscimo - para escreverem outras obras de qualidade no futuro... não muito distante!


Lágrimas na Chuva (Rosa Montero)
Porto Editora
1ª edição - Janeiro de 2012
360 páginas

terça-feira, 9 de abril de 2013

Separado do livro

Ao fim de poucas dezenas de páginas o protagonista utiliza o seu próprio conhecimento d'O Deus das Moscas para caracterizar a realidade ao seu redor.
A referência tem um efeito bipolar sobre a maneira como se encara a leitura do livro e como, depois, se faz a sua análise.
Assenta o universo em que se desenvolve a narrativa num mundo reconhecível e em que os personagens estão ao nível dos leitores. Isso evita que o esforço de criação seja demasiado grande apenas para convencer que há uma impossível erradicação de referências num futuro literário mais ou menos distante.
Carrega consigo o peso da referência de grande qualidade que procura agigantar o livro numa comparação que tem menos hipóteses de perdão do erro e mais minúcia na identificação de elementos de pouca originalidade.
Essa segunda parte da carga que a referência traz consigo tem de ser o próprio ponto de partida da abordagem, pois a relação entre os dois livros é demasiado breve para ser aceite. Nada mais além das crianças num mundo sem adultos à vista.
Se é discutível se O Deus das Moscas é um livro distópico, sabemos pelo menos que ele serve de comentário a uma outra noção de civilização que poderá estar a chegar. A Floresta Mecânica não poderá ser sequer equacionado como integrante da literatura distópica visto que os seus métodos de isolamento dos personagens se passam - assim nos indica a própria referência - no presente.
Aliás, A Floresta Mecânica não pretende falar sobre uma outra sociedade ou uma sua recriação por via da anarquia ou de valores individualistas dos jovens. Este livro é um thriller adolescente - e esta é uma adjectivação importante sobre o qual voltarei a escrever adiante.
Enquanto thriller, o seu comentário social contemporâneo acaba por ser feito acidentalmente, muito embora recordando momentos importantes da política mundial.
A maneira como os grupos extremistas no interior do colégio-prisão se comportam, um obedecendo a todas as regras da sociedade exterior e outro tentando ao máximo quebrá-las mas ambos tentando não sofrer castigo, lembram a política de estados moderna.
Entre as ameças de países que se pretendem afirmar sem vir a perder os benefícios que têm e as ameças invisíveis afirmadas em discurso pelas potências dominantes, são ao nível anti-diplomático o mesmo tipo de relação que funciona entre os jovens confinados e as regras externas que continuam a pender sobre eles na forma de castigos executados de formas invisíveis.
Como demasiadas vezes na literatura adolescente, estes são temas que surgem na visão do livro que têm leitores mais velhos, normalmente a braços com esta mesma função de análise que agora me ocupa.
Na verdade o contexto é muito mais simplista, centrado na dimensão individual do herói, das relações que cria ou que tenta evitar (por considerar que o seu tempo naquele colégio será breve) e na sua busca de uma forma de fuga.
Se ele é o herói da história é porque a sua individualidade o torna mais significativo do que os restantes miúdos que já estão dentro do colégio. Escolho escrever significativo e não interessante pois ele mostrar-se-á capaz de desvendar alguns dos mistérios do colégio mas não crescerá de herói (ou protagonista, se preferirem) para personagem.
A culpa da falta dessa transformação vem muito da falta de um "antes" mais aprofundado, de uma contextualização de quem ele era até ao momento de ali chegar que vá além da enumeração de atributos genéricos: orfão, desentrosado, inteligente.
O herói é a ferramenta essencial no desenvolvimento da trama em vez desta ser a ferramenta no desenvolvimento da personagem, típico de thrillers em que o contexto é mais importante do que as personagens, que como já se viu não é o caso aqui.
Em torno dele ocorrem várias reviravoltas, por vezes demasiado evidentes ou absurdas, quando não ambas ao mesmo tempo.
A partir desse mecanismo, a leitura torna-se cada vez mais veloz à medida que o livro avança. Mas não porque se crie tensão para que o leitor vire as páginas, mas antes por desinvestimento nas situações e nas personagens.
Pois se a trama não depende de nenhuma personagem em específico, torna-se bizarro enfrentar o facto de estarmos perante um livro onde nenhuma morte pode, realmente, ocorrer.
A violência é inócua. Armas, só as de paintball e, portanto, sangue e morte são uma miragem. Os alunos castigados desaparecem e o seu destino é apenas especulado. Uma morte, quando ocorre, é apenas uma nova revelação.
O adjectivo adolescente que tinha destacado influencia significativamente o livro porque causa uma esterilização do perigo, levando o leitor a separar-se do livro a cada momento, sem um verdadeiro sentimento de perigo ou ansiedade que se encorpore no thriller.


A Floresta Mecânica - Os Variantes (Robinson Wells)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Setembro de 2012
328 páginas