quinta-feira, 30 de maio de 2013

Homem, mito, obra


O subtítulo apendido a esta edição - no original La Vida del Che - explicita bem que Héctor Oesterheld não escreveu uma biografia distanciada mas uma belíssima tradução da mistura de comprometimento individual com o grito político colectivo que a vida de Che inspirou e a sua morte libertou e cristalizou até aos dias de hoje.
Trata-se de um retrato feito com a urgência da militância pessoal a par da política, uma homenagem fúnebre e um manifesto ideológico.
Um retrato que explica na perfeição que linha de carácter contínua foi essa que fez de Che tão eficaz como diplomata e como guerrilheiro, mas inconformado com o tipo de sucesso alcançado com qualquer um dos papéis: um idealismo sempre activo que se socorria da inteligência pragmática, até que esse pragmatismo deixasse de conseguir justificar as amarras colocadas ao sonho de mudar o mundo.
Através dos pensamentos de outros, aliados ou adversários, Oesterheld elogias as qualidades de Che. Pela sua própria boca - e por alguns actos - humaniza-o pelos seus erros e problemas.
Toda a escrita acaba por acentuar a ligação pessoal que se cria com Che a par da admiração distanciada do mito.
O desenho de Alberto Breccia acompanha essa ideia de junção do mito ao humano. Não sendo tão bom quanto a obra-prima que é o seu trabalho em Mort Cinder, vale-se do detalhe do traço e da complexa composição individualizada das vinhetas para vincar a humanidade do homem no interior de representações de guerra que recordam, inevitavelmente, os livros de aventuras e que fazem de Che um herói.
Nota-se que Alberto Breccia tem o mesmo grau de admiração que Oesterheld sempre que desenha o próprio Che. Alguns dos retratos dele são tão icónicos como a foto de Alberto Koda.
O trabalho gráfico de Enrique Breccia tem um espírito mais independente perante o texto e, creio que em grande parte por isso, revela-se mais interessante do que o do pai.
Baseando o seu trabalho em silhuetas, tem a capacidade (logo num dos seus primeiros trabalhos) de usar a tinta negra para extrair do branco da folha a mesma expressividade dos seus traços.
As superfícies que ficam por preencher são tão importantes para definir a imagem final - e a intensidade do que transmite - como o desenho.
Talvez a maneira mais expressiva de o dizer seja invertendo a ideia dos escultores que retiram apenas o indispensável para que se veja a figura que já está embutida no bloco de pedra. Enrique Breccia trataria d, por isso, de acrescentar apenas a tinta suficiente para definir os contornos da imagem já inscrita na folha.
Os seus desenhos, dedicados aos dias finais de Che, assumem contornos de comentário político - como na representação grotesca (de inumana) dos assassinos de Che - mas também estabelece a ideia de vaguidade (na ausência de cenários em várias vinhetas) que faz do relato da morte de Che na Bolívia a representação da morte do mito em qualquer - e em todos - lugar do mundo.
Não importa tentar analisar se o trabalho do filho é melhor do que o do pai, importa fruir dos seus dois enormes talentos e como se combinam com o de Héctor Oesterheld.
A qualidade da edição Conrad, de capa dura e formato já próximo do dos álbuns franco-belgas e incluindo um prólogo de Ernesto Sabato, merece apenas um reparo no uso da amplicação de pormenores de vinhetas para preencher a totalidade de algumas páginas, em vez de as deixar em branco.
Esta técnica serve para acerto o alinhamento do início dos capítulos com as páginas ímpares do livro mas esforça a qualidade do material em que se baseou a impressão ao máximo e, por vezes, esse limite da ampliação transforma-se numa representação abstracta porque coincide com os momentos desenhados por Enrique Breccia.
No resto, a edição está à altura da lenda de Che e da qualidade da obra.


Che: Os últimos dias de um herói (Héctor Oesterheld, Alberto Breccia, Enrique Breccia)
Conrad Editora
Sem indicação da edição - 2008
96 páginas

sábado, 25 de maio de 2013

A versão moderna de um amor antigo

Este livro é a concretização literária da intuição que acompanhou desde as primeiras interpretações a história da ira com que Aquiles tratou Heitor depois da morte de Pátroclo.
Uma tradução para os termos mais óbvios do amor moderno, em vez da mera assumpção do significado mais lato desse termo para as questões de honra e camaradagem que conduziam os heróis no poema épico.
A autora, que pelo que diz na badana se formou precisamente nos temas e nos textos que usa comom matéria para este seu romance, parece ter decidido converter a masculinidade narrativa em algo mais propício a um público feminino e, tendencialmente, jovem.
A forma que encontrou para divulgar a literatura que ela própria achará indispensável ao maior número de leitores contemporâneos que não terão vontade ou capacidade para pegar no texto "original".
Maior número que passará pelas leitoras jovens ou a prolongarem esse carácter nas suas leituras, pela amostra do tipo de ficção importada em abundância para os escaparates locais.
Esta ideia até poderá ser compreendida com alguma abertura por cá, visto que em Portugal sempre se teve o benefício de ter um contacto precoce com A Ilíada (e com A Odisseia, já agora), pelo menos através da presença das adaptações feitas por João de Barros no programa escolar de leitura (no meu tempo, pelo menos, assim era).
Aceitando esta ideia para as intenções da autora, analise-se a concretização dentro dos seus respectivos limites.
A escolha do par romântico em causa só é arriscada porque a relação de Aquiles e Pátroclo não é usada como cerne da obra, mas como motivo que precipita o acto maior e mais indigno de Aquiles.
Tal escolha beneficia da falta de elementos biográficos detalhados sobre Pátroclo, que permitem à autora usá-lo como protagonista e tomar as liberdades necessárias.
Já a homossexualidade abertamente descrita, mesmo que com muitos cuidados de linguagem da autora, não provocará choque algum pois a carga erótica destes heróis sempre foi sendo explorada pelas variações do tema mais recentes - com as cinematográficas liderando a lista.
Trata a autora de contar a história desta dupla desde o momento em que um rapaz toma o outro sob a sua protecção até que um homem perde aquele que o acompanhou toda a vida.
Esta necessidade de construir o romance como um evoluir de etapas, da adolescência à maturidade (do amor como dos personagens), causará um problema que recai, sobretudo, sobre a expectativa. Os tempos "mortos" que são dedicados ao desenvolvimento da relação atrasam os momentos que são sempre os que se pretendem ler, que estão no poema e em todas as obras que virão depois: no fundo, a aventura.
Nas linhas gerais com que o romance entre os dois foi estabelecido, não creio que fosse necessário tanto tempo - e, em parte, tanta modéstia - para levar à situação que se desenvolverá nas acções decisivas de Aquiles na guerra de Tróia.
Até porque no início da relação, a autora evita questionar as questões mais pertinentes - e, eventualmente, fracturantes. Com a empatia imediata e injustificada que Aquiles sente por Pátroclo - um amor à primeira vista, portanto - é desnecessário à autora ponderar se a orientação sexual de Aquiles se ficará a dever a uma formatação de nascença ou ao convívio exclusivo com rapazes da sua idade orientados para a excelência física em combate.
Evitando esta questão, a autora poderia ter evitado, igualmente, a exposição da vida sexual deles. Por este aspecto a orientação do livro para um determinado género poderá ser colocada em causa.
A qualidade da descrição do sexo entre os dois pode ser alvo de censura severa devido ao uso enjoativo de metáforas demasiado delicadas. O comportamento de um para com o outro, terem vivido em isolamento e, acima de tudo, continuarem a ser homens - apesar dos louvores à beleza que se eleva acima de considerações de género - fazia esperar que a sua intimidade começasse por envolver alguma brusquidão para depois amadurecer como tudo o resto nas suas vidas.
Numa perspectiva mais benéfica ao romance, a relação íntima dos dois proporciona alguns dos melhores momentos do livro, num âmbito de estratégia política nos bastidores.
A insistência de Aquiles para que Pátroclo o acompanhe sempre ajuda a caracterizá-lo desde muito cedo como impetuoso e pouco cínico. E permite, ainda, ter uma visão interna da abordagem de uns intervenientes para com os outros, incluindo insinuações (que julgam ser) menos abonatórias para com Aquiles, num afastamento das representações que o aproximavam da perfeição.
Tão cerrado sobre duas personagens, o livro acaba por destacar o valor discreto adquirido por Pátroclo para os outros combatentes na sua função de médico. Isso ajuda a retirá-lo da sombra de Aquiles que recusa que ele se aproxime da frente de combate - o que o tornaria numa figura inútil durante quase um terço do livro.
Apesar do espaço ocupado pelas duas personagens, a fidelidade da autora aos mitos que estudou levam, por exemplo, a que a mãe de Aquiles, mesmo com as suas aparições irregulares, seja uma das melhores, senão mesmo a melhor, personagem do livro.
A adaptação do tema a novos públicos não trata de purgar a história das suas conotações mitológicas, antes adapta-as a um entendimento humano moderno sem tentar humanizar a história a tal ponto que esta se tornasse numa mera aventura. Os deuses são os intervenientes directos ou indirectos com as suas falhas humanas que ajudam a assentuar o processo pelo qual o próprio Aquiles vai deixando que a sua aura - aqui imposta pela mãe, lá está - se abra para o seu lado humano.
Essa fidelidade ajuda a transformar a amálgama de intenções numa abordagem coerente e agradável, não desvirtuando o que seriam os propósitos narrativos de Homero nesse aspecto.
Tal como o faz, excepto nas cenas de sexo, o cuidado linguístico da autora - que parece ter beneficiado de uma cuidada tradução - consegue uma ligação das formas mais clássicas aos desejos actuais de agilidade do texto.
Um grande erro estrutural vem, no entanto, criar um problema grave para a avaliação a ser feita ao trabalho de Madeline Miller. Erro que facilmente se intui desde o início mas só se confirma quase no final do livro: a utilização do próprio Pátroclo como narrador.
Sabendo que Pátroclo irá de morrer antes que o livro acabe, um autor mais arguto teria escrito na perspectiva de uma terceira pessoa.
Um autor mais corajoso teria recomeçado o trabalho ao abeirar-se do bloco final - e um dos mais importantes -do livro.
Miller, perante o longo trabalho que já tinha tido e alguns bons efeitos que tinha alcançado - dos descritos acima, o maior sendo transformar num empático herói o personagem discreto que Pátroclo é quase sempre -, escolheu retorcer a lógica da credibilidade de forma a continuar a narrar a história através do seu protagonista.
Isto faz com que, no momento em que a reinvenção da autora se fortalece com as imagens maiores de heroicidade do mito tal como o conhecemos, a voz do livro torna-se um incómodo.
Só a agilidade do texto, que traz o leitor embalado, disfarça este defeito para que se conclua a leitura.


O Canto de Aquiles (Madeline Miller)
Bertrand Editora
1ª edição - Fevereiro de 2013
344 páginas

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Se um escritor austríaco conseguiu ver...

Nilo, como Lágrimas na Chuva, acende a consciência de que já há muito tempo deve ter vindo a haver uma reflexão dos autores europeus sobre a evolução social no seu continente a que não se deu atenção suficiente nem atempada.
Em ambos os casos recorrem a elementos de que se poderão chamar ficção científica, embora Martin Amanhauser se tenha limitado a prever (ainda em 2001) um ano de 2010 em que a tecnologia deu pequenos mas significativos passos para lá do ponto (real) em que está agora.
Tirando esse pequeno falhanço sobre o ponto em que estão os telemóveis, a sua ficção de então parece a realidade de agora.
Uma doença espalha-se, acompanhada de paranói, pela Europa sem que as suas causas sejam bem conhecidas.
A crise económica transforma a Europa numa extensão do deserto, em que a aridez toma conta tanto dos elementos físicos como dos sociais.
Partidos extremistas (sobretudo de direita), antes minoritários, preparam-se para ter poder à medida que a União Europeia abafa a independência dos países.
Escândalos - sobretudo de índole sexual e, se possível, homossexual - são procurados e fabricados consoante as necessidades de controlar o poder ou distrair o povo.
Fechamos o livro e temos de perguntar como terá sido possível que um escritor austríaco tenha conseguido prever a realidade de 2010 com elevado acerto, nove anos antes, e outros, provavelmente com acesso a mais ou melhor informação, continuem hoje sem perceber a realidade.
Depois há logo outra pergunta que se segue a essa: Porque é que ninguém leu este livro a tempo?
(Deixo esta nota para explicar que o encontrei, pouco mais caro do que sendo dado, numa daquelas feiras de livros em saldo que se montam em qualquer lugar onde desaguem transportes públicos.)
À segunda pergunta posso arriscar uma resposta mais informada. A culpa será de um estilo austríaco cerebral de um modo (quase) severo - lembremos Elfriede Jelinek - para que seja facilmente partilhado pelos países "do Sul da Europa".
Embora o livro não se torne hermético para o leitor, até porque tem arrojos - o parágrafo constitúído pela reprodução de postais, por exemplo - que se desejaria terem ressurgido ao longo de todo o livro, tem uma rigidez de concepção que não se rende aos mecanismos que perdoam ao leitor a sua parte do trabalho. 
A abordagem de Amanshauser à história é de tal maneira que todos os elementos estão ao mesmo nível, em vez de tentar explorar aqueles elementos que, de certeza, teriam cativado as pessoas.
Basta pensar em Millennium para perceber que Amanshauser tinha podido alcançado - e antecipado - igual sucesso.
A jovem protagonista, uma fotógrafa radicalmente careca que trocou os elogios à sua arte pelo dinheiro das fotografias para tablóides, que persegue o grande escândalo político do país enquanto o violento ex-namorado da irmã a persegue a ela, poderia ter tido o mesmo carisma e a mesma tendência para protagonizar thrillers que teve Lisbeth Salander.
O objectivo não era esse, quem lê este livro não se arrisca a distrair com esses detalhes, mas acaba a pensar sobre o essencial, o estado da União Europeia.
Mesmo com enorme atraso, a tal ponto que o futuro do livro já é o nosso passado, ler Nilo é ter de abrir a mente aos problemas que estão a nascer dos problemas que ficaram por resolver.


Nilo (Martin Amanshauser)
Teorema
Sem indicação da edição - Janeiro de 2003
204 páginas

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Para morrer de tanto rir

O mais divertido neste livro foi encontrá-lo destacado na secção de Livros Práticos de uma livraria de Lisboa.
Tenha sido tontice ou ironia do empregado responsável - e a companhia de Pequenos Prazeres 2M*rdas Que o Meu Pai Diz talvez possam ajuda à inclinação para uma das hipóteses - a piada é excelente e gostaria de saber se alguém pouco atento se deixou levar pelo rótulo que tem de ser colocado nos livros para que se vendam melhor.
O livro tem, por si próprio, humor em quantidade e qualidade para que equiparar ao humor que eu vi naquela situação.
Há várias formas de humor que os autores usam intercaladamente para manter a surpresa pela qual provocam o riso.
Aproveitamento de expressões relacionadas com o "Céu" para trocadilhos vários. Desenvolvimento de provérbios para os levar ao caricato "realista". Ironização com a mais popular religião ocidental. Deriva pelos detalhes de outras mitologias cosmogónicas para picardias pontuais.
Já a abordagem a cada uma destas 100 coisas de que se lembraram é uma constante de coordenação entre o escritor e o ilustrador.
Enquanto Viton Araújo tenta dar ao texto a percepção de ser tão sério como as outras listas de recomendações que andam pelo mercado (dentro de um quadro sempre jocoso), Gustavo Nardini elabora mais uma contraditória piada com as situações que o texto não chega a descrever.
O que torna tudo ainda mais eficaz é a maneira como os autores levaram o agregado de piadas a transformar-se num livro que funciona como um bloco integral.
Tudo com os pequenos detalhes: as referências que vão surgindo nas sugestões mais avançadas para as que ficaram para trás; a inclusão de um cupões destacáveis para aulas grátis; as citações de almas famosas na contracapa; a inclusão de um agradecimento a Mauro Camargo, a alma que ditou o livro a Viton Araújo.
O humor começa com a concepção do objecto e vai até ao ponto final da sua execução. De tal maneira que diria que até poderia ter sido os autores a lançar uma estratégia de marketing que fosse a piada final e maior de toda esta edição: mandarem colocar o seu pequeno livro negro logo ao lado do 1001 Filmes para ver antes de morrer e as suas variações.
Não chegaram ainda à inventividade da recolha de momentos humorísticos sobre a morte do Petit dictionnaire a mourir de rire - outro livro negro como o seu melhor humor - que foi feito logo com a forma de um caixão. Mas se continuarem a fazer livros destes, lá chegarão.
Entretanto, não se espera que alguém venha, de facto, a morrer de tanto rir ao folhear este livro, mas se acontecesse já levava consigo o manual para o que vem depois.
Valha-nos o humor no tempo em que tudo o resto está pela hora da morte!


100 Coisas para Fazer Depois de Morrer (Viton Araujo e Gustavo Nardini)
ArtePlural
1ª edição - Outubro de 2012
208 páginas

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Equilíbrio encontrado

A segunda aventura no universo de C.A.O.S. começa com um prefácio de David Soares que só faz mal ao livro, ainda que a aparente erudição do texto prometa precisamente o contrário.
A tradição em que David Soares envolve a personagem Franco, que é o elo que se mantem entre os dois livros, parece bastante lógica, embora não tenha ficado demonstrada no primeiro livro.
Só que, a partir do momento em que começa a citar nomes de personagens, o alcance deles é tão lato que se torna impossível encontrar uma característica que seja comum a todos. Nem mesmo o facto de serem detectives, dado que Torpedo também lá surge...
Se Franco é tanto Phillip Marlowe como Marion Cobretti ou se é tanto John Hartigan como Martin Riggs, então de facto o "Velho" é tudo o que se queira lá ver ou, como parece mais certo, uma amálgama sem critério.
O prejuízo não vem apenas de o prefácio desconstruir um personagem em vez de o tornar mais vívido, mas de vir a criar expectativas para que ele seja o protagonista da história - mesmo se lhe refere como cascadeur (porque não duplo?) - quando, durante boa parte do tempo, ele está fora de cena.
Consciente do texto que leu, o leitor estranha que ao fim de algumas páginas José Franco tenha menos preponderância que Mário Lobo (a capa, mais ajuizadamente, cede lugar a ambos). E que seja para este último que está reservado o papel de Sam Spade da história, enquanto que o outro faz uma versão envelhecida de John McClane.
Sente-se que o prefácio tentou mitificar um personagem - e, com ele, os dois livros publicados e mais algum que venha a surgir - enquanto fazia o elogio prévio dos autores. Alguma vaidade antes de tempo.
Esta é uma crítica à opção editorial, pelo que depois de feita ficará de fora das considerações seguintes.

Comecemos pelo argumento, novamente do criador Fernando Dordio, que mostra uma evolução, para a qual não será alheio o facto de ter aqui uma história escrita em continuidade e não em episódios depois compilados.
Como também a restrição temporal a um único período lhe permite explanar a trama por dois momentos da acção decorrendo em paralelo, assim criando a tensão que antes não soubera produzir.
Continua a recorrer a uma construção da trama - um vilão de engodo e um outro do qual nada se chega a conhecer antes de ser abertamente revelado - que está longe de ser a mais encorajadora para o leitor e a temática de terrorismo informático não traz nenhuma novidade.
Mas usa esses elementos de maneira a separar o trabalho policial da intervenção conduzida à "lei da bala", o que trata de revelar o melhor do argumentista.
A maneira como Dordio retrata o ambiente na esquadra de polícia é bem melhor de como conduz as cenas de acção, sugerindo que o autor deveria encaminhar-se para um policial mais "clássico" do que manter-se com o thriller - de certa maneira, o que David Soares parecia sugerir, embora destacando a personagem errada.
Os dois cenários permitem, igualmente, criar uma situação mais clara para expôr a situação em jogo à medida que esta evolui.
Tal como permite um trabalho de composição de personagens para o qual não havia tempo na acção sem pausas do livro anterior.
Uma pena que Viriato não possa regressar num livro posterior, mas Lobo tem todo o potencial para ganhar a sua própria série - talvez numa lógica de herdeiro à força do papel de Franco.
O desenho de Osvaldo Medina é de uma qualidade acima da média - veja-se como define o personagem Viriato e aproveita as suas características para traçar excelentes vinhetas.
Não lhe falta dinâmica para as cenas mais enérgicas, também porque o seu traço rigoroso não deixa de evocar a sensação de liberdade que os esboços carregam consigo.
Perante o traço de Filipe Teixeira no último período da história anterior, creio que o de Medina não se adapta melhor aos momentos mais intensos do género de história aqui contada. A causa será a planificação menos ousada das pranchas dedicadas às cenas de acção, embora como também a preponderância das cenas de desenvolvimento seja maior, o livro ganhe em equilíbrio também por causa do desenho.
A sóbria escolha de cores volta a ser um dos elementos relevantes, embora me pareça que as pequenas variações dentro de uma mesma cena  não constituam a melhor opção.
A cor está aqui ao serviço do desenho, enquanto no livro anterior se notasse que a cor tinha de se sobrepôr ao desenho, em alguns momentos, em socorro do resultado final.
O resultado final é sugere todo um equilíbrio de enorme eficácia, logo à segunda incursão por este universo de ficção policial.
Se esta equipa poder regressar para outra história, sobretudo com Dordio a evoluir tão rapidamente, estou em crer que seria um volume (final?) muito interessante para C.A.O.S..
Mas com Franco e Lobo (se lhes somarmos o vilão Nero, devemos poder concluir estar perante referências mais ou menos óbvias aos Western Spaghetti) lado a lado.


Agentes do C.A.O.S.: Nova Ordem (Fernando Dordio e Filipe Teixeira)
Kingpin Books
Sem indicação da edição - Maio de 2011
94 páginas

Melhor ilustrado do que escrito


Agentes do C.A.O.S.: A conspiração Ivanov evidencia-se por ser um thriller revisionista dos anos que se seguiram à revolução de 1974.
Deveria, por isso, suscitar alguma atenção fora dos círculos bedéfilos, já que este período tem surgido a pouco e pouco na literatura portuguesa e, até mesmo, com este género de abordagem. Vermelho da Cor do Sangue, por exemplo, recebeu bastante atenção na altura da sua publicação e creio que um thriller com imagens só pode beneficiar a maneira como a acção funciona perante o leitor.
O lamento pelo diminuto público de Banda Desenhada, mesmo dentro do não tão extenso público leitor, não me leva, no entanto, a poder dizer que seria este o livro que recomendaria para que começassem a ler esta outra linguagem narrativa.
Sucintamente, a história faz-se, quase em exclusivo, de três episódios de acção, distribuídos por dois períodos temporais distintos.
Fernando Dordio, o argumentista do livro, utilizou algumas daquelas que são hoje das mais repetidas mas das menos lógicas estratégias para o género.
Logo a abrir, uma sequência de sonho - adicionada à história quando esta foi compilada num único livro - cria um ambiente que não se voltará a encontrar e que se limita a tentar criar um suspense de longo prazo que os episódios subsequentes não conseguem gerar.
No final, a resolução da trama faz-se com o ressurgimento de um personagem que, até aí, quase não existiu para além de um rosto desenhado por uma vez com o nome mencionado a acompanhar (que têm, inevitavelmente, de ser procurados no início do livro para se conseguir continuar a acompanhar o desenvolvimento). Esta aparição vinda de "parte alguma" tem a intenção de criar surpresa sem que a história tenha sido trabalhada para tal.
O início e o final do livro usam truques para fazerem a vez das ferramentas narrativas mas o miolo do livro não tem um tratamento melhor.
Precisamente na página 43, que marca o meio do livro, o autor recorre a um texto expositivo para ligar as pontas de 1980 e do Presente. Ao invés de tentar que a informação surgisse faseada ao longo e exposta através da acção, o autor quebra por completo o ritmo do livro (ainda que a primeira metade do episódio 2 fosse já de uma excessiva acalmia).
Um texto que deveria ser um complemento com informação mais específica mostra-se demasiado longo, repetitivo na sua linguagem e sem personalidade. Aquilo que deveria ser a carta de um pai a um filho não esconde a construção de um texto contextualizador num momento em que nenhuma outra solução haveria já.
No caso desta prancha não posso deixar de assinalar, igualmente, a falta de qualidade da sua planificação que faz ecoar de forma mais forte a sensação de informação forçada ao leitor.
Constituída por um grande plano da carta, mas depois encoberta por caixas de texto que não beneficiam nada a leitura já que a legibilidade das letras é igual nos dois suportes.
E não posso deixar passar, ainda, a presença de uma cómica referência do desenho à vida interna da Kingpin Books que está completamente fora de tom para imersão numa memória reinventada da realidade revisionista que o livro procura.
Apesar deste reparo, a evolução do desenho de Filipe Teixeira é o mais interessante de seguir ao longo do livro.
Ainda muito débil e inconstante no Livro 1, como se pode ver pela representação pobre e pouco coerente das faces dos personagens, atinge patamares de grande qualidade no Livro 3 (ajudado, evidentemente, pela arte-final de Mário Freitas) onde o trabalho de detalhes e a imaginação aplicada à planificação das pranchas ganham relevo.
As cores ajudam o desenho de forma muito evidente. A sua qualidade é uma constante do livro e a expansão da paleta ao longo da história (sobretudo a partir do Livro 2) leva a que a própria leitura do livro se vá abrindo ao leitor.
Sobretudo, são as cores que impedem que se recuse o livro durante o Episódio 1, ainda para mais quando o desenho surge numa abrupta transição de um Episódio 0 que terá sido desenhado já depois do Episódio 3 e que apresenta a mesma qualidade que esse último - e muita mais do que o Episódio 1.
Nos melhores momentos, o desenho e as opções de cor levam as cenas de acção a equiparar-se a possibilidades cinematográficas que muitos realizadores reivindicariam para si - veja-se a sugestão de slow motion da página 78, por exemplo.
Vale isso numa edição que, pelo formato, se aproxima do formato usado para a literatura de texto corrido e que merecia que o argumento justificasse mais tal analogia.


Agentes do C.A.O.S.: A conspiração Ivanov (Fernando Dordio e Filipe Teixeira)
Kingpin Books
Sem indicação da edição - Outubro de 2010
84 páginas

terça-feira, 14 de maio de 2013

Quem tem medo do realismo?

Dediquei-me a ler Não Sou Um Serial Killer na expectativa de ler algo que se aproximasse de um tom sombrio de Dexter no período dos anos de formação.
A minha ideia de diversão passava pela hipótese de viver os efeitos tenebrosos da psicopatia por via indirecta no momento em que as pulsões são mais fortes e o carácter mais maleável.
Devo dizer que era precisamente esse o rumo do livro, capitalizando a adicional estranheza social de um psicopata auto-consciente para reforçar o retrato de desintegração com os pares e conflito com a família de um adolescente.
Apesar das expectativas que tinha para o livro, de que este teria limites para aquilo que explorava e que teria  uma acentuada necessidade de se relacionar com um público mais jovem, estava satisfeito e, em certos momentos, surpreso com a abordagem realista e ousada do autor que não deixava de combinar humor negro e descrições realistas.
Isto durante as cem primeiras páginas, porque logo de seguida surge o conteúdo sobrenatural que vem perturbar seriamente a concentração que se tem com o livro.
A descoberta de que o vilão é, literalmente, um monstro vem retirar boa parte da credibilidade que o autor estava ainda a estabelecer para o livro.
Pior, denota uma falta de coragem para criar um protagonista com o qual os leitores adolescentes possam criar empatia e que também mata pessoas - assassinas elas próprias, clato - quando, na verdade, era isso mesmo que Dexter tinha provado vezes sem conta ao longo das suas temporadas.
(Curiosamente, transformar o perigo em algo inócuo parece ser um defeito comum nesta família de escritores, visto que Dan é irmão de Robinson Wells.)
Depois disso foi muito difícil continuar a ler o livro, tendo-me obrigado a tal durante umas dezenas de páginas mais antes de conseguir superar a desapontada raiva que sentia.
O livro, curiosamente, reentra nos eixos com o sobrenatural a tornar-se num elemento de fundo pouco referido que só volta a ter verdadeira preponderância quando o livro tem de chegar à sua inevitável conclusão.
No entanto, a cada capítulo que se sucede à revelação, vai ficando provado que o sobrenatural era desnecessário num livro que funciona bem como o thriller em que se transforma depois de estabelecer as bases de um protagonista pouco (se bem que, entretanto, mais) habitual.
A leitura imediata de Senhor Monstro foi um salto de fé baseado na vontade de mais do que na confiança no trabalho que poderia estar ali.
O segundo livro é, felizmente, melhor que o seu antecessor, sublinhando o que esse já tinha de melhor.
Capítulos dedicamos unicamente a descrever como obter o melhor mas menos perigoso fogo possível ou às sensações de matar um gato no fogo constituem o melhor do livro.
A verosimilhança - quem sou eu para dizer que isto é realismo no que toca à psique de um adolescente com tendências psicopatas... - desses capítulos encaminham-nos para uma construção menos simplista do personagem principal que se torna num melhor protagonista de um thriller mais robusto do que o anterior.
Um thriller que não abdica - ou não pode já abdicar, por culpa do primeiro livro - dos elementos sobrenaturais mas que os dilui de tal forma que os torna em pouco mais do que um elemento humano potenciado ao máximo.
Esse elemento até se integra bastante bem com as necessidades que o livro tem para concretizar a acção no cenário que construiu para o protagonista, pelo que se torna fácil ao leitor, desta vez, encará-lo com uma descontracção que não admitiria antes.
No entanto, o que o livro tem de substancial continuam a ser os seus elementos realistas - caracterização psicológica e motivações da intriga - mesmo que dentro de uma construção ficcional pouco realista.
Há, agora, um terceiro livro disponível que ainda não estou convencido a ler. A ideia de tirar as teimas a se Dan Wells consegue levar por diante uma transformação total dos seus livros em que o sobrenatural não intervem e em que o realismo (possível) conduz o leitor.
Mas o que é claro é que o medo que se mostrou no primeiro livro está a desaparecer, provavelmente à conta do sucesso e de boas reacções que o livro terá tido.
Porque duvido que sejam os leitores (com a idade do protagonista) a temer o realismo violento desconhecido (mas já imaginado) que acompanha o emocional (que eles conhecem bem).
Esse temor deve ter vindo de editores adultos preocupados com as reacções dos pais mais facilmente exaltáveis.


Não Sou Um Serial Killer (Dan Wells)
Contraponto
1ª edição - Março de 2012
240 páginas



Senhor Monstro (Dan Wells)
Contraponto
1ª edição - Novembro de 2012
264 páginas

domingo, 12 de maio de 2013

O mesmo recheio num embrulho diferente

Não sabia do que tratava este livro - nem procurei essa informação ao pegar-lhe - caso contrário teria sido difícil que lhe dedicasse o meu tempo. Mas, depois de lido, serve o propósito de compreender o perfil de Janet Evanovich.
Do policial de Perseguição Escaldante para a fantasia urbana de de Gula Perversa mudam os detalhes do imaginário mas a estrutura mantem-se de um livro para o outro.
Protagonistas femininas, com profissões que lhes dão enorme liberdade para se deslocarem a todas as horas do dia, em aventuras onde as perseguições têm papel essencial e das quais desviam a sua atenção quando um dos dois - ou mais - homens que surgiram a atrapalhar a sua vida está por perto.
Os detalhes que variam servem de condimento à acção. Neste caso são cupcakes e magia.
A protagonista arranca o dia na cozinha, onde além de fazer os bolos partilha o seu lado feminino com outras duas mulheres. Depois passa o resto do dia à procura de artefactos carregados com a magia de um dos Sete Pecados Mortais - basicamente, são como o anel que os Hobbits carregavam mas neste primeiro volume com a gula no lugar da fúria.
Os dois homens que surgem na sua vida estão à procura desses artefactos para fins completamente opostos, mas sabem que a sua tarefa vai passar por aquela mulher.
Um é um bad boy que ela deveria recusar de imediato. O outro é mais fiável mas igualmente atraente. Se alguma destas características ainda não estiver definida tal como aqui a resumo, estará para breve assim que a autora conseguir dar a volta a alguma nuance que tentou incluir no cenário do triângulo de atracção física.
Com Perseguição Escaldante achei que a autora conseguia conciliar o público feminino com alguma curiosidade masculina pelo género escolhido (e pelas revelações do universo feminino).
Agora sinto que o tipo de romance que a autora escreve, sobretudo sem o apoio do crime, esgota a paciência dos seus (potenciais) leitores masculinos ao fim de um único livro.
Suporia que a paciência das suas leitoras femininas, mesmo as mais fiéis, também acabaria por se esgotar, mas o largo número de volumes das suas séries logo me contradiz.
Tudo porque, não importa do que trate o livro, a autora foca-se em colocar as suas protagonistas em situações de aperto. E raramente elas parecem ser independentes o suficiente para deixarem de fora a necessidade de recorrer aos homens disponíveis.
São mulheres auto-suficientes com vontade de continuarem a ser resgatadas como "damas em apuros". Posso compreender mal a situação e esta ser a nova versão do feminismo - complacente, sobretudo - mas creio que as mulheres modernas ainda encontram um melhor modelo ficcional para a mistura de força e sensibilidade em Vivian Rutledge.
A característica que ainda ajuda o livro é o humor que a autora assume para a inconsequência das suas tramas, aqui revendo o funcionamento da Gula sobre as pessoas não como mera ânsia por comida mas como um desejo incontrolável de acumulação e consumo de coisas.
Não que haja crítica social aqui implícita, apenas uma inevitável coincidência da sociedade moderna apostar na individualidade dos prazeres que os Sete Pecados tentavam contrariar.
Resumindo, este é um livro quase decalcado do outro que li da autora mas que no lugar de balas tem magia e no lugar de sangue tem cobertura para bolos.


Gula Perversa (Janet Evanovich)
Topseller
1ª edição - Março de 2013
288 páginas

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Acreditar no Humano... quase

Uma personagem diz, muito cedo no livro, que a história que será contada ao narrador o fará crer em Deus. Visto que o narrador serve de figurante intermediário do próprio leitor, é a este que está a ser dito que a história o fará acreditar em Deus.
Um objectivo demasiado ousado e, certamente, capaz de insuflar expectativas igualmente elevadas num livro vulgar quando nem os livros com expressão religiosa atingem facilmente tal prédica.
Nem sequer é essa exagerada pretensão que tornará o resultado final numa obra desequilibrada e, consequentemente, falhada.
O verdadeiro problema é a maneira como a última parte do livro não responde em conformidade à longa fábula que se leu até aí, por ser demasiado breve e por ser demasiado débil para fazer o contraponto catártico às aventuras de elevação - mais do que superação - humana que Pi vive a bordo do barco.
A fantasia que mistura comportamento animal, desenvoltura humana, entendimento do divino e impossibilidades naturais poderia ser apenas uma fábula inócua. Uma versão (teoricamente) mais adulta - ou em modo de sobrevivência - das lições de descoberta pessoal que já estavam n'O Principezinho.
Poderia não fosse aquela última parte a confrontá-la e a transformar o texto numa representação simbólica da qual se podem começar a tirar ilações, embora não tão determinadas como as sobre Deus que são feitas então.
Não se entende que a componente realista do romance, ao existir, não tenha a mesma dimensão - afectiva e dramática - que tem a componente de imaginação que se esforça por escapar a grilhetas de qualquer tipo.
Pelo contrário, parece que o romance se esquiva a revelar que tem um lado negro dentro de si, como se tal contagiasse indevidamente os leitores, incapazes de compreenderem as "belas lições" do livro por si.
Daí que o protagonista seja unidimensional (numa leitura simpática) ou figura de corpo presente (num tom de crítica ríspida) na sua existência a solo.
Num barco onde só vai ele com um tigre seria impossível que Pi fosse confrontado por algo mais do que os instintos mais primários de sobrevivência, tanto de resistência física como mental, que não conhecia em si próprio.
Seria, por isso, necessário que os seus vários estados de existência chocassem uns com os outros de forma mais decisiva. A sua vida agora apaziguada contra a verdade daquele período que o define, mais do que qualquer outro momento, ou não estaria ele a relatar tal história com a sua vida na Índia e no Canadá - com eventos importantes como a descoberta simultânea de três religiões ou o casamento seguido do nascimento dos filhos, respectivamente - a servirem de meras balizas à vida a bordo do barco.
Falta ao livro a força da interpelação, pois mesmo com os investigadores japoneses a perguntarem pela correspondência daquela estranha ilha da história, não sei se haverá desejo dos leitores de lhe procurarem um significado possivelmente terrível quando o episódio não guarda verdadeiros perigos.
Neste desequilíbrio de partes o livro faz, ao contrário do anúncio inicial e de forma acidental, um retrato do esforço humano na criação, representação e reprovação de Deus. Tarefas importantes para ocupar a mente humano quando se vê obrigada a confrontar a solidão, o medo ou a culpa.
A religião e os seus rituais servem a Pi para ocupar o tempo. O volume da descrição de uma viagem imaginária supera largamente o da descrição seca da realidade. Assim é a mente humana capaz de superar o que conhece para criar algo engrandecido.
O grande trunfo do livro deveria ter sido esta dúvida levantada sobre a possibilidade de a religião, mesmo que pareça manifestar-se em momentos de enorme exigência, ser mais um veículo da capacidade humana para a criação e para o livre-arbítrio.
Se, intencionalmente, o livro trata com placidez crítica a integração possível de todas as religiões numa mesma dimensão de superação da condição humana, deveria ter ido mais longe e celebrá-las como um dos corolários extraordinários da criatividade humana.
Dessa forma o livro teria superado o "quase" e teria feito com que se admirasse o resultado extraordinário da mera condição humana.


A Vida de Pi (Yann Martel)
Editorial Presença
9ª edição - Janeiro de 2011
328 páginas

terça-feira, 7 de maio de 2013

Lição sobre a simplicidade que não existe mais

Conversar com Andrea Hirata é compreender que, enquanto crítico, haverá sempre momentos em que não conseguimos assumir a condição do próprio escritor no momento em que criou a sua obra.
Há sempre momentos em que um crítico não tem o mesmo conjunto de referências do autor e não consegue, em plenitude, perscrutar os significados de uma obra. Mas neste caso refiro-me, precisamente, do oposto.
A impossibilidade de abdicar as noções que os muitos anos de leituras incutiram e que são os recursos usados para "confrontar" cada novo livro.
Dado que Os Guerreiros do Arco-Íris é um texto criado em resposta a uma promessa de infância que só por acaso se transformou num livro, julgá-lo severamente pode ser um erro.
Sobretudo com a distância que vai da realidade Portuguesa à Indonésia - e, no seio desta última, daquela minúscula ilha - e o papel que este livro teve para os muitos milhões que no país de Hirata leram a obra e encaram agora a Educação de maneira diferente.
Aliás, a descontração com que o autor encarava o facto de, entre esses milhões de leitores, serem quase tantos os que leram a obra oficial como os que a leram por via de cópias dá em a noção do quanto Andrea Hirata se preocupa menos com a sua relevância literária do que com a sua relevância social.
Como consequência, o destaque do seu discurso vai para a Escola/Biblioteca/Museu do livro que criou na sua terra natal e não para as três sequelas que escreveu a este livro.
Como escritor, Hirata é um interlocutor fugidio. Embora não se esquive a nenhuma pergunta "mais difícil" (palavras dele) não deixa de dar algumas respostas vagas.
É com elas que deixa aos leitores o trabalho de análise e interpretação e protege a inocência com que se lançou para a concretização do desígnio que era o seu primeiro livro.
Só relutantemente Hirata se considerará escritor, lamentando as muitas questões que os seus editores ocidentais agora lhe colocam e afirmando que escreveu o seu primeiro livro com muita facilidade mas a partir do segundo demora muito mais tempo, porque quanto mais sabe sobre Literatura mais difícil se torna saber como escrever um livro.
A conversa que Hirata veio ter em Lisboa acabou por ser conduzida pelo homem e não pelo autor. Um homem extremamente afável que se dá por feliz por conseguir carregar nas palavras que escreve uma mensagem que muitas pessoas querem captar.
Isso fez com que aceitasse com enorme boa vontade algum tom crítico que possa ter passado nas perguntas que lhe fiz depois da conversa em grupo. O essencial dessa entrevista pode ser visto no vídeo abaixo.



segunda-feira, 6 de maio de 2013

Defeitos do livro de ficção que nunca o foi

Estamos perante um livro que não é um livro, antes aquilo a que chamaria uma longa carta de memórias escrita por um pobre rapaz indonésio que atingiu grande sucesso, para a professora que o inspirou a conseguir superar-se.
Digo-o por uma avaliação estética e estrutural da obra. Ambos os aspectos são pouco consistentes e reflectem o amadorismo que está ligado à forma como o autor abordou o trabalho.
O livro não tem uma ideia de narrativa a longo prazo, vivendo de pequenas conquistas que vão sendo feitas pelos alunos daquela escola.
Mesmo pelo meio desses pequenos momentos de narrativa, o autor vai derivando para pormenores que lhe parecem advir de memórias extemporâneas que considera merecedoras de figurar no livro.
Há capítulos que brotam de forma surpreendente e que parecem existir isolados dos que imediatamente os precedem e sucedem.
Isso causa um sentimento de perda na cronologia do livro: de imprecisões na continuidade a incerteza na idade que os miúdos têm a cada episódio. Curioso que tal aconteça porque, no caso mais provável, o autor tentou ser o mais rigoroso possível com o tempo que passava, não tendo depois recorrido às ferramentas literárias para melhor harmonizar ou mesmo reconstruir a cronologia individual dos episódios com a global da história.
Estamos perante um fluxo de memória que terá sido escrito num impulso com intenções meramente pessoais e o qual terá chegado à publicação por causa de alguns dos valores que exalta.
Afinal este é um romance apenas porque o autor assim lhe chama para poder aceitar as pequenas liberdades literárias que usa para passar as suas memórias a um formato escrito.
Os episódios inseridos num impulso têm ainda mais um efeito incontornável, o de criar um sentimento de estarmos a entrar, mais do que uma vez, em terreno de realismo mágico.
Terreno que dá um certo exotismo ao livro, o que o distinguirá de uma história idêntica passada no mundo ocidental, mas que também nem sempre é o mais compatível com a história simples onde se distinguem com facilidade os "bons" dos "maus".
Aliás, na combinação desse terreno de conto de fadas com essa moralidade evidente, o livro parece mostrar-se mais apontado a crianças do que adultos, dando-lhes as apropriadas lições: que a educação é sempre algo pelo que devemos lutar, que o capitalismo feroz é o inimigo maior do indivíduo e do seu sucesso e, até, que a inspiração deve vir de alguns ídolos mas também da religião.
Mas se necessidade de dar as lições prevalece sobre a arte de narrar, na verdade a moral não prevalece sobre a realidade.
A surpresa que afasta o livro de uma auto-ajuda exótica para o leitor ocidental é o seu final, uma confissão sobre as vidas dos protagonistas muitos anos depois. A maioria saiu derrotada, submetida a maus trabalhos e vidas difíceis, apesar da luta daquela época.
Curiosamente, o insucesso generalizado acaba por reforçar a ideia de que a professora homenageada e que tanto inspirou o autor, é a personagem menos valorizada pelo livro.
Os seus esforços são nobres, mas os seus feitos não são extraordinários. E se deu a um dos rapazes um futuro melhor foi numa mistura do acaso com o esforço individual dele.
A sua maior qualidade vem da turma que teve a sorte de encontrar, com um sobredotado, um artista e um rapaz (o protagonista) que se valoriza com o tempo, entre outras personalidade que se complementam perfeitamente (naquilo que diria que era um esforço demasiado grande da ficção, não estivéssemos perante o que são quase Memórias).
O protagonista acaba por ser quem mais se evidencia, como não poderia deixar de ser num livro de memórias com um ponto de vista único, embora por vezes a roçar perigosamente o auto-elogio.
Mas são algumas de entre as outras personagens que acabam por se revelar muito interessantes ao longo do percurso feito, com as mais pequenas vitórias - e derrotas, que mostram muitas vezes maior força como lições humanas do que todo o resto do livro - pessoais a proporcionarem os bons momentos do livro.
Sobretudo Lintang, o rapaz de intelecto extraordinário que pedalava quarenta quilómetros para a escola, que não nos permite vê-lo como um injustiçado pois tem felicidade na vida simples de pobre pai de família.
Não consigo dar o meu beneplácito ao livro apenas a partir destes elementos positivos - uma personagem e uns seus quantos episódio - mas estou em crer que o leitor mais apropriado ao livro será levado pela combinação do exotismo geográfico com a temática cada vez mais premente do desprezo dos "nossos" jovens pela sua educação.
As lições passarão facilmente por uns leitores que os oferecerão depois a outros e assim por diante, garantindo um sucesso razoável ao livro.
Assim, o seu objectivo principal talvez esteja alcançado, pois a homenagem maior do autor à sua professora é a de ter alcançado um público vasto e fazê-lo conhecer a realidade vivida por aquela turma em defesa da sua escola.


Os Guerreiros do Arco-Íris (Andrea Hirata)
Editorial Presença
1ª edição - Março de 2013
288 páginas