segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Cinema de aventuras

Relicário tem uma viva linguagem cinematográfica, que serve bem a imaginativa história, um thriller em que a aventura e a especulação científica se cruzam sugestivamente fazendo render a tensão até ao final pela introdução de diversos acontecimentos que tornam o ambiente de Nova Iorque mais palpável.
Serve a história proporcionando a cada página uma fácil e apelativa imagética que nos faz percorrer as páginas com gosto.
Uma linguagem cinematográfica que, no entanto, prejudica também o decorrer da história, com uma construção de cenas que acaba por denunciar o que vai ocorrer, colocando à frente dos olhos a sugestão – demasiado explícita – daquilo que logo depois vai revelar.
Algo que atesta bem ao facto de não ser tanto o mistério (policial) a dominar o livro – e, por consequência, também não ser como thriller que este mais se destaca – mas antes o sentido de possibilidades em aberto, de aventura.

O que resgata Relicário a esses desequilíbrios é o domínio que os seus autores têm da cidade em que a história decorre.
Seja o reino das “toupeiras” habitando os subterrâneos de Nova Iorque ou sejam os atritos que se geram na relação da população local com a violência que por lá ocorre, os autores criam um enorme sentido de realidade, com um domínio perfeito do interesse e da expectativa dos leitores.
Conjugando isso com uma inteligente construção das suas personagens, inusitadas, complementares, cuja actuação permite inferir diversos pormenores intrigantes das suas profissões – jornalismo, antropologia ou polícia de giro – e das relações que no seu seio e entre cada uma se estabelecem.
Relicário é, por isso, uma agradável aventura, que será mais natural de ler a quem leu Relíquia (do qual este livro é a sequela) mas que tem informação em doses mais do que suficientes para quem quiser começar apenas por aqui.


















Relicário (Douglas Preston e Lincoln Child)
Saída de Emergência
1ª Edição - Julho de 2009
400 páginas

sábado, 29 de agosto de 2009

Literatura popular

Nick Hornby é um escritor de apurado sentido popular, que explora as mais convencionais e reconhecíveis situações com uma casualidade e uma facilidade que falam directamente ao homem comum que se esconde (ou nem tanto) por detrás do leitor exigente.
Esse sentido pop é o que lhe permite conquistar o seu público, pela identificação e por uma certa dose de humor, para depois lhes falar de temas nada menos do que perturbadores.
Temas que passam pelo suicídio, pela inadaptação, pela falta de concretização da vida ou pela destruição do conceito de família.
O apelo de Nick Hornby é então esse, de falar de temas tão comuns – acima de tudo, as relações – de forma tão desavergonhada, tão realista quanto mordaz, tão compreensiva quanto destrutiva.
Isso é algo que parte desde logo da escolha dos seus temas, temas que lhe são queridos a ele como a 80% – valor fabricado neste preciso momento! – da população ocidental. Futebol, música, romantismo. E com certa leveza de vocabulário, com uma predominância da oralidade, com um encadeamento escorreito, vai encobrindo a seriedade de muitos dos subtemas que lá se encontram.
Essa conjugação de factores acaba por ser também aquilo que torna as suas obras em material tão bom e fácil de se ver adaptado ao cinema.
Mas embora Era uma vez um rapaz seja um bom livro, não tem o mesmo encanto que Alta Fidelidade teve quando o li, esse livro que era ele próprio uma forma de canção pop sobre o amor e sobre a música, o que me impede de estar certo de voltar a reencontrar-me com Nick Hornby.


















Era uma vez um rapaz (Nick Hornby)Teoremasem indicação da Edição - Maio de 2000
296 páginas

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Um trabalho de precisão

Glen Duncan escreveu um romance onde o envolvimento e a sequência dos vários Tempos descritos são dominados de forma precisa e inteligente, capaz de falar tão loquaz e agilmente de uma grande história de amor como da cega crueldade do actual mundo ocidental.
Uma história de amor tão capaz de desafiar as normas sociais no seu surgimento como de desafiar o sofrimento pessoal na sua ruptura.
Uma crueldade humana que origina também a mais bizarra e desigual relação de afinidade entre duas pessoas, reduzindo a diferença que queremos encontrar entre os bons e os maus, entre os terroristas e o resto de nós.
Mas que fala também de muito mais do que isso, que fala de toda – várias, mesmo – vidas que se podem viver.

Porque um dia e uma noite e um dia é o período de tempo que parece sempre definir a vida de Augustus Rose.
É nesse período que a sua vida parece reencontrar toda a felicidade do mundo só para que, depois, ele descubra o maior dos sofrimentos. É nesse período que ele sofre a maior das dores só para que, depois, ele descubra o maior dos alívios.
O principal desses períodos, uma sessão de tortura com o interrogador Harper que descobre a afinidade com Augustus e que parece querer recusar a necessidade dos seus métodos cruéis, parece ser o verdadeiro cerne que dominam o despoletar das memórias de Augustus e o definir das suas acções presentes.
Numa engenhosa sequência de analepses e prolepses, a incrível e periclitante vida deste homem, mas também a misteriosa e sedutora vida das personagens secundárias que com ele se cruzam, revelam a pouco e pouco as suas .
Entre essas personagens, é sobretudo, claro, Harper, um quase-vilão que parece apenas disposto a enfrentar a tarefa a que se vê obrigado pelo alívio e compreensão daqueles que têm de a sofrer.

Esta é uma leitura, talvez a mais óbvia, do que é este livro.
Mas a riqueza de Um Dia e Uma Noite e Um Dia é suficiente para que cada um dos seus leitores lhe possa descobrir a sua própria entrada, a sua própria afinidade fascinada.
Este é um livro que nos poderá captar a atenção num mero pormenor para depois o fazer ressoar ao longo da sua trama maior, ao longo de todas as páginas que ficaram antes e que ainda faltam surgir.


















Um Dia e Uma Noite e Um Dia (Glen Duncan)
Publicações Europa-América
1ª Edição - Julho de 2009
202 páginas

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Um feliz acidente

Estava a chegar às oitenta páginas de Timbuktu quando me coloquei a folhear o livro.
Foi uma reacção ao esforço que vinha fazendo até aí, uma forma de avaliação de quanto me faltava ler.
Reparei nesse momento que o livro tinha uma série de páginas repetidas no lugar das páginas que lá deviam estar.
Foi como uma bênção que me permitiu escapar a um livro que me vinha desagradando mas contra o qual continuava a teimar por aquilo que o nome do seu autor evocava.
Mesmo não sendo um leitor dedicado de Paul Auster – afinal de contas continuo a achar que a sua melhor obra é a adaptação em Banda Desenhada que Paul Karasik e David Mazzuchelli fizeram de um dos seus contos retirados de Trilogia de Nova Iorque – reconheço-lhe diversas qualidades e interesse também.

Mas Timbuktu revelou-se um discurso disperso, um acesso de memória, sempre com reentrâncias e becos sem saídas, contínuo mas periclitante nos saltos entre temas, ora pedaços de filosofia do homem comum, ora referência de cultura popular, ora sonho, ora lembrança.
Um discurso dividido pelos seus dois protagonistas, um homem a morrer e o seu cão fiel.
Mas a personagem do cão parece – pelo menos até onde me foi possível ler – inútil, a extensão da personalidade mais desagregada do seu dono e, simultaneamente, um apego emocional de uma personagem para com os seus leitores.
O encontro com a falta de páginas foi, perante o que acabo de descrever, nada menos que um alívio, que de bom grado teria descoberto mais cedo.
O livro, ilegível e já introcável, encontra-se agora na reciclagem de papel. Um fim injusto, mas inevitável.


















Timbuktu (Paul Auster)
Edições Asa
5ª Edição - Novembro de 2000
160 páginas

domingo, 23 de agosto de 2009

Guia prático para comédia de classe

Há uma combinação deliciosa em Christopher Moore, que o seu trabalho como humorista venha carregado de qualidade como escritor, de uma imaginação plena de originalidade e de uma erudição assinalável.
Por isso mesmo se torna tão deliciosa a leitura desta sua “comédia de terror” capaz de citar Xerazade à medida que esboça uma road trip pelas estradas americanas feita pela mais improvável dupla de companheiros que já nos foi possível encontrar e que resultará numa visão nada menos do que divertidamente lúcida do típico retrato das pequenas cidades americanas para onde convergem personalidades tão curiosas e caricatas.
À conta desse seu universo, verdadeiramente único, que conjuga o melhor da sua imaginação com o mais apropriado e hilariante realismo do seu país.
A ironia, o sarcasmo e a crueldade têm par – e repercussão, para ser justo – na atenção que Moore dedica às suas personagens, mesmo àquelas que aparecem só para ser comidas ao fim de um capítulo.
Já o humor tem par na erudição, a facilidade do sorriso que as páginas nos proporcionam é a mesma facilidade com que as referências literárias nos evocam outros conhecimentos literários e, com isso, outras ressonâncias para as suas criações.
O seu trabalho, fosse de um género mais sério, seria certamente aclamado de forma mais abrangente, mas o culto que o autor vem gerando em torno de si é plenamente justificado, e quanto mais nos pudermos embrenhar no seu singular universo, melhor.


















Guia prático para cuidar de Demónios (Christopher Moore)
Gailivro
1ª Edição - Junho de 2009
328 páginas

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O que mais se poderá pedir a um romance?

Adiei durante anos a leitura de História do Rei Transparente.
Hoje pergunto-me porquê, depois de ter encontrado um livro de aventuras que dignamente evoca as lendas do Rei Artur ou Don Quijote de la Mancha.
Um romance escrito com uma riqueza surpreendente, com uma imaginação brilhantemente disposta, com uma fonte história riquíssima (há que agradecer à autora o posfácio onde o evidencia) e com uma originalidade que não é menos do que tremenda.
Um romance que parte da simples condição de uma mulher camponesa para atravessar o mundo, em crescendo não só das possibilidades e das aventuras mas também do conhecimento e da vivência, num engrandecimento da sua vida como da sua crença em si mesma e na humanidade.
Um romance de aventuras que faz o elogio da mulher, da compaixão, da aceitação mútua e do pensamento livre.
Um romance que, por isso mesmo, nos fala do presente como nos fala de um período que nos é, em geral, desconhecido, um período ainda no século XII que pronunciava já a revolução que se traçou no Renascimento.
Um romance que, intemporal e épico, poderá ficar como uma das grandes obras da Literatura.
O que mais se poderá pedir a um romance?



















História do Rei Transparente (Rosa Montero)
Edições Asa
1ª Edição - Outubro de 2006
448 páginas

domingo, 16 de agosto de 2009

A humanidade do ridículo

As personagens de Abstinência têm abatida sobre elas uma tristeza verdadeiramente cruel.
Uma tristeza que as faz sobressair num mundo que, à sua volta, se torna cada vez mais caricato.
Estas personagens merecem, pela sua audácia, o destaque. Por isso nos dá tanto prazer seguir as suas bravatas em nome de crenças que parecem diluir-se num país – e mais do que isso, num estilo cristalizado desse país, os subúrbios americanos – que se diz líder do mundo livre mas que retrocede para uma idiotice fanática cada vez maior, ao ponto de parecer justificável que a luta do fanatismo religioso por esse mundo se mantenha apontada aos Estados Unidos da América.
A ironia e o humor desta obra, discretos mas tão eficazes, acentuam aquilo que é o ridículo de um país disposto a trocar aulas de educação sexual por aulas de castidade, de um país disposto a render-se aos queixumes de uma minoria religiosa que arranja tantos subterfúgios para justificar os seus – mas nunca as dos outros – desvios à doutrina instituída.
E, de novo, nesse espaço, são as poucas personagens descrentes, errantes, dilaceradas, inconvictas, que merecem a nossa atenção. São elas as últimas réstias de humanidade que poderemos encontrar

Tom Perrotta escreve com um domínio perfeito da cultura pop, validando-a numa escrita que tem as melhores qualidades clássicas.
Por momentos poderemos pensar que Perrotta está a reescrever um Sexo e a Cidade aplicando-lhe a sátira, o realismo e a sensibilidade que o tornam num mundo mais real e mais interessante, mesmo que mais difícil, de seguir!
A sua comparação com Steinbeck (Time) não será infundada.
Infelizmente a traduções deste livro não é tão escorreita como deveria.
A sua eficácia não está em causa mas nota-se que as opções não foram sempre as melhores, as que mais faziam sobressair a qualidade do texto.
É uma pena que assim seja, pois a qualidade da obra é indiscutível.


















Abstinência (Tom Perrotta)
Contraponto
1ª Edição - Maio de 2009
312 páginas

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Um violento fascínio

Esta é a história de um assassino. Melhor dizendo, é a história de um bairro e das tortuosas relações que nele se criam em torno do assassino local.
A história é como um pequeno retrato de uma cidade e de um homem e das poucas figuras que o rodeiam.
Um retrato que tem tanto de quotidiano como de violento, tanto de corriqueiro como de extravagante. Ou se quiserem, um O que diz Molero conduzido por Sam Peckinpah, a poesia da violência ao serviço do espelho dos episódios que definem um espaço singular.
Gillermo Fadanelli expõe-nos a crueldade deste mundo, não nos esconde as evidências da violência que o define e o transforma.
Mas não completa o quadro, antes deixa um pequeno espaço vazio que nos cabe a nós completar.
Temos todos os dados, apenas nos falta aquele julgamento, moral, que torna evidente o repugnado fascínio que não conseguimos esconder.
Não é uma névoa que o autor usa para resguardar esse pedaço de realidade, é apenas um pequeno espaço deixado à nossa decisão, que assim torna o texto mais nosso e, sem dúvida, mais diferenciado, pois se para mim a reacção é a de deleite para outro leitor poderá ser a de asco.
Toda a delícia do livro vem daí, de um mundo que fica também como nosso, com o nosso cunho, embora seja por si só imensamente fascinante.


















A outra face de Rock Hudson (Guillermo Fadanelli)
Oficina do Livro
1ª Edição - Setembro de 2008
140 páginas

domingo, 9 de agosto de 2009

Uma infância de todos

Pequenos contos de uma infância vivida em grupo, uma infância sempre partilhada.
Pequenos contos que se movem ao ritmo fluído da memória e que compõe um breve mas rico retrato de um tempo que merece ser recordado.
As infâncias são sempre felizes à posteriori, mas esta parece tê-lo sido no momento em que decorreu e que, por isso, foi recordada com todos os sentidos que possuímos.
As suas cores, os seus sabores, os seus cheiros, todos sobressaiem no relato.
Mas, claro, também as suas emoções estão nela impregnadas, dando-lhe uma honesta candura a que é difícil resistir.
Uma infância que não vivemos mas que gostaríamos que fosse nossa, que podemos agora herdar com indisfarçável prazer.

Ondjaki escreve num português que tem um ritmo próprio, que tem um sabor único.
Um português que apetece reler em voz alta, que apetece saborear, deixar dançar na língua.
Os vocábulos típicos de Angola tornam-se muito rapidamente familiares (ainda que uma vez por outra não consigamos adivinhar-lhes o sentido) e gostamos cada vez mais de nos demorar nelas.
Ler Ondjaki é agora um prazer que pretendo repetir e desfrutar.


















Os da minha rua (Ondjaki)
LeYa/Bis
1ª Edição - Janeiro de 2009
128 páginas

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Vai ter de repetir

Não sei se terá sido propositado, mas para mim o tema deste livro está todo ele exposto na sua própria estrutura.
Um homem, caminhando para uma velhice um pouco impotente, tira notas - não chega a ser um diário - capazes de relatar os acontecimentos da sua vida.
Não temos a certeza se o faz para afrontar a sua crescente degenerescência ou o faz como rendição a ela.
Não temos a certeza se com essas notas prova a resistência das suas capacidades mentais ou se prova que, de outra forma, já não seria capaz de recordar o que se passou consigo.

Todo o livro lida com o confronto com o envelhecimento e com a morte. O confronto e a aprendizagem, desse envelhecimento que se revela na surdez progressiva do protagonista.
Por mais que não pareça uma condição das mais gravosas - como o próprio autor salienta por diversas vezes, afirmando e demonstrando que a cegueira é vista tragicamente e a surdez comicamente - é debilitante, sobretudo para um linguista, assim privado da sua profissão.
Mas é, também, debilitante na forma como destrói o contacto social, como irrita as pessoas que lhe são próximas e como cria uma barreira de solidão cada vez maior.
A surdez é, afinal de contas, um isolamento do mundo, pelo que o combate contra ela, contra a velhice, contra a morte, será sempre uma luta solitária.
Nos seus equívocos, na sua constante repetição, chega a um ponto em que parece tão ridícula essa luta que a nossa reacção é a de nos enternecermos com o seu protagonista.
A sua determinação em se sentir de novo inteiro e capaz e humano leva-o a envolver-se com uma rapariga que parece pronta a destabilizar a vida e só uma tragédia ainda maior, que aproxima ainda mais da fragilidade da vida, não só a ele mas a todos os que o rodeiam, parece capaz de o fazer reencontrar com as pessoas e vice-versa.
Este romance é como uma vertigem perante a debilidade da velhice. Mas é também uma genuína demonstração de força e, até certo ponto, um alerta, embora não seja nada disto propositadamente.
É, acima de tudo, um romance muito bem pensado e muito bem escrito, que como todos os grandes romances consegue extravasar-se a si próprio para tocar a vida - ou, pelo menos, a consciência - do seu leitor.

Uma nota que não poderia aqui falhar, até por ser o autor a mencioná-la logo na abertura do livro, vai directamente para a tradução.
Não era minimamente fácil fazê-la, tão repleta de singularidades línguisticas e trocadilhos que só resultam no seu original inglês.
No entanto, a tradutora Tânia Ganho conseguiu salvaguardar esses jogos de significados, sem comprometer a legibilidade do livro com as notas de rodapé, que são ricas e apropriadas, mas não excessivas.


















A vida em surdina (David Lodge)
Edições Asa
1ª Edição - Maio de 2009
336 páginas

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Nós e os outros

Um livro sobre escolhas e sobre condicionamentos.
Um livro que nos confronta com os limites daquilo a que uma pessoa se sujeita ou que sacrifica para manter uma imagem de si mesma perante os outros; com aquilo que uma pessoa argumenta de forma a se convencer da justeza das suas acções; e com aquilo que se perde de si mesmo no processo de se adaptar à consciência social.
Um livro poderosíssimo no que respeita à confrontação que exige ao nosso próprio comportamento, às exigências que nos fazemos por motivos tão claramente absurdos quando aplicados aos outros, aos sacrifícios em que reincidimos por motivos que são tudo menos nossos e às ideias pelas quais nos aceitamos reger com medo de exibir os nossos sentimentos

Um livro que confronta o particular como confronta o colectivo.
Confronta a leviandade com que apontamos aos outros os defeitos que escondemos de nós próprios.
Confronta a leviandade com que, nesse processo, a sociedade ataca aqueles que no seu seio tornam visíveis tais defeitos, relegando-os para um gueto condicional.
Confronta a falta de direito que uma sociedade tem de se ilibar por culpabilização simplista de uns quantos e a falta de direito que essa sociedade tem de julgar no presente se não pode ver os eventos à luz das suas circunstâncias passadas.
Confronta a sociedade com a resistência do indivíduo - mesmo que este se julgue ele próprio culpado - e com a sua elevação, vista sempre como confrontação, uma defesa de carácter tomada como provocação.

O Leitor fala, no fim de contas, do analfabetismo social e moral em que uma geração alemã - mas todos nós, de tempos a tempos - se permitiu cair.
Fala da capacidade de julgamento que acreditamos ter sobre aqueles que não procuramos compreender.
Fala dos nossos erros, da sua persistência e do seu eco na sociedade, eco esse que apenas os potencia.
Um livro de uma força inegável e que obriga a uma revisão daquilo que esperamos de nós mesmo e, ainda mais, daquilo que esperamos dos outros. Um revisão que torna menos justificável uma diferenciação entre ambos.


















O Leitor (Bernhard Schlink)
Edições Asa
5
ª Edição - Fevereiro de 2009
144 páginas

sábado, 1 de agosto de 2009

Redescobrir a distopia

Lidar com este livro envolve uma enorme dicotomia que apenas torna o exercício mais interessante e a admiração pelo autor maior.
Trata-se de um combate que o leitor tem de travar entre a forma e o conteúdo ou, sendo mais específico, um combate entre a resistência do leitor à datada forma deste romance de Ficção Científica e a sua insaciedade com a imaginação sempre actual do seu conteúdo.
A obra de Karel Capek ainda está muito agarrada ao género de relato que H. G. Wells havia iniciado e ainda sem a frescura da geração que surgia na década em que esta obra foi publicada.
A extensão de informações dadas em notas de rodapé, reproduzindo artigos de jornais muitas vezes em línguas não traduzíveis, chega a ser demasiado maçuda.
Mas pelo meio disso surge uma forte e intemporal capacidade crítica que aplica a sua sátira a assuntos tão diversos como a tolice Hollywoodesca, as políticas fanáticas e racistas ou a falta de abertura dos homens de ciência.
Sátira essa que, apesar de falar das starlets e do nazismo em específico, fá-lo de uma forma que está para lá dessa especificidade, que é aplicável ao comportamento mais constante e cíclico dos seres humanos.
Mas, acima de tudo, há uma crítica nada velada à essência - mais bélica que comunitária - da própria Humanidade, sobre a qual ele discorre em importantes reflexões de teor quase filosófico e contra a qual termina com um capítulo metalinguístico em que fala do futuro das salamandras como expressão das possibilidades do que a humanidade acabará por fazer a si mesma.
A Guerra das Salamandras é uma cruel distopia da própria visão em que se vinha transformando e continua a transformar a humanidade.
Um livro inovador no seu tempo que em bom tempo se pode redescobrir, já que se mantém como um aviso tão actual.


















A guerra das salamandras (Karel Capek)
Publicações Europa-América
1ª Edição - Maio de 2009
240 páginas