quinta-feira, 31 de março de 2011

Encontros em Tel Aviv

A linha clara de Exit Wounds, que está depois repleta de detalhes, sublinha a importância de tudo o que é representado, tanto as personagens como o cenário de fundo.
Se a história é essencial, também o é o facto de estarmos numa Tel Aviv onde a normalidade impera pela força que os seus habitantes aplicam em ignorar a realidade de morte eminente e de guerra intermitente.
E, apesar disso, a história de um homem desaparecido inicia-se com a hipótese que terá morrido num atentado. Em vez de se julgar que partiu, que não quer mais falar com quem o procura.
O primeiro pensamento quando alguma perturbação à realidade moderada surge é de que algo terrível deve ter acontecido. Algo daquilo que a consciência imediata deixa dissimular-se como quotidiano, porque inevitável mesmo que imprevisível.
Rutu Modan transforma esse silêncio interno para com o medo permanente numa história de conexão entre pessoas que foram deixadas sozinhas e que, depois disso, se foram deixando sozinhas.
A busca por um homem, pai para Koby e amante para Numi, mas figura sempre ausente - da obra, da vida de ambos e de outras vidas que eles acabam por descobrir - é um puzzle em que se gera a descoberta entre as pessoas que se juntaram na procura.
Ter um objectivo une estas pessoas, embora o mesmo objectivo não signifique a mesma visão.
Na verdade, o objectivo que os une começa por separá-los. Ele não conhece nada do homem que é o seu pai e não lhe tem nenhum apreço. Ela, pelo contrário, admira-o e até o explica a Koby.
Tal como o homem que eles nunca encontram, também a sua história particular nunca se desvenda por completo, ficando como ideia geral, uma busca para o próprio leitor.
E, ainda como este homem, também as explosões que o podem ter vitimado não surgem. Mas até bastante perto do final ficamos com elas no subconsciente sem necessidade de as nomear uma e outra vez. Como os personagens cuja história estamos a ler.


















Exit Wounds (Rutu Modan)
Drawn & Quarterly
1ª edição - Outubro de 2008
184 páginas

quarta-feira, 30 de março de 2011

A voz das mulheres

Aurora Boreal é um thriller todo feminino. Por ter sido escrito por uma mulher, por ser protagonizado por outras três - a suspeita, a polícia e a investigadora/advogada - e por ser demonstrativo da capacidade feminina num ambiente negro e masculinizado.
Um ambiente que não é apenas o do policial, mas também o da religião organizada e até mesmo a das firmas de advocacia.
Instituições tipicamente patriarcais - como quase todas as instituições se pensarmos bem no assunto - das quais os homens ficam aqui secundarizados.
Não só secundarizados mas ultrapassados na coragem e na determinação por mulheres que aparecem grávidas, dominadas pelo pai ou com o cuidado de crianças a seu cargo. Três estados em que a mulher deveria ser menos forte ou, no mínimo, menos ousada, mas que aqui é quase uma motivação extra.
Motivação para encontrar mais força, para ser mais astuta e para se revelar mais mulher.
Apesar disto, a defesa do estatuto da mulher não é um processo puro, muito menos puritano.
Chegando ao final do livro a verdade entra em acção e revela um outro aspecto do carácter feminino, dominante por ser falsamente submissa.
Não é um choque contra o que veio antes, é o aviso para não se ser ingénuo na leitura.
E, logo depois, mesmo mesmo a fechar, a ironia dá um toque verdadeiramente negro ao que foi escrito. É o alívio porque de entre as mulheres finalmente surge um homem que não terá de sofrer e vingar como elas.
Tudo isto num policial muito interessante, o essencial do livro está claro.


















Aurora Boreal (Åsa Larsson)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Setembro de 2010
328 páginas

sábado, 26 de março de 2011

Panfleto literário

As manifestações recentes não enganam, ainda vivemos num tempo em que as pessoas continuam a precisar de fazer ouvir o seu descontentamento com as condições em que trabalham.
Assim se compreende que a redescoberta deste escritor japonês tenha tido tanto sucesso, com a sua forma esclarecedora que dar a conhecer o pior que a sociedade capitalista guarda para os seus trabalhores mais indefesos e dar uma hipótese de esperança para que eles próprios levem a sua vida para um patamar melhor.
Aqui se faz política abertamente, propõe-se um modelo de actuação, não se teoriza sem base palpável.
As condições são muito distintas quando passou quase um século. A escravatura com a morte a pairar em redor deu lugar a condições menos crúeis. Mas o sentimento de injustiça tem ainda traços semelhantes.
O tempo que passou e as mudanças entre as condições da altura e do presente levam a que a discussão que o livro levanta não seja de nível social, mas em definitivo de nível literário.
Poderá um escritor com uma nota de intenções panfletárias criar uma obra perene que não se limite a exacerbar um sentimento violento que se reacende a cada nova crise?
Neste caso direi que sim, sobretudo porque Takiji Kobayashi escreve com um realismo que conjuga a economia de meios com uma beleza nobre.
A dureza das condições de vida dos pescadores japoneses no início do século XX sentem-se sem filtro no texto mas aqueles que as vivem são dignificados.
A composição da narrativa é forte, atravessa as situações mais importantes para compreender a vida a bordo mas não se delonga em pormenores excessivos.
É literatura com um elevado grau de eficácia e poder de residência na consciência do leitor.
Outro ponto a sublinhar, pelo qual o livro se distingue, é o facto de não ser uma história de sucesso.
A revolta a bordo não termina em sucesso, termina com a promessa de repetição e é num apêndice breve de tópicos que se fica a saber o que aconteceu na segunda tentativa.
A história vai até onde é, literariamente, relevante e plausível. O panfleto fica, afinal, depois disso, numa página que um leitor pode ignorar se quiser.


















O Navio dos Homens (Takiji Kobayashi)
Clube do Autor
1ª edição - Outubro de 2010
164 páginas

terça-feira, 22 de março de 2011

O mundo do beco

Do Beco Midaqq mal se vê outra rua do Cairo, mal se vêem horizontes que não os das paredes que encerram os seus habitantes no domínio fisica e mentalmente reduzido da sua viela.
Mas no Beco Midaqq vê-se o mundo todo, o mundo na sua pequenez que cabe toda num bairro assim tão pequeno.
Um mundo carregado de inveja, ódio, vingança, ilusão, desesperança. Da mesquinhez humana em todas as suas formas, da irredutível existência que atenta contra si mesma.
Cabe tudo isto num beco só? Claro, mas as suas consequências são como as de uma explosão num espaço confinado, mais violentas e imprevisíveis. E irremediáveis.
Ninguém foge da dureza da vida no beco, ninguém lhe fica indiferente, seja por mais ou menos tempo.
E, apesar de tudo isto, há ainda lugar para alguma dose de redenção. Um milagre de entendimento humano: a conjunção de arrependimento e perdão.
Não limpa o beco, mas equilibra-o um pouco até que chegue o desfecho que é do beco como do mundo, o esquecimento.
Por mais eventos tenebrosos que ocorram, só duram o tempo do primeiro choque e da primeira conversa. Depois passam, esquecidos pelas pessoas que têm de continuar a viver com quem os originou mas não tem mais para onde fugir.
Todos os dramas terminam onde a memória se torna selectiva, onde se esvazia o coração para se continuar a viver no mesmo local como se ele nada lhes fizesse à própria vida.
Trata-se de um mundo, mas um mundo que só podia existir naquela cidade. Tem a personalidade realista e única de um beco conquanto contenha o essencial do mundo.
Mahfouz é exímio na sua arte, na sua descrição de personagens tão palpáveis mas igualmente únicas. Na criação de situações que se encaminham para um desfecho que podemos imaginar de muitas formas mas que ainda nos escaparão por não termos os dados sobre as particularidades do espaço onde estão a decorrer.
Ele conta a realidade com surpresas e possibilidades em aberto. Não há exageros novelescos ou pré-determinação, há grandiosidade de imaginação em prol de um olhar clínico para a unicidade do que o rodeia e que os seus leitores seriam incapazes de descobrir por si só.
Ler Naguib Mahfouz, sobretudo em dose dupla, é como uma purga mental de tudo o resto. Uma lição de "sobre" e "como" olhar, pensar e escrever.


















O Beco dos Milagres (Naguib Mahfouz)
Contraponto
1ª edição - Maio de 2009
336 páginas

quinta-feira, 17 de março de 2011

Cairo Novo, Mundo Velho

No novo Cairo há promessas de futuro com a mesma marca do passado.
Há jovens que lutam arduamente contra a fome para se conseguirem formar apenas para descobrir que, sem conhecimentos no Estado, mais valia serem agricultores.
Há mulheres que chegam à Universidade apenas para se verem comercializadas à conta da sua beleza pelos próprios pais.
Há homens que se fazem indiferentes e altivos apenas para serem usados como engodos.
No novo Cairo há todos os males do velho Cairo apenas com uma nova roupagem. (E ninguém se iluda, são os mesmos males que ainda hoje vemos acontecer um pouco por toda a parte.)
Variam os aspectos mais prementes, os aspectos temporais, mas a situação é sempre a mesma.
Por poder, por dinheiro, por sexo, tudo se vende e tudo se compra. Honra, honestidade, memória, orgulho. Estes são só alguns dos primeiros aspectos a ser esquecidos.
Em troca de um cargo que pague bem aceita-se ser um marido de fachada que encubra a amante de um homem importante.
Um cargo tem aparências e exige dinheiro para as manter. Mais dinheiro do que o que ele recebe. Então deseja novo cargo, que pague mais. Esse já cobre as aparências que (mal) mantinha mas tem novas...
Assim, o rapaz que disse que não aceitaria voltar a passar fome, acaba por viver necessidades porque não sabe traçar o limite para que o que a sua vida pode ter.
Uma vida assente nas fundações de um castelo de cartas. Porque depende de conhecimentos e trocas com pessoas que só são importantes e poderosas por momentos, enquanto servem os interesses de outros ainda mais acima.
O novo Cairo é um Cairo de casamentos combinados, de interesses servidos sem vergonha e de escândalos consentidos.
Cairo de velhos mas eternos vícios. Cairo sem vergonha, onde os métodos se renovam para servir os mesmos velhos hábitos e os mesmos velhos desejos de poder e riqueza a qualquer custo.


















O Cairo Novo (Naguib Mahfouz)
Civilização Editora
1ª edição - Setembro de 2010
232 páginas

sexta-feira, 11 de março de 2011

Leitura do filme

Será, provavelmente, mais interessante ler este livro quando se viu o filme do mesmo nome.
Afinal trata-se de ler aqui como se apresentou a ideia, como evoluiu a produção e que experiências viveram os autores do filme no interior do Complexo do Alemão.
Meio caminho entre o making of (da pré-produção) e o diário, o livro introduz-nos à decisão do que vem depois, ou seja, o filme.
No momento em que o livro acaba estamos na fase em que eles começam a decidir o que filmar.
É um olhar invertido sobre quem estará por detrás da câmara.
Olhar enriquecido porque acrescenta muita informação sobre o que é a vida no interior de um local como aquele.
A vida prática, reactiva a um elemento estranho que se vai integrando.
A leitura é rápida mas agradável. Como reportagem, o livro une bem o jornalismo - a integração da informação - e a ficção - a escrita ágil e cativante.
O detalhe chega à reprodução de diálogos com o sabor do português do Brasil.


















Complexo - Universo Paralelo (Ricardo Martins Pereira)
Editorial Presença
1ª edição - Fevereiro de 2011
160 páginas

terça-feira, 8 de março de 2011

Música imaginada

O Local resume num período breve, em cinco canções, a tribulação da juventude.
Se a música é o meio mais comum e (talvez) mais enérgico para se expressarem, é também um investimento que marca o período da juventude, no presente como sonho de futuro e no futuro como memória do que ficou para trás.
Ou, se perdura, muitas vezes funciona como retorno a um período admirável que não se volta a viver de nenhuma outra forma.
A música é, portanto, em muitos casos, um sonho temporário. Daí que o processo de ensaio no local que lhes é oferecido por um dos pais (enquanto não houver incidentes) os obrigue a evoluir da inconsciência - dependente de outros e plena de atitudes irreflectidas - à responsabilização - que obriga a uma decisão autónoma, seja em que direcção for.
A música, o EP que procuram gravar é a tentativa de construção de um pequeno conjunto coerente e expressivo da sua realidade. Mas acaba de ser o próprio percurso de evolução dos seus criadores, o percurso de vida na transição entre a juventude e a idade adulta.
Gipi compreende que a música é uma forma de expressão repleta dos detalhes pessoais e quotidianos. Uma catarse da rotina e das pressões.
Assim, Gipi não necessita de trabalhar a música, antes conta-la caso a caso, estabelecendo a realidade destes quatro jovens músicos que, pela pose, fazem rock com a maior entrega possível.
Rock que fala das suas preocupações, do entendimento e crítica mútua. Falam deles próprios porque talvez não tenham o à vontade para o fazerem de outra forma - afinal, são todos rapazes.
As aguarelas de Gipi dão um tom coerente a cada pedaço de história que se passa em torno do tal local de ensaio para a banda mas que vão variando de protagonistas e de problema imediato.
Ficamos a saber das vidas destes miúdos e ficamos capazes de imaginar como é a sua música, aquilo que nela se ouve ser cantado e como se ouve.
No final de cada pequeno capítulo narrativo - cada uma das canções - vemos a música a acontecer no ensaio como eco do que se passou até esse momento.


















O Local (Gipi)
100 Sentidos/Vitamina BD Edições
1ª edição - Setembro de 2007
120 páginas

domingo, 6 de março de 2011

Boa companhia

O que primeiro me fez ler este livro foi o facto de Jonathan Ames ser o autor do romance que deu origem à série Bored to Death. Série existencialista tragicómica que reinterpreta (e venera) Raymond Chandler.
Neste livro ele faz o mesmo com Scott Fitzgerald e os seus pares, trazendo para a ribalta o jovem Louis com desejos de ser um jovem cavalheiro da década de 1920.
Um jovem que, apesar disso, está a viver a década de 1990 em Nova Iorque e que, portanto, enfrenta o que essa década tem para mostrar e que ele ainda não chegou a descobrir, a sexualidade.
Circulando entre o mundo da transexualidade, ele procura desvendar a sua preferência e o seu grau de relação com as mulheres, se as deseja ou se deseja ser uma delas.
Fá-lo em segredo para não irritar o homem a quem aluga um quarto, figura caricata que está perto de ser um gigolô de luxo para a terceira idade mas que alardeia uma moralidade rígida.
Louis vive sempre para modelos que, se não são errados, sao pelo menos desorientadores: os personagens livrescos, o mundo travesti e o seu apreço do seu senhorio.
De tudo isto ele busca a aceitação e a pertença. Três lugares inconciliáveis para tal demanda.
Daí que Louis seja tão rico e admirável, uma personagem sensível que não desiste de procurar e ceder à tentação mesmo quando o falhanço o trata dolorosamente.
Mas também o seu senhorio, Henry, vive na busca da conquista. De refeições gratuitas, que lhe tragam mais contactos que possa usar e que o possam usar, que lhe tragam uma existência ocupada.
A solidão é o que equipara ambos embora leve algum tempo até os aproximar. Ambos solitários querem amor embora um desconheça como o identificar e o outro desconheça como o exprimir.
São ambos seres defeituosos. E como todos os seres defeituosos, profundamente defeituosos, são admiráveis na sua sobrevivência neste mundo.
Vivem com emoções e traumas calados, mas nem por isso recusam encontrar a felicidade a cada pequeno ponto.
Louis permanece indeciso como pessoa até ao final e Henry permanece enigmático. Estão bem nesse momento um para o outro, com espaço para manobrarem na direcção comum. E, também, com um pouco de esperança e outro tanto de moderação.
Depois de tudo o que passam nos seus mundos individuais, vamos é descobrir o que aprenderam no seu mundo comum: que têm necessidade de ver o espaço emocional ocupado.
Será algo como um buddy book mas que dá uma importante volta para lá chegar.
Jonathan Ames é um entertainer, um escritor de talento que não se amedronta nem com o riso nem com comoção.
Um entertainer que por baixo de ambas as emoções tem uma reflexão profunda pela qual responsabiliza os seus leitores.
Escreve com inteligência e beleza, tão divergente e adorável como as suas personagens.


















O Acompanhante (Jonathan Ames)
Contraponto
1ª edição - Setembro de 2010
424 páginas