sábado, 29 de outubro de 2016

Nem o todo, nem as partes

Um reconhecimento à Saída de Emergência por uma estratégia editorial que, por uma vez, traz a perspectiva de um benefício ao leitor.
O facto de ter dividido a antologia original em dois volumes - malgrado o esforço financeiro que isso implica - permite uma gestão interna de agrupamento dos contos dentro das quatro aproximações de tradução para rogue que a editora fez.
Para já esta ideia é uma teoria. Em parte porque terei de ler o Histórias de Vigaristas e Canalhas para confirmar a hipótese e o seu grau de sucesso.
Ao que se acrescenta o facto de os contos aqui reunidos, de origem, não permitirem dose alguma de coesão, qualitativa ou temática.
Depois da entusiasmante introdução de George R. R. Martin segue-se uma das melhores histórias do livro, Como o Marquês Recuperou o seu Casaco de Neil Gaiman.
Um divertido retorno a Neverwhere - Na Terra do Nada que parece trazer algumas contradições (de detalhe) à personalidade do Marquês de Carabás em relação ao que ela era nesse livro.
Trata-se de um conto que se sustenta por si mesmo, capaz de definir o carácter do personagem no período da breve aventura. Mas é revelador de um problema que afecta vários outros contos.
A utilização de personagens pré-existentes em pequenas tramas incapazes de sustentar uma obra de maior fôlego e que implicam familiaridade com as sagas em causa para se perceber como os personagens se ajustam à classificação de aventureiros ou patifes.
Essa é a realidade para Phyllis Eisenstein (A caravana para nenhures), Joe R. Landsdale (Galho Vergado), Paul Cornell (Uma Forma Melhor de Morrer), Patrick Rothfuss (A árvore reluzente) e o próprio George R. R. Martin (O Príncipe de Westeros ou o irmão do rei).
Em nenhum caso há mais do que um picar o ponto com as obrigações da antologia e a fidelidade dos leitores. Estes contos, estes servem sobretudo a dar contexto adicional ou testar fórmulas.
Landsdale despacha mais um caso para o seu protagonista num estilo de thriller de acção duro e cruel que é do que o neo-noir tem de pior.
Martin quase se limita a uma exercício de genealogia, pouco estimulante mas bem escrito.
O mesmo poderia ser dito dos contos de Eisenstein e Cornell, que ainda assim partem de bons pressupostos, apenas não parecem capazes de as executar com legância na duração de um conto.
Rothfuss safa-se melhor, com um conto que equilibra inteligência e divertimento, sem que o seu efeito final deixe de estar limitado quando não se é um seguidor d' A Crónica do Regicida.
Chamariz para os que acompanham as sagas de cada um destes cinco autores - apenas dois com relevância no mercado nacional - e pouco mais.
A tal problema junta-se o dos contos que pouco justificam a sua inserção nesta antologia.
Admitindo que a ideia de origem é boa e que o final está bem executado, Proveniência de David W. Ball, continua a ser um conto que não se ajusta a esta colectânea e que não tem centelha para suster o interesse entre as duas pontas do conto.
Connie Willies e o seu Em exibição é um tongue-in-cheek mordaz para com o estado da produção cinematográfica actual. Divertido, sobretudo por conta de alguns traços da imaginação com que são inventadas produções Hollywoodescas mas desenquadrado.
Finalmente, a popular Gillian Flynn, escreveu Qual É a Sua Profissão? e deixou-me sérias dúvidas sobre o porquê de tantos a lerem.
Uma trapalhada a que a autora parece ter-se dedicado pouco - o final não é aberto, é desleixado - e em que ela parece apenas preocupada em exercitar o jogo de enganos mútuos - de que se recentem os personagens, que não existem senão como nomes na página.
(Entretanto este conto parece ter dado um livro para manter a atenção dos leitores à autora - e a facturação... - e que por cá se chama Pequenos Vigaristas.)
Contra todos estes contos, felizmente há Scott Lynch que nos permite passar Um ano e um dia na velha Theradane!
A escrita de Lynch é sedutora e a sua criação do mundo em que passamos algumas páginas é portentosa.
Servindo-se de poucos parágrafos - e sempre fazendo-os valer para o decorrer da trama na sua obrigatória brevidade - deixa uma forte impressão.
A que acrescenta doses de imaginação que vão em crescendo e cuja magia - no livro e para o leitor - deixam aquela saborosa vontade de conhecer a fundo a obra do autor.
O livro, como um todo e em muitas das suas partes, revela-se um caso de possibilidades que não houve engenho para cumprir.


Histórias de Aventureiros e Patifes (Neil Gaiman, David W. Ball, Gillian Flynn, Paul Cornell, Scott Lynch, Phyllis Eisenstein, Joe R. Lansdale, Patrick Rothfuss, Connie Willis, George R. R. Martin)
Saída de Emergência
1ª edição - Novembro de 2015
448 páginas

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Narração interveniente

O retrato de grande envergadura da política Europeia dos últimos cem anos pode ser traçada com uma trama no interior da Península Ibérica – com um saltinho a Paris.
Uma trama que muitas vezes passa por locais que estão longe de ser os mais fortemente assinalados no mapa. Tarragona, Beja ou, e sobretudo, Setúbal.
A cidade da autora é-lhe útil para construir uma base mais confortável para sustentar a construção do seu romance histórico, sendo em igual medida útil para demonstrar que as grandes ideias políticas podem ter repercussões mais interessantes em locais que podemos pensar serem de segunda linha.
Fica-se a conhecer Setúbal pela maneira como está escrita com tanto conhecimento e amor, dando ainda mais intensidade ao seu povo, sofredor, e aos personagens que vivem a saga do tempo que corre – sempre para os ultrapassar!
Este não é um romance histórico que usa os seus personagens para acrescentar melodrama à descrição de eventos excitantes por si mesmos.
Há um sentido crítico de quem olha a História como definição da identidade. Os acontecimentos transformam os personagens que estavam, precisamente, a tentar afectá-los.
O sentido crítico de Alice Brito, no entanto, não fala apenas aos personagens, também aos leitores que sentem que a narradora, a par da própria narrativa, trata de fazer julgamentos sobre os extremos políticos, sejam as diferentes modalidades de fascismo que se manifestarem na Península Ibérica ou as utopias de esquerda transformadas em pesadelos.
Abordando as facções ao longo de um século a autora faz ver como como os percalços que as ideologias causam e enfrentam das vidas vidas individuais estavam destinados a encaminhar a realidade até ao seu estado actual.
Como se o corrente e desapontante estado de coisas fosse um destino que alguém deveria ter conseguido prever. E como tal continua a ser verdade para o futuro próximo. A autora faz tudo isto com uma linguagem tão instigante quanto sedutora. Uma linguagem com gosto por jogos que não se intrometam na função essencial e que tem coragem de ser criativa com a forma como afirma a realidade de formas não habituais. Recorrendo, inclusive, ao calão como mais uma forma de enriquecimento da Língua.
Pela voz da sua narradora, Alice Brito intervém no livro e interage com o leitor. Fala das evidências da História e revolta-se com elas. Cola-se à credibilidade do linguajar dos personagens e eleva o texto às exigências do que merece ser Literatura.


O Dia em que Estaline Encontrou Picasso na Biblioteca (Alice Brito)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Abril de 2015
368 páginas

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

A poesia da aventura

No final deste livro não sobram dúvidas de que François Villon é um personagem extraordinário que, se foi um importante poeta, foi-o também porque viveu uma vida de aventura com alguns traços de canalhice.
O livro de Raphaël Jerusalmy dá bem conta disso mesmo, lançando-o numa caçada por textos que começam a fazer mossa à Igreja no momento que a sua divulgação se torna mais simples e começa a propagar-se por toda a Europa.
O caminho de Jerusalém está repleto de obstáculos, sobretudo supostos aliados que demonstrarão não o ser, no que é a forma de “emperrar” o caminho que ia parecer linear quando o Bispo propôs tal missão para que o poeta se salvasse da forca.
A narrativa de Jerusalmy é também assim, desviando-se pelos caminhos tortuosos do passado do seu protagonista a cada capítulo, que começam sempre sugerindo que vão levá-lo de um ponto da trama ao outro na linearidade do mais típico dos thrillers históricos.
A deriva narrativa é sempre muito cuidada para que o leitor não se sinta perdido mas exigindo-lhe o seu foco.
A recompensa é certa, até porque a escrita do autor procura o refine, o que no seu conjunto afasta este livro do conjunto anónimo de livros que exploram este filão.
Os esfoços de Jerusalmy fazem pensar em aspirações à categoria de Arturo Pérez-Reverte ou Umberto Eco, conseguindo em certos momentos fazer crer nisso mesmo.
O único reparo será para o facto do autor não se deixar levar pela paixão que, certamente, sentiu na escolha de protagonista.
O livro poderia ter mais alguma dose de emoção no acompanhamento de François Villon para temperar a qualidade do exercício cerebral.


Os Caçadores de Livros (Raphaël Jerusalmy)
Clube do Autor
1ª edição - Setembro de 2015
296 páginas

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Término

A surpresa do primeiro livro fazia esperar uma evolução de Mary Kubica no domínio do thriller.
A autora tombou para o lado contrário que então se constatava, o romance exagerado até se tornar num melodrama "negro". O lado errado, portanto.
A categoria de thriller psicológico tal como agora está (tão) em voga está mal definida para que possa ser aplicada aos mais diversos livros. Não podem é caber nela livros que de thriller nada têm.
Essa tem sido uma situação cada vez mais recorrente e neste livro atinge o ponto de exaustão - se as editoras publicam tudo o que se partilha uma das características identificadas com o género ou se usam a etiqueta para despachar livros que não sabiam como "vender" é uma discussão a ter numa outra oportunidade.
Entre os principais contributos para tal, a ausência de suspense. Há um mistério porque a informação foi sonegada e a sua revelação é muito esparsa por culpa das variações entre a narradora que fala no Presente e os outros dois cujo ponto de vista está enraizado no Passado - o que também é a evidência de que a autora tem uma única ideia quanto à estrutura dos seus livros.
Decisivo é mesmo a falta de noção de ritmo. A preferência da autora vai para a exploração exaustiva dos elementos que possam transformar uma vida familiar conturbada num tormento e um quotidiano problemático num inferno.
A escrita repetitiva e a linguagem cruel são demasiado exploradas até que deixam de sugerir severidade para se tornarem maçadoras.
A autora está tão decidida a reforçar o tormento da realidade em que habitam os seus personagens que aliena o leitor pelo cansaço.
Personagens que são, elas próprias, encarnações dos males à sua volta. Uma dona de casa frustrada. Um marido misógino. Uma rapariga que a vida maltratou.
São suas as três perspectivas pelas quais a história se conta e são os mesmos estereótipos que vêm tornando estes livros indistinguíveis entre si.
A mulher é paranóica. Com alguma razão pois o marido mostra-se pouco interessado. Embora se descubra que ele não é assim tão mau e que os erros dela vêm do abandono.
Todos os livros como Vidas Roubadas são dramalhões acerca dos problemas de diálogo no seio de uma relação.
Isso toma prevalência sobre temas que são alvos mais lógicos de um thriller psicológico, o que aqui significa dar um lugar secundário à vida da rapariga sem-abrigo com um bebé nos braços até ser socorrida pela mulher que a viu na estação de comboio (e que, claro, ansiava por um filho sem o poder ter).
Não só mais lógicos, também mais significativos. A rapariga, como fica bastante óbvio desde o primeiro momento, sofreu demasiado para a idade que tem. O que, também é já bastante óbvio, significa que sofreu violência sexual.
Como a violência sexual é um recurso cada vez mais usado, o tema tem-se tornado banal e o seu efeito choque perdeu-se.
Banal para os leitores que atravessam a descoberta do sofrimento dos personagens sem hesitação. Igualmente para os autores - e, diria que tal é pior no caso de autoras - que o incluem nos seus livros como mais um dado de caracterização ou um evento a partir do qual podem revolucionar o sentido da sua história.
Deveria haver ponderação adicional quando se envolve uma jovem violada numa história que lida, predominantemente, com complicações matrimoniais e está cheia de elementos inúteis - quando não ilógicos - também de natureza sexual, seja uma decisão intempestiva de fazer sexo com o vizinho do lado ou uma atracção pela colega de trabalho permanentemente referida.
Depois de tanta repetição dou por mim chegado a um término. Com Mary Kubica e, sobretudo, com este estilo de livros que resumiria como o das acções ilógicas de mulheres perturbadas.


Vidas Roubadas (Mary Kubica)
Topseller
1ª edição - Outubro de 2015
336 páginas

sábado, 18 de junho de 2016

Mal intencionada

Perante o regresso de Tilly à pequena cidade onde nasceu o leitor interroga-se sobre as suas reais intenções.
A referência à sua louca mãe, largamente desprezadas pelos restantes habitantes, soa a uma desculpa depois de décadas afastada.
Mais fácil seria levar a mãe daquele lugar de onde a raiva a expulsou e o desprezo agora a recebeu de volta.
Tilly vai ficando deixando-se ser mal tratada. Parece sofrer de masoquismo, sofrendo quando se suspeita que terá a fugir de outra dor.
Se a dor que aquele lugar que lhe desfez a infância é menor do que aquela que a empurrou de volta é uma comparação que o romance só permite fazer demasiado tarde.
Por isso Tilly permanece perante o leitor como uma figura penitente. Até que o romance, não tanto o personagem, precisa de algo mais.
Precisa, sobretudo, que o talento de Tilly entre em acção. Daí que Tilly comece a deixar-se ser usada pelas mulheres da cidade para que lhes confeccione vários vestidos.
Não se trata de uma procura de aceitação, uma crença que o leitor não tem nem vê no personagem.
Tilly investe o seu próprio dinheiro em criar roupa que rivaliza com a das grandes casas de Moda, o que é excessivo interprete-se essa atitude como o exercício do seu talento para que não perca a mão ou como uma afirmação de superioridade contra uma sociedade desinformada na Austrália dos anos 1950.
Os vestidos fazem falta, sobretudo, a Rosalie Ham que aprimora a sua escrita aquando das descrições cujo destaque é ainda maior por entre uma escrita tépida.
O trabalho mantém Tilly na cidade o tempo necessário para que ela encontre alguém disposto a amá-la e ela volte a crer na maldição que os locais sempre lhe atribuíram.
O que na idade adulta parece significar crer que as atitudes alheias a encaminham para um desfecho trágico.
A partir daí o romance assume um tom mais negro onde a dissimulação toma prevalência. Tilly torna-se na tecelã de uma cruel vingança que, quando se confirma, parece desproporcionada e coloca em causa a própria leitura que se faz da protagonista.
Desde logo porque a autora se dedica a escrever capítulos pouco estimulantes sobre a criação de roupas para teatro que não criam expectativa alguma para o final que se esperava ameaçador.
No entanto é-o sobretudo porque o livro termina sem uma ponderação moral de quanto a pequena cidade merece que Tilly deixe todos os seus habitantes sem nada senão os trajes ridículos e abafados que criou para a peça de teatro que levaram a palco.
Não bastando a humilhação que causou, Tilly causa uma destruição completa, até contra o único que a tratou bem, um polícia que admira tecidos excepcionais ainda mais do que ela.
A autora quer fazer crer que Tilly foi tão mal tratada que a sua vingança está justificada. Mas ela tanto foi mal tratada pelas pessoas como pelo próprio destino (ou pela própria autora...).
Um personagem à deriva ao longo do livro. O seu comportamento deveria sugerir mistério de identidade. Ao invés mostra a indecisão que a autora teve sobre o que queria alcançar com o livro.
Falta um verdadeiro antagonismo a Tilly que não passe pelas suas próprias acções. Algo mais substancial do que as figuras com que ela popula a cidade.
Com eles a autora intenta um retrato dos pecados que estavam escondidos debaixo do puritanismo da Austrália rural dos anos 1950.
Para tal bastava ter menos de uma mão cheia de personagens bem definidas e melhor exploradas.
Como a autora quer reforçar o direito da protagonista à sua vingança, ela prefere acrescentar personagens com uma regularidade obsessiva e pouco ajuízada.
Personagens que têm uma presença de pouca duração e que se tornam todas demasiado parecidas visto que não ganham identidade.
A já referida tepidez da escrita reforça esse sentimento como também o faz a falta de imaginação da autora que distribui os mesmos (ou o mesmo tipo) de pecados - sexuais - pelos personagens.
São falhas em demasia no que é, evidentemente, um primeiro livro. O que significa que é mais uma intenção do que uma obra devidamente acabada.
Só a sua adaptação ao cinema justifica que recaia a atenção sobre o livro nos antípodas do seu país de origem, ainda que seja tratado - de forma injustificada - como uma espécie de clássico moderno Australiano.


A Modista (Rosalie Ham)
Editorial Presença
1ª edição - Novembro de 2015
272 páginas

sábado, 11 de junho de 2016

Resultado semelhante

Uma segunda ronda com Rosamundo Lupton depois da desistência perante o Irmã que continua a ser explorado na capa deste seu mais recente livro, não só sendo citado, também levando a um design quase idêntico.
Nenhum problema de consciência perante a decisão de então, apenas uma interrogação sobre a possibilidade de evolução.
Desta vez foi possível passar para lá de umas poucas páginas pois apesar da escrita não ter elementos que mereçam elogios, pelo menos já não depende das marcas para ter tentar ter personalidade.
Pelo contrário, até é através da reprodução de uma conta de Twitter que a autora consegue os (breves) momentos entusiasmantes pela exploração de como as palavras são entendidas pelos sentidos.
Essa é a conta de Twitter de uma menina surda que acompanha a sua mãe ao longo da trama e que é a muleta do livro.
Pertence-lhe a ela o ponto de vista na primeira pessoa - e, portanto, a única voz distinta - que interrompe a omnisciência do narrador.
Ainda assim uma voz pouco coerente, ao serviço das necessidades da escritora e não do próprio personagem.
A miúda de dez anos que, apesar de surda, está numa turma de sobredotados, ora analisa o mundo com uma maturidade de quem caminha rapidamente para os seus dezoito anos, como mostra estados de euforia ou receio em que se manifesta como não tendo ainda chegado ao seu sexto aniversário.
Ainda assim esta opção - como a própria presença da miúda, injustificada - é a que dá algum traço de personalidade a um livro que se alonga demais em elementos supérfluos que o impedem de criar o envolvimento de que necessita.
Não se assumindo, desde o início, como um thriller, o livro precisa que o leitor esteja investido emocionalmente para superar as muitas implausibilidades de que este faz uso.
Nada menos do que acreditar que uma mulher sem experiência consegue conduzir um camião em estradas geladas porque o seu curso de Astrofísica lhe permite compreender o funcionamento da máquina.
Ou que ela levaria a sua filha para tão perigoso ambiente quando vai em busca do marido movida por um pressentimento, ainda que a polícia o dê como presumivelmente morto.
Tudo numa escalada de drama doméstico que se resume como o de uma mãe de uma menina surda que, com medo de que esta tenha de crescer sem pai, parte para resgatar o marido que a tinha abandonado por uma mulher Inupiat.
O livro trata do percurso da mulher em direcção ao local onde o marido estava, dando tempo para explorar a sua relação com a filha e os medos mútuos, além do universo interno da rapariga.
Como isto é pouco interessante, a meio do livro a autora tem de lançar algum perigo que acrescente interesse à situação linear de um personagem a caminho de outro.
Lupton muda a estratégia e leva o drama para caminhos de algo que só com boa vontade se pode chamar suspense, adicionando elementos para lá do interior da cabine do camião.
Por um lado conseguindo ligar o portátil da filha à internet - do interior do camião que se encontra numa região isolada - e, a partir dessa situação, criar uma figura misteriosa que envia emails perturbadores.
Por outro demonstrando um medo da mãe em torno das luzes de camiões que se cruzam com o dela e que poderão estar a segui-las.
Neste momento a autora aponta ao thriller de forma artificial, usando de uma paranóia injustificada para tentar ligar o email bizarro e a suposta perseguição.
Foi esta estratégia ridícula para relançar o livro quando ele já vai a meio, mudando-lhe o tom, que levou à desistência.
Um resultado em tudo igual ao do primeiro livro de Lupton, por motivos diferentes. Embora no limite se possa dizer que a causa é, agora como então, a falta de qualidade da autora.
Larguei-o sem qualquer preocupação de saber o que acontece no final do livro, embora desconfie que seja relativamente fácil de concluir.
Afinal a autora tentou de forma pontual, por via de entrevistas de rádio e discussões em bares de camionistas, introduzir um vilão anónimo: as empresas que se dedicam ao fracking.
Apesar de serem conversas em "pano de fundo", a sua introdução é o contrário de discreta, pelo que me parece uma aposta relativamente segura dizer que a culpa do incêndio que terá morto o marido da protagonista foi causado por uma destas empresas (acidental ou propositado, tanto faz).
Marido que, obviamente, não está morto. Seria imoral que a autora deixasse uma criança surda orfã de pai!
Como ele é um fotógrafo para publicações sobre vida selvagem, terá obtido fotos dos crimes ambientais destas empresas e fingido a sua morte para se sentir seguro.
Seja ou não este ridículo enredo o que o livro seguiu depois da página cento e cinquenta, não há final capaz de compensar o tempo que se perde com Rosamund Lupton.
Da minha parte não voltarei a colocar-me na situação em que tenho de me livrar de um livro dela antes que termine.


O Som do Silêncio (Rosamund Lupton)
Jacarandá Editora
1ª edição - Fevereiro de 2016
296 páginas

sábado, 4 de junho de 2016

Frustrações

Tenho imensa vontade de descobrir autores portugueses de quem possa gostar com firme convicção e a cada livro que me chega renovo a minha esperança.
Embora não me possa sentir traído senão por mim mesmo, os dois livros sobre os quais escrevo aqui desapontaram-me em tudo excepto o design das capas cuja simplicidade atraente mas eficaz é tudo aquilo que os textos que resguardam não são.

No Trilho dos Seis Zimbros é bem escrito ainda que alguns dos contos dependam demasiado de diálogos um pouco livres demais no uso informal da Língua.
O problema dos seus seis contos é que cada um deles é uma história que não resulta em nada de gratificante.
O autor inicia as suas histórias sempre de forma familiar. Não só cenários quotidianos ao entendimento como cenários já presentes em muita ficção em vários meios.
A expectativa é sempre que o autor tenha uma ideia original para rematar o texto, surpreendendo o leitor que se limitou a reconhecer os caminhos mais habituais.
O autor não tem essas ideias originais, limitando-se a ir de encontro ao que é lugar-comum perante a construção feita.
Pior, há textos que nem chegam a um clímax para a história que lhes cabe contar. Não uma resolução extraordinária, apenas um momento de elevação que justifique o esforço de criação.
No início do livro até há vários elogios - de amigos, crê-se - acerca da oralidade e do talento de contador de histórias.
Quem o oiça poderá ser beneficiado pela entoação e pelo ritmo que melhoram as histórias, mas pela via da palavra impressa o autor apenas consegue frustrar quem lê.

A Cruz do Assassino inverte o problema do livro de António José Alçada. O interesse da novela policial não está em causa, o problema é conseguir resistir à sua linguagem.
No Prólogo até se dá o caso do protagonista falar do escritor como sendo quem transforma a sua narrativa num texto com a devida organização. E mais do que isso, com uma escrita que pretende escorreita mas nutrida da erudição ao seu alcance.
Ao leitor esse aparece como um meritório objectivo. Mau é que esteja negado logo nas páginas seguintes.
O autor não consegue abdicar das palavras que estão em excesso. Sejam elementos redundantes para as descrições, sejam expressões que contextualizam de forma demasiado meticulosa.
Ao fim de três páginas tem-se logo uma primeira quebra de ligação ao livro, com tantos parágrafos para dar conta de algo que ocuparia uma só página.
A partir daí o esforço é para superar o incómodo que a escrita vai causando, um elemento de permanente desconexão.
O esforço vai incrementando de intensidade pela sua repetição e há um momento em que a resistência se esvai.
Querendo saber como a história termina e perante o tempo já investido, desistir de continuar a leitura é a derradeira frustração - ainda que, ao mesmo tempo, libertadora.


No Trilho dos Seis Zimbros (António José Alçada)
Esfera do Caos
1ª edição - Fevereiro de 2016
104 páginas


A Cruz do Assassino (Paulo Bicho Garcia)
Esfera do Caos
1ª edição - Outubro de 2015
104 páginas

terça-feira, 31 de maio de 2016

Falta de identidade

Este livro pode ser representado pela sua mais jovem personagem, uma menina cuja identidade está por decifrar desde que a sua gémea morreu.
Como ela, o livro não sabe se o seu género é horror fantasmagórico ou thriller psicológico.
Como a identidade da menina se tornará clara na grande revelação final, também aí o livro mostra ser apenas uma drama familiar num embrulho mais atractivo.
Mesmo para apreciar o embrulho é necessário aceitar que duas gémeas de seis anos têm personalidades tão idênticas que a sua mãe não as distingue.
Ou que a solução para uma tragédia familiar combinada com uma crise económica é a mudança para uma mansão que custou cinquenta mil libras mas em que a família pode trabalhar para que o seu valor ascenda a dois milhões (nem vale a pena pensar quão imprópria estará a mansão será para lá se viver...).
Uma mansão numa ilha escocesa cujo ambiente S. K. Tremayne (um pseudónimo ambíguo para um autor claramente masculino) se esforça por fazer sobressair mas que permanece insípido.
Local remoto e que depressa fica isolado da localidade mais próxima a que se acede por barco ou, quando a maré está baixa, por um caminho pedonal muito perigoso.
A segurança da criança traumatizada pela morte da irmã não é uma real preocupação dos seus pais que, lá instalados, tomam decisões ainda menos razoáveis para a saúde mental da filha.
Entre elas não dialogarem um com o outro acerca do que testemunham no comportamento da filha quando estão a sós com ela, tentando ao invés manipular a realidade para agradar ao cônjuge.
Só mesmo a contínua irracionalidade dos personagens para haver trama que leve as páginas por diante e permitir algum grau de incerteza - que o autor deveria ter conseguido com a escolha do narrador.
A escolha do ponto de vista de Sarah - a mãe das gémeas - durante 90% do livro deve dar a sensação de que ela progride de um estado de fiabilidade para um de tormento, seja por estar assombrada ou louca.
O problema é que, como se descobrirá, Sarah nunca foi um personagem confiável, pelo que ter a sua como (quase) exclusiva versão dos acontecimentos é um erro.
A introdução do ponto de vista do marido é demasiado esparsa para ter significado. Aliás, só existe para dar conta de episódios que Sarah não pode testemunhar.
Teria de ser o confronto entre os dois estados de entendimento dos eventos a criar dúvida - e interesse - no leitor sobre qual dos dois está certo e qual das identidades corresponde à rapariga que sobreviveu.
Com isso a revelação final poderia não ser mais do que a realidade tornada evidente para quem a vinha pensado de outra forma, uma surpresa do que já estava diante dos olhos, apenas retorcido por interpretações individuais.
O autor não tem capacidade para isso, pelo que para a reviravolta se torna dependente da perspectiva da traumatizada Sarah e da ferramenta preferida dos que preferem sonegar informação a usá-la como matéria ficcional: uma amnésia parcial e selectiva.
O final do livro é uma torrente de informação que dá explicações simplistas para o que veio antes e desvia o foco de atenção para temas que nem estavam no livro - com razão!
A pouca valia do livro está anulada pelo seu péssimo final que, além da informação, atira à cara do leitor o desperdício que foi investir nesta leitura.
Algo que a indefinição da identidade da história já fazia desconfiar.


As Gémeas do Gelo (S. K. Tremayne)
Topseller
1ª edição - Setembro de 2015
320 páginas

domingo, 29 de maio de 2016

Incapacidade de criar

O cenário é o de uma cabana onde os personagens se isolaram durante um fim-de-semana. Consumo de álcool e cocaína, uma mensagem sobre assassinato durante uma sessão espírita, pegadas no exterior da casa, a linha telefónica cortada e uma tensão provocada por um personagem obsessivo.
Nesse instante, já para o meio do livro, as possibilidades são múltiplas. Horror ou thriller, provocados por um personagem externo que então aparece. Ou, ainda melhor, um simples crime a ser desvendado dentro dos limites daquele grupo no estilo de Agatha Christie.
O leitor será ingénuo por imaginar tanto assim. Aquilo que se segue é um desses thrillers psicológicos sobre uma mulher que se revela uma psicopata que continuarão a ser publicados enquanto haja filão para esgotar.
Afinal esta é apenas a história de como uma mulher tenta, da forma mais desajustada e violenta possível, salvar a face perante o fim eminente do seu noivado: matar o noivo e culpar outra pessoa.
Outra pessoa que é Nora, que vive assombrada há dez anos pelo fim da relação amorosa dos seus dezasseis anos com nenhum outro que o noivo de Clare.
Conclui-se que as mulheres só podem ser cabras psicóticas ou crianças assustadas em função do homem pelo qual definem a sua vida - no caso o mesmo que a sua vida amorosa.
A banalidade da segunda metade do livro, que ainda para mais é estruturada de forma deficiente, obriga a negar o benefício da dúvida que se deu à preparação do desfecho.
Só o instante em que todas as possibilidades eram possíveis afastava o terrível espectro de previsibilidade instalado desde o momento em que Nora aceita ir a uma despedida de solteira para uma (melhor) amiga com quem não fala há uma década e que nem sabia que se ia casar...
Essa previsibilidade não é uma manipulação para desviar a atenção do leitor do verdadeiro desfecho. É a única ideia que a autora conseguiu ter.
Tudo é mais pobre por ser Nora a personagem que nos serve de ponto de vista à história, uma escritora de policiais que não tem o raciocínio analítico para suspeitar do mesmo que o leitor.
Temos de a aturar deitada numa cama de hospital a recordar os eventos do fim-de-semana com medo e dificuldade. Nora não sabe se é a culpada pois sofre de uma conveniente (para que a trama tenha alguma duração) amnésia selectiva.
Pior são as suas recordações de há dez anos, que a tornam numa mulher ridícula no presente enquanto a mostram como uma adolescente que ora é totalmente insensível perante um aborto como exagera por completo perante uma rejeição e nunca mais fala aos seus colegas.
A história cabe nestes meros parágrafos mas isso não faz um livro capaz de vender. Para isso é preciso encher as páginas. Dos piores lugares-comuns, claro!
Como a cena final em que a protagonista, enfraquecida e desprevenida, foge do hospital para se ir colocar, sem apoio, numa situação de perigo pessoal de forma a provar que é inocente.
Ou, pior, como a caçadeira por cima da lareira - descarregada garante a anfitriã que os leva a ter uma lição numa carreira de tiro - cuja falta de subtileza é sobrecarregada porque a autora tem um dramaturgo a afirmar que ela o faz pensar em Tchekhov.
Como nota positiva diga-se que Ruth Ware tem um mérito, o de saber transmitir a ambiência envolvente e ameaçadora que os personagens vivem naqueles bosques.
O problema é que contra ele pesa a incapacidade para criar: personagens que não sejam representações de comportamentos extremos, uma estrutura que nos deixe em suspenso em vez de nos sonegar informação ou uma narrativa desafiante que não seja colagem de clichés.


Private: Los Angeles (Ruth Ware)
Clube do Autor
1ª edição - Abril de 2016
328 páginas

sábado, 28 de maio de 2016

O fardo da imaginação

Yann Martel continua a ser um homem cheio de imaginação. O problema, como com A Vida de Pi, é que lhe falta a inspiração e a transpiração para moldar as suas ideias na forma de boa ficção.
De tal maneira ele tem imaginação que desta vez ele concebe três histórias que em 1904, 1938 e 1980 (e pouco) vão dar a Tuizelo, uma aldeia em Trás-os-Montes.
Essa região é que constituiu as tais Altas Montanhas de Portugal, sendo que lá para meio do livro é dito que essa é uma denominação que lhe deram, se para afastar interessados ou para a publicitar de forma falaciosa, não se sabe.
Não importa, esse é mais um elemento da imaginação do autor, que ele usa como forma de elevar ao "maravilhoso" a base realista que cria com a qualidade da sua pesquisa.
Pelo menos crê-se que assim seja, pois não há vontade de verificar a realidade de conduzir um Renault no início do século passado ou a exactidão do percurso que Tomás faz por Lisboa.
O que deve interessar realmente é que em 1904 Tomás que caminha às arrecuas vai atravessar Portugal ao volante de um carro, máquina que desconhece por completo. Que em 1938 Eusébio ouve uma descrição de como Agatha Christie é a versão moderna dos Evangelistas antes de realizar uma autópsia cheia de impossibilidades. Que pelos anos 1980 Peter vai, por impulso, viver com um chimpanzé com quem avista o último dos rinocerontes-ibéricos.
Ainda assim estes são eventos superficiais, pois não podemos esquecer que Martel está à procura de significados profundos para a Fé e o Amor.
O que deve interessar ainda mais é que pelos anos de 1980 o chimpanzé de Peter se assume como mais um elemento da vida da aldeia e é o único que consegue encontrar o mítico rinoceronte. Que em 1938 Eusébio descobre que o corpo humano, como a história de uma vida, é composto por muito - mas muito! - mais do que orgãos. Que em 1904 Tomás persegue uma extrapolação miraculosa que fez a partir do diário de um padre e da sua referência a um crucifixo que trouxe de África.
Esta trindade de homens que perderam as esposas está numa espécie de viagem em contínuo que os leva de "sem casa" a "em casa", reconciliando-se com Deus, que se deverá concluir ser o esquivo rinoceronte.
Tal como os macacos que vão atravessando a narrativa devem ser as verdadeiras formas dos anjos dos quais ascendemos à nossa condição, pelo que Tuizelo deve ser um qualquer Éden onde homens e macacos podem conviver pacificamente e comungarem com o divino.
Haverá quem veja nestes elementos motivo para assombro. Seriam se o autor fosse além de uma tentativa tosca de dar sentido à salganhada.
Na verdade esta conclusão é apenas uma das muitas que se podem tirar do livro pois o verdadeiro resultado é um vazio de sentido.
Martel tentará fazer crer que está a depositar a responsabilidade nas mãos do leitor, mas na verdade está a ser preguiçoso com as decisões que tinha de tomar para os seus personagens e o seu estado de permanência no universo que criou.
Tal como está a ser preguiçoso quando se permite qualquer excesso incoerente com a etiqueta de realismo mágico, a que o autor não pertence.
Pois se falamos da sua "rica" imaginação, aponte-se aquilo que ela disfarça: a pobreza da sua escrita.
Há uma suposta procura de requinte escrito que resulta em metáforas pavorosas, seja porque se tornaram ridículas ou porque perderam o seu sentido. Basta transcrever um parágrafo para demonstrar ambos os casos.
O amor é uma casa na qual a canalização nos traz novas emoções gorgolejantes todas as manhãs e os esgotos descarregam as nossas disputas e as janelas claras se abrem para deixar entrar o ar fresco da boa vontade renovada. O amor é uma casa com fundações inabaláveis e um telhado indestrutível. Ele teve uma casa assim em tempos, até que foi demolida.
Más metáforas são, ainda assim, mais desculpáveis do que a absurda abertura do livro onde inúmeros nomes de ruas de Lisboa são citados. Além de proporcionar sonoridades exóticas,  a geografia inútil só serve para maçar, mesmo aqueles que não conheçam a Língua Portuguesa.
Até mesmo nisto se vê a indecisão de Martel, pois se todo o livro é uma parábola, que evitasse as exaustivas descrições dos problemas que o Renault dá ao longo do caminho.
Yann Martel não sabia qual dos livros escrever e escreveu os três. Agregou melhor a primeira e segunda parte, deixando para a terceira (e menos má) um remate mal conseguido. O todo é, aqui, menor do que a soma das suas fracas partes.
Para um livro que durante dois terços quer fazer crer que a escrita e a sua interpretação podem refazer a ligação entre o Homem e Deus, não há pior do que falhar ele próprio em qualquer solidez literária.
A única indecisão de que Martel não sofre é aquela que o condena, pois continua a perseguir reflexões sobre a influência da religião (da crença, será mais justo) nas pessoas confrontadas com a morte.
Até mais especificamente, sobre a aceitação da ficcionalização como elemento preponderante da experiência espiritual de cada um.
Um objectivo que se projecta como ainda mais pretencioso do que é perante a falta de qualidade do trabalho que o sustenta.
Ficasse ele pela simplicidade - com as histórias trabalhadas como contos cómicos - e seria a sua imaginação digna de alguns elogios.


As Altas Montanhas de Portugal (Yann Martel)
Editorial Presença
1ª edição - Abril de 2015
320 páginas

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Um pouco de nada para todos

S. J. Watson criou um livro surpreendente que continua a merecer elogios pela sua estrutura. Este seu novo livro é uma negação do primeiro, um falhanço completo de estrutura e precisão.
O thriller que este livro deve ser aparece afogado em longos bocados de ficção que são contraditórios ao género.
A preparação dramática da trama é um longo dramalhão de arrependimentos familiares e descobertas de casos amorosos que não consegue criar um passado substancial para o personagem principal - nem vale a pena falar nos restantes... - e, portanto, tornar Julia cativante como porta de entrada no universo do livro.
Ultrapassar o ritmo lento desta parte do livro é um feito tornado mais difícil pela escrita do autor que não tem a assertividade para encaminhar a tramar nem, pelo contrário, se esforça em criar um ambiente de tensão à força da expressividade.
Lá chega o ponto de viragem, em que se espera que as circunstâncias estejam bem assentes para que os acontecimentos possam encadear-se e - finalmente! - levar o livro na direcção do que prometia.
A partir daí o autor dedica-se antes a um romance de cariz marcadamente sexual, que tenta ter um negrume a si associado mas não é mais do que um discorrer sobre o adultério do que era até ali uma mulher bem casada e que parece ter tido uma crise perante a morte da irmã.
Há traços de manipulação nesta parte da história e a procura de explorar os perigos de se entregar nas mãos de um desconhecido - sobretudo via internet - mas isso ocorre por entre um texto que parece ser já de um livro completamente distinto do que era na parte anterior, já de si muito distinta daquilo que o livro anunciara.
Quase como um truque de magia mal executado, o autor parece ter achado que o melhor seria adormecer o leitor para depois fazer surgir a reviravolta.
Esta é demasiado complexa para disfarçar a composição simplista que lhe deu origem, o que curiosamente vem negar a necessidade do romance erótico no miolo da trama.
Na parte final a manipulação via internet torna-se o grande tópico do livro, desmultiplicando-se de tal forma que fica demonstrado que havia maneiras mais simples do vilão conseguir os seus propósitos sem recorrer a expedientes cujas morosidade e dificuldade de execução fariam corar alguns génios do crime.
Muito embora génio não seja uma característica necessária no que toca a quem manipula Julia, um personagem idiótico.
A sua iniciativa de entrar nos chats em que a irmã arranjava encontros para procurar o seu assassino pode parecer uma atitude temerária embora pouco ajuizada. Ainda assim é a sua decisão mais razoável.
Todas as que se seguem são motivadas por uma profunda ignorância, das regras mínimas de segurança online, por exemplo, ou por uma confrangente irracionalidade.
Más decisões que ocorrem para fazer avançar os resquícios de uma trama. Julia está ao serviço da trama que lhe faz um desserviço a ela.
Esta característica do personagem central torna a reviravolta ainda menos aceitável e, em geral, o livro ainda menos agradável de seguir.
Julia deveria, talvez, ser perdoada pela sua composição. Apesar de tudo, ela não é mais do que a linha mestra com que S. J. Watson tenta ligar três (pedaços de) livros em três géneros com mercado.
O autor pode ter tentado garantir vendas transversais do seu segundo trabalho ou, simplesmente, ter dado um pouco de tudo a cada leitor.
O que ele conseguiu, pelo contrário, foi fazer deste Segunda Vida um vazio.


Segunda Vida (S. J. Watson)
Jacarandá
1ª edição - Novembro de 2015
408 páginas

segunda-feira, 18 de abril de 2016

O tramado último episódio

Nick Hornby lançou.-se a escrever sobre o que é uma instituição mundial, a Britcom, de um ponto de vista inesperado: uma rapariga cuja voluptuosidade lhe garantirá o futuro que quisesse mas prefere dedicar-se à comédia.
Esta escolha, a par do facto dela se deslocar do "campo" para Londres permite-lhe explorar os traços mais grossos pelos quais se definia o desfasamento interno do país.
A aparição de Barbara numa audição é o que despoleta mais uma das importantes transformações que a capital inglesa haveria de conhecer na década de 1960.
Contrariando a vontade do seu agente em que seja modelo de biquinis para tentar o seu sonho de ser uma nova Lucille Ball, Barbara acaba por fazer valer a sua história como matéria para a comédia que virá a gravar.
Como jovem rapariga de Blackpool confrontada com um preconceito masculino, ela faz valer a realidade para acrescentar veracidade à representação das mulheres na comédia.
Nem importa que entre os homens que a julgam pelo seu aspecto estejam dois que até são homossexuais e, por isso, também sujeitos às constrições daquela era.
Ela só consegue fazer valer o seu projecto porque naquele momento as ideias estão em falta.
O humor encontrou um obstáculo à sua renovação. A Guerra já terminou há muito e ainda não houve maneiras de trazer as novas preocupações sociais para a televisão, onde ainda se tenta refazer o humor da rádio.
Secretamente Barbara - que entretanto assumiu um nome artístico - está a interpretar a sua vida numa série que dá a supremacia à mulher ingénua de um Inglês típico e sério, um parlamentar.
Os melhores momentos do livro acontecem a partir do momento em que Hornby coloca a sua escrita atraente e desembaraçada ao serviço dos momentos de escrita dos argumentos de "Barbara (e Jim)".
A compreensão que os personagens do livro começam a ter sobre o que estão a fazer torna-as mais completas. Ajudam-se e confrontam-se e a interacção entre eles fala com clareza das restrições da sociedade e do ambiente de criação de um período dourado do humor televisivo.
À medida que a série é renovada para novas temporadas as preocupações com a criação reflectem as alterações que a própria série trouxe à televisão mas, igualmente, aquilo que se verifica na sociedade que fez da série um sucesso transversal.
Com os personagens a viverem os primeiros efeitos da exposição mediática, os seus esforços vão para a manutenção de uma percepção conservadora acerca das suas vidas enquanto lutam para viver as liberdades que desejam.
Para depois tornarem à série com esse tópico tentando dar à sociedade uma consciência maior e mais aberto do seu país.
Um processo moroso e difícil. As consciências não se alteram por via de uma comédia só, não interessa quão bem sucedida seja.
Hornby aproveita para explorar esse lado mais complicado da vida dos seus protagonistas, que nenhum sucesso evita ter de enfrentar.
Ainda que com elementos telenovelescos, o livro ganha com adensamento das situações para lá da criação de "Barbara (e Jim)", cada vez mais um fio que liga a todos de forma muito ténue. O efeito narrativo devidamente adensado pelas procuras individuais de crescimento.
Se o retrato dos swinging sixties ganha dimensão, o livro perde em garra.
Teria sido extraordinário saber das vidas destes personagens não tivesse Hornby acelerado para rematar a história com um final feliz (até mais pacificado do que feliz) já nos nossos dias.
Nessa parte o autor parece estar a terminar uma série com aqueles parágrafos que projectam vidas futuras para lá do The End, ou seja, pouco esforço de imaginação e ainda menos peso para os fiéis das personagens.
O que isso faz é minorar as vidas dos que viveram nas páginas, que foram transformadores na época que o livro retrata e que ali descem à banalidade.
Não importa o saudosismo apreciador que seja dedicado a Barbara e a todos os que com ela criaram a série. Nisso não se vê o efeito forte que eles pareciam ser capazes de ter na sua época áurea.
Era na década de 1960 que Hornby os tinha de deixar, dedicando-lhe por completo, fosse no seu falhanço ou no seu sucesso.
Fazer "Barbara (e Jim)" ser aplaudido à distância de muitas décadas torna demasiado fácil o reconhecimento da influência, quando o livro é precisamente sobre o esforço de a procurar.


Uma Rapariga Endiabrada (Nick Hornby)
Porto Editora
1ª edição - Outubro de 2015
352 páginas

terça-feira, 8 de março de 2016

Compensações

Esta é uma história em que pouco acontece de efectivo, visto que a ausência é aquilo que atormenta a protagonista.
A ausência de explicação para a ausência de uma irmã cujo destino é parte do mistério emocional que enfrenta Rosemary.
Durante uma fracção significativa do livro temos de crer, sem mais, que essas ausências por si só explicam que a protagonista se envolva num caso alheio que é, sobretudo, caricato.
Rosemary agarra-se à rapariga (abusadora) com quem interage em cima de uma mesa de café para crer na sua capacidade de manter uma relação humana.
Não fosse a história que nos conta a do seu próprio falhanço no mundo depois do um ponto de partida conturbado, uma família altamente disfuncional.
A esse ponto de partida Rosemary só chegará mais adiante na sua narrativa, depois de a começar a meio como lhe recomendaram em criança por falar demais.
Essa estratégia de narração é um trunfo para o interesse em seguir a história, com o suspense da descoberta das verdades por detrás do que nos conta Rosemary.
Não fosse a esperta quebra de linearidade e esta rapariga pouco expedita e sem capacidade de análise dos seus próprios sentimentos seria nada mais do que uma irritante figura percorrendo uma sequência de comportamentos arbitrários.
O mistério é aquilo com que o livro responde à necessidade de elevar a banalidade da vida interior de uma desajustada.
Surge a revelação, ainda o livro vai na sua primeira parte mas já a história de Rosemary vai enredada, de que a irmã de Rosemary era uma gorila.
Acontece que se esta estranha relação de cinco anos e o seu desfecho (silenciado pela psique de Rosemary) definem a identidade de uma mulher até à idade adulta, então tal deveria manifestar-se de forma mais intensa.
Karen Joy Fowler prefere manter a sua personagem central na eminência de mais um desvendar de mistérios, em vez de a confrontar com o que foram os anos em que disputou a admiração dos pais com uma jovem gorila.
A autora mantem os seus leitores em suspenso para conseguir ter uma aproximação de uma estrutura pela qual avance o livro.
O que verdadeiramente deveria estar em suspenso era a compreensão de si mesmo feita por Rosemary, numa retoma do sentido das suas memórias desligadas e ocultas - algo a que a autora parece querer dar forma concreta com o recurso à estrutura da narrativa.
A verdadeira tarefa de Fowler era a de sustentar a personalidade da sua protagonista, o que se mostra incapaz de fazer.
Depois da revelação da identidade da irmã de Rosemary, a autora passa a recorrer com excessiva frequência a conclusões de estudos científicos realizados com símios.
Delas devem tirar-se ilações sobre como a relação entre Rosemary e Fern esbateu as fronteiras entre homem e animal da primeira. E de como isso resultou na sua existência disfuncional.
Os relatórios substituíram-se à autora que parece ter sido incapaz de levar a bom termo um esforço que parecia estar bem encaminhado.
Em vez de titubeante na sua existência, Rosemary acaba por parecer incompleta na sua elaboração. Um personagem com um passado inesperado a que faltam os detalhes mais específicos.
Rosemary nunca poderia ser confundida com uma pessoa!
Pelo contrário, seria interessante sabê-la confundida com uma gorila, talvez a par de uma gorila confundida com uma pessoa.
Um retrato de família, em vez da sua ausência, em que a disfuncionalidade vinha dos papéis que esta permitia que as suas filhas assumissem, dentro e fora de casa.
Estamos perante um dos problemas essenciais do livro. Aquele com que faz parelha é a própria escrita da autora.
Karen Joy Fowler procura enriquecer o texto com palavras que valem pela sua esparsa utilização, não conseguindo com isso evitar algumas confrangedoras tiradas que nem num romancista em estreia se esperaria ver.
Podemos resumir os problemas do livro a um caso de compensações. Os relatos científicos compensando o que a autora não consegue estabelecer na sua protagonista e as "palavras caras" compensado as frases em que a autora não consegue escapar ao clichê.


Estamos Todos Completamente Fora de Nós (Karen Joy Fowler)
Clube do Autor
1ª edição - Maio de 2015
324 páginas

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Advertência ao leitor

A premissa de uma mulher encontrar em casa - sem saber a origem - um livro escrito por um desconhecido mas que descreve um episódio da sua vida que quer manter escondido tem enorme potencial.
Potencial para ir longe demais, criar algo tão extravagante que para ser bem sucedido teria de estar nas mãos de Bolaño, Burroughs ou Kafka.
Ou para ser um thriller psicológico e erótico bastante satisfatório, ainda que sem o rasgo de génio que se esperaria de um daqueles autores.
Pelos parágrafos anteriores já deve ter ficado claro que o livro não cumpre com o seu potencial.
O livro nem pode ser considerado um thriller, estando mais perto do melodrama - na sua versão de má qualidade que resulta numa telenovela.
Se há uma ideia de mistério ou de perseguição dentro dele é porque esse é mecanismo mais simples de levar a história por diante - mesmo sem domínio das ferramentas que lhe são essenciais.
Duas histórias correm paralelas, a de uma traição há muitos anos calada e a perda de um filho.
A intersecção das duas é a inevitabilidade que o leitor tem de querer perceber para se manter fiel ao livro.
Qual de entre as duas é a causa para que a outra seja sua consequência não se sabe, mas aquilo que acompanhamos é a forma como Stephen manipula a vida de Catherine através do livro ("O perfeito desconhecido").
Ele é, de certa forma, o autor do livro e o pai de um rapaz que morreu pouco depois do evento que "O perfeito desconhecido" narra.
Esse evento é um caso tórrido entre uma mulher casada deixada sozinha com o filho de cinco anos durante umas férias em Espanha e o jovem rapaz que ela vê interessado nela. Ou que ela seduziu de forma voluntariosa.
O que o livro dentro do livro narra é uma aproximação para esse caso vinda da imaginação de alguém desesperado.
Uma versão baseada num rolo de fotografias explícitas e na falta de explicações para a morte do filho.
O que está no livro faz de Catherine uma vilã, uma predadora sem coragem de enfrentar os pais do rapaz que deixou morrer.
Quando mergulhamos no ponto de vista dela, aquilo que descobrimos é a sua luta para manter escondida da família a sua ligação ao livro e o que se passou naquele Verão em Espanha.
Por isso a perspectiva é a de que ela é culpada de algo, embora não haja certeza do quê, porque apesar de ser uma bem sucedida realizadora de documentários, é incapaz de dialogar com o marido ou delinear um plano lógico.
O jogo de Renée Knight é o de manter uma dúvida de carácter acerca de Catherine, logo uma dúvida sobre o quanto ela possa merecer o que lhe sucede.
Isso desvia Stephen de uma avaliação mais peremptória, um homem pacífico que muitos anos após a morte do filho decidiu levar a cabo uma estratégia de perseguição violenta, não só a Catherine mas também ao filho desta: de quem se torna amigo no Facebook para lhe mostrar as fotos da mãe com outro homem.
Dois tempos distintos para a acção do livro. Dois eventos traumatizantes e duas acções de moral dúbia.
O leitor deveria estar mantido em suspenso sobre quem vê como vilão e merecedor de castigo. No final, nem esse aparente jogo resiste.
A autora manteve o leitor em absoluta ignorância para depois lhe atirar com uma revelação que é de uma violência atroz para as suas personagens e uma cobardia autoral.
Sem revelar aquilo que aconteceu, a verdade do evento naquelas férias espanholas garante que a balança se desequilibra em favor de Catherine: ela acaba como uma heroína estóica.
A partir daí, Stephen é um homem mau que tirou ilações de uma situação que conhecia mal e o seu filho fora alguém ainda pior.
Só que, de forma estúpida, há uma redenção para ele. Stephen deixa a sua casa a Catherine como pedido de desculpas. E o filho de Catherine que se tentara matar acorda do coma e o final feliz remata a história.
Tristemente fica por explorar a verdadeira dúvida moral que o livro poderia conter, a do significado da morte do filho de Stephen - um vilão por direito próprio, de acordo com a reviravolta vinda de lado nenhum - que morreu depois de ter salvo o filho (quando criança) de Catherine no momento em que ele estava aflito no mar.
O melodrama barato fica concluído com ideias demasiado definidas de bons e maus, de injustiça e expiação. E tudo graças a um expediente que periga na sua (indevida) banalização.
Isto vem servido por uma linguagem descarnada e por descrições sempre demasiado funcionais que revelam a origem de guionista de Renée Knight.
A leitura é quase toda assente nos carris das acções dos personagens e as suas vidas interiores são descritas de forma directa como se a dar indicações claras (e, diria, demasiado óbvias) a actores.
Trata-se de um livro para o qual se deve fazer uma séria advertência ao leitor (expressão mais próxima do que deveria ser o título ambíguo do livro, embora reconheça a dificuldade de tradução com obtenção de um título apelativo).
Advertência de que se sentirá enganado por um livro que não sabe o que fazer com as suas ideias, que faz as personagens comportarem-se de acordo com as necessidades da trama e que esconde o jogo de forma inane para depois justificar a etiqueta que ajudará a vendê-lo.


Pura Coincidência (Renée Knight)
Suma de Letras
1ª edição - Outubro de 2015
304 páginas

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Culinoiria

Sarilhos nas Caraíbas não me soube tão bem quanto Um osso na garganta, talvez porque o efeito de novidade se tinha desvanecido e a expectativa estivesse num patamar mais elevado.
O que numa homenagem ao noir com o espírito de leitura desenfreada capaz de fazer uma mulher saltar da mota ainda nua a disparar uma arma automática quer apenas dizer que me diverti quase tanto como com o livro anterior.
Desse livro para este desaparece a insistência maior nos elementos da culinária profissional. Pelo contrário, regressa Tommy e a sua namorada Tracy.
Fugidos dos mafiosos nova-iorquinos, o casal passou de protagonista a complemento de um outro casal de quem se tornam amigos.
A tentarem viver as suas vidas longe dos seus contratantes, Henry e Frances é um casal de assassinos que vive feliz e apaixonado num paraíso na Terra.
Só que o "Padrinho" que Henry falhou em matar veio esconder-se também ali e Henry quer perceber se as coisas entre eles estão bem recorrendo a Tommy e Tracy que trabalham para ele.
O que daqui resulta é um livro sobre camaradagem, muitas vezes parecendo um mero passeio de férias em que Bourdain dá conta de como as Caraíbas são o local que devemos querer visitar.
Um local onde até foragidos e assassinos podem encontrar forma de serem felizes e apreciados, numa normalidade com uma fasquia cimeira.
Só que quando o livro não se dedica às viagens, lança-se com toda a imaginação siderada do autor para cenas de acção que deviam fazer a inveja de Hollywood.
Um grupo de capangas vindos de Nova Iorque contra um casal e um velho mafioso, plena loucura de tiros e sangue em que Bourdain se delicia, o que se transmite ao leitor.
E o melhor está nas trocas entre os casais, com bastante humor negro e ainda mais jogos de duplo sentido que fazem lembrar o melhor do cinema, aquela idade de ouro em que eram pelos diálogos que os actores brilhavam, não fazendo prisioneiros na hora do duelo de palavras.
Para acomodar todos estes elementos, Bourdain é um pouco liberal com a trama, certamente deixando alguns detalhes em aberto.
Valeria a pena cobrar-lhe tal como um erro se não fosse o facto disso ajudar às reviravoltas e a um efeito de esticão súbito que a história nos dá de poucas em poucas páginas.
Afinal falamos de um noir, o que a julgar por um dos seus mestres deve ser um livro escapista e pouco obediente em que o ritmo e o ambiente pesa mais do que o restante.
O chef anda lá perto!
Descomplicado e tresloucado, um policial para ler em qualquer local - ainda que, de forma mais provável, na praia tenha maior impacto - sentindo a dose de adrenalina que ele transmite e regozijando-se com ela.
Se estes livros são o que Anthony Bourdain era capaz de escrever no tempo livre de quando era um chef de topo, gostava de saber o que ele alcançaria dedicando-se à literatura a tempo inteiro.
Já conhecendo bem as suas obsessões e sentindo que Bourdain encontrava aqui uma voz sistemática - tudo isto por vezes ainda traz para os seus programas televisivos - creio que o resultado podia aproximar-se do notável.


Sarilhos nas Caraíbas (Anthony Bourdain)
Ambar
1ª edição - Outubro de 2003
324 páginas

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Corte e colagem

Este é mais um livro em que uma rapariga está no sítio errado à hora errada, apenas para descobrir que é extraordinária e, contra a sua vontade, tornar-se na peça mais importante de um xadrez político.
Muda o contexto ou variam as circunstâncias. Os autores continuam a replicar um mesmo livro que o público alvo consome sem hesitação ou critério.
Um público alvo que é o de mulheres (mais ou menos perto do momento em que deixaram de ser raparigas) que continuam a clamar por heroínas corajosas e independentes. Mas cuja maturidade deixa algo a desejar!
Uma protagonista - uma heroína, até lhe podemos chamar - escolhida pelo acaso e que desde logo merece ser o pilar da história... e da conciliação das duas castas deste mundo... e da liderança da resistência...
Ela que se deixa influenciar vezes demais pelos ciúmes e que mostra pouca piedade mesmo quando reflecte que a dor dos familiares daqueles em cujo assassinato participará pode ser equiparável à sua.
O livro centra-se na protagonista, afunilando a narrativa de tal forma que o mundo à volta nunca chega a ser definido.
Fá-lo sem uma justificação credível e apenas na expectativa de que ela provará a justeza de ser escolhida no final... da trilogia, claro, pois há que fazer render as páginas.
Gostaria de invocar o seu poder - criar e manipular electricidade - ou a sua existência dividida entre dois mundos para dizer que ela interessa como protagonista. Só que o seu maior feito é o de conseguir encantar dois príncipes irmãos e criar um triângulo amoroso.
O melodrama barato não pode faltar a estes livros e, embora neste caso, o mesmo seja desfeito com uma reviravolta, a autora logo estabelece a aparência de um outro durante o cliffhanger que encaminhará alguns para o segundo livro.
Sobre a reviravolta só se pode dizer que é das mais gastas de toda a ficção e que é perceptível mal o mais jovem dos príncipes - logo, sem acesso ao trono - se mostra favorável à resistência enquanto a sua cruel mãe - segunda mulher do rei e suspeita de ter assassinado a antecessora - não lhes dá descanso.
Para que quer este tipo o trono para além de perpetuar o status quo não se sabe muito bem já que a caracterização não é o forte da autora.
Nem a descrição, que vai sempre longe demais. Uma adjectivação mais ou um elemento descritivo extra mostram que a autora se esforça em demasia ao invés de confiar na economia e na capacidade dos seus leitores. Parece o texto de um estudante a querer dar melhor imagem do que escreve e a parecer que está a embelezar o vazio das suas ideias.
Ou sequer a construção de mundos, uma amálgama de Época Medieval, Revolução Industrial e salpicos da Idade da Informação. Com poderes concedidos pela genética.
Castelos e famílias feudais. Opressão esclavagista sobre os trabalhadores. Vigilância e manipulação mediática.
Mais exactamente, indefinição do tempo em que a história se passa para permitir que tudo possa lá ser incluído sem preocupações de consistência.
Tudo com lamirés rápidos para não complicar, porque num país em guerra há cerca de cem anos, só a recém aparecida Resistência (em modo terrorista) causa problemas e tudo se passa na corte real.
Qual é então o forte da autora? Creio que é dar a aparência de referenciar as mais famosas sagas de sucesso e servir algo que iludirá alguns como tratando-se de algo novo.
Usar um esquema narrativo de distopia ao jeito de Os Jogos da Fome, acrescentar-lhe a ideia de transgressão nas relações (altamente suavizadas) das famílias nobres  de A Guerra dos Tronos e diferenciar com os poderes e o receio da sua disseminação de X-Men.
Corte e colagem! E a autora é boa o suficiente nos trabalhos manuais para ser a estrela por uns tempos, possivelmente vender os direitos do livro a um estúdio de Hollywood e depois reformar-se quando lhe exigirem uma ideia original para um novo livro.


Rainha Vermelha (Victoria Aveyard)
Saída de Emergência
1ª edição - Setembro de 2015
352 páginas

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Duas hipóteses

O livro de Paolo Sorrentino teve origem no argumento do seu filme, numa inversão que costuma ser mais habitual em blockbusters.
A versão literária da história do filme costuma servir para potenciar os lucros mas o caso d'A Juventude é o aproveitamente de uma sensibilidade pessoalíssima.
Claro que cada um apreciará ou não essa sensibilidade, sobretudo se tiver visto o filme antes de chegar ao livro.
Quem tiver achado o filme mau deverá evitar por completo o livro pois o seu defeito é, precisamente, ser fiel a esse.
O livro é o argumento do filme, como fica bem legível em diversos momentos que são como referências apontadas aos vários técnicos e actores que lhe viriam a dar forma.
O polimento do texto ficou pela metade, retirando-lhe indicações cénicas, mas não o levando por completo de guião a novela.
Esperava-se que Sorrentino tivesse proporcionado mais algum desenvolvimento à sua aproximação despojada à história.
Não apenas descrições que substituíssem o que a imagem proporciona, também algo que nos desse maior discernimento acerca dos personagens.
Aquilo que os actores conseguem transmitir ao serviço do realizador e que como escritor ele teria de expressar de uma maneira mais explícita.
Em contrapartida, numa tentativa de percepcionar o livro sem a sua ligação ao filme - e ignorando aquilo que o denuncia como tendo origem num argumento - podemos encontrar um conto que tende para um estado de liberdade.
Liberdade de amarras estruturais, que procura livrar-se de tudo excepto da colocação de personagens singulares em cenários sugestivos quer literaria quer cinematograficamente. Como se fosse uma aproximação leve a Thomas Mann (e Luchino Visconti) ou Federico Fellini.
Uma aproximação que rejeita a densidade porque quer expressar na forma do próprio texto o niilismo sábio - e egoísta! - dos personagens.
A novela tenta dar forma às suas discussões que não chegam a ser filosóficas, são apenas procuras de coordenar duas formas distintas de desistência perante o mundo.
Entre estes dois julgamentos a que se submete A Juventude há espaço para outras tantas conclusões.
De que este livro é uma curiosidade que dá um vislumbre do processo de criação que leva a um filme.
De que Paolo Sorrentino pode ser um escritor interessante caso procure escrever livros e não adaptar guiões.


A Juventude (Paolo Sorrentino)
Jacarandá Editora
1ª edição - Novembro de 2015
144 páginas

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Menos viciante, isso sim

Tirando a actualidade que um thriller em torno de um caso de doenças calamitosas transmitidas por parasitas tem, não há realmente razão para que este livro tenha direito a uma tradução no nosso país.
Até porque se a história começa por ter uma base científica, esse contexto vai-se desvanecendo à medida que o livro se torna numa enorme "sequência de acção".
Embora a acção permita a Nick Louth escrever algumas interessantes passagens sobre a cidade de Amesterdão, não lhe permite muito mais.
Desenvolvimento de personagens é inexistente, a menos que se considere que transformar um artista num herói de acção no decorrer de um único capítulo - e para assim continuar o resto do livro - se assemelha a tal.
Um herói de acção ao nível de John McClane: esmurrado, mordido por cães, tratado com todo os graus de violência e logo cerra os dentes ou dorme oito horas e está pronto para outra.
O livro torna-se ridículo a partir do momento que o namorado da cientista que ia fazer uma revelação extraordinária sobre o combate à Malária se lança na pista do seu desaparecimento.
Sendo que o livro tem de ir em crescendo de intensidade (seja lá o que for que isso queira dizer neste caso...) até ao final, a coisa torna-se mais absurda com o envolvimento das melhores equipas tácticas de combate do mundo.
Verdade seja dita que há interrupções ao inclemente jorrar de cenas de acção: os excertos de um velho diário da cientista desaparecida.
São relatos da sua passagem por África onde tentou ajudar a combater a doença e onde descobriu a fealdade dos comportamentos que muitos por lá se sentem no direito de ter, das guerrilhas locais às empresas farmacêuticas internacionais.
Os excertos são vívidos e bastante incisivos, com descrições de crueldade quer psicológica quer física.
Nesses breves momentos Louth dá mostras de algum talento como escritor, muito embora a pausa de diálogos sofríveis e de detalhadas descrições (causadoras de bocejos) possa dar azo a uma memória mais positiva do que tais excertos merecem.
Afinal de contas, esses excertos acabam por ser muito estranhos porque a sua autora ficcional os escreve com uma precisão de detalhes que roça o maníaco.
Ela não só descreve o que aconteceu muitos dias depois de ter acontecido como expressa com muita eloquência os momentos em que esteve à beira de ser violada ou morta - que deveriam ser traumatizantes e capazes de fazer esquecer alguns detalhes, pelo menos.
O que o diário vai revelando é a complexidade de Erica que nem o próprio Max - o namorado heróico - conhece e que a tornam num pouco mais do que uma vítima inocente.
O livro quer fazer dessa descoberta um foco adicional para além dos desenvolvimentos da busca.
Como nunca nos interessamos por conhecer os personagens, também isso falha. A par da reflexão moral sobre as práticas das farmacêuticas e a cumplicidade com a violência anónima no continente africano.
Ao contrário do que a tagline do livro quer fazer crer em toda a sua arrogância, este livro pode ser o "mais" em muitos aspectos, mas todos eles contrariam o adjectivo usado.


Febre (Nick Louth)
Jacarandá
1ª edição - Julho de 2015
376 páginas

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

À procura de fôlego

Este livro é uma revelação do potencial de Pedro Vieira e, na mesma medida, do seu desencontro com a matéria ficcional que lhe será mais apropriada.
Há um estilo já definido no trabalho de Pedro Vieira, um em que ele se aproxima da metalinguagem.
O autor imiscui-se na vida das suas criaturas, falando do universo que está para lá delas e procurando o jogo referencial que permita a expressão do seu processo e até algumas graças por conta da sua intervenção omnipotente.
Tudo isto funciona melhor em relatos breves e, por isso, os capítulos assemelham-se muito a crónicas em que a ficção e a realidade se misturam em serviço da arte de quem escreve.
Os personagens acabam mal servidas, incapazes de evoluir porque não há uma visão estrutural para o desenrolar do livro,
Há a história de um romantismo trágico que traz para os subúrbios de Lisboa uma chama da grandiosidade sentimental Russa.
As histórias individuais no seio da história do livro tentam convocar tudo o que caracteriza o Portugal dos anos 1980 até hoje, numa mistura do pior que, inevitavelmente, copiámos do resto do mundo e do que já era intrinsecamente nosso e nunca mudará, para mal dos nossos pecad(ilh)os.
Só que a tentativa de retrato do subúrbio para estabelecer uma ideia do Portugal das últimas décadas acaba por levar a que os episódios prevaleçam sobre a coerência humana dentro do romance.
Ou talvez seja das ideias empoeiradas essa falta de dimensão dos personagens, tornados em arquétipos porque a grandiosidade romanesca não consegue resgatar nada do que está no interior de lugares-comuns sobre os subúrbios.
Poderá ser uma conclusão errada, mas os subúrbios não parecem ser o domínio de Pedro Vieira, que parece antes conhecê-los de ideias repetidas ao longo dos anos.
As histórias que ele ouviu de lá originárias acabaram por criar um cenário mítico de falhanço onde ele acreditou poder reinterpretar a Literatura e a Portucalidade.
A tentativa pode bem ser meritória mas não foi aqui que o autor o conseguiu.
Como treino para o seu estilo e uma aproximação a um trabalho de fôlego longo pode, pelo contrário, ter sido um sucesso.


Última Paragem, Massamá (Pedro Vieira)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Fevereiro de 2011
208 páginas