domingo, 24 de abril de 2011

O mistério que interessa

Smilla e os Mistérios da Neve é um policial negro intressante mas a partir de um certo momento deixou de me interessar a resolução do mistério, a plausibilidade da narrativa ou o destrinçar das personagens e reviravoltas.
Aliás, tudo isso deixou mesmo de interessar ao livro que termina com uma frase que será temida pela maioria dos leitores de policiais: Este caso ficará sem solução.
O livro é muito mais sobre - e vou estar a evidenciar o óbvio - Smilla, uma mulher que prefere o contacto com a neve a qualquer relação humana mas que é capaz de perseguir a verdade sobre a morte de um miúdo seu vizinho até a uma gruta na Gronelândia.
Contradições de uma mulher que aprecia a sua solidão, que nunca compreenderá a interacção humana, que é resiliente ao limite do exagero.
Uma figura fascinante que enche as páginas com os seus pequenos apontamentos, sejam memórias ou devaneios. São aquilo que existe dentro de si e cujo interesse de os ver expressos nos causa surpresa.
Olhando para o gelo, é todo igual. E, no entanto, Smilla categoriza-o E o leitor acha essa informação fascinante. Aquilo para que nunca olhámos com atenção pode guardar maravilhas.
Assim é Smilla, aparentemente um vazio de razões para um livro e uma figura que o insufla com a sua vida interior.
O caso fica sem resolução, mas ficamos certamente mais próximos de desvendar os mistérios da neve e de Smilla.


















Smilla e os Mistérios da Neve (Peter Høeg)
Edições Asa
2ª edição - Outubro de 2010
480 páginas

domingo, 17 de abril de 2011

Um gesto de apreço

Este pequeno livro foi-me oferecido, num gesto de enorme simpatia, pelo seu editor aquando de uma interessante conversa que estávamos prestes a terminar.
O livro merece muitos elogios meus, nenhum deles por mera simpatia de retribuição a esse gesto.
Estes dois textos são soberbos. A crítica que cada um lança é feroz e dolorosa para os leitores, sobretudo porque a construção e a qualidade do texto são envolventes.
O duro cinismo de sabor amargo só se revela depois de nos deixarmos inundar pelo mel do seu trabalho de escrita.
Seja na sua sugestão sobre a pobreza que pretende tornar a descendência dos mais pobres em matéria de subsistência alimentar ou na crítica simultânea tanto aos que sugerem a destruição do Cristianismo como aos que no seio da religião promovem os preconceitos exteriores, o domínio de Swift da argumentação e da retórica serve a forma enganadora como usa o texto para terminar com as ilusões dos seus leitores sobre quais são a idealogia e o comportamento mais risíveis quanto a estes temas.
O humor de Swift tem um poder de choque e de confronto intelectual que seria visto como virulento ainda hoje.
Os limites do que escreve não nascem da consciência ou da moralidade, mas chegam apenas pelo grau final de imaginação de Swift. E, para dizer a verdade, esses limites parecem nem existir.
É caso para dizer que Jonathan Swift conseguiria abafar com a sua ironia qualquer um dos mais desbocados comediantes actuais.
Portanto, sem simpatias da parte do leitor, mas por genuíno apreço a um livro cuidado, espero que sejam ainda muitos os que o comprarão em reconhecimento.
Ao gesto de carinho que o editor dedicou a estes textos protegendo-os com uma capa dura que durará muito mais tempo.
Ao gesto de dignidade
Ao gesto de elevação que o ilustrador Frederico Penteado dedicou a estes textos com magníficos desenhos - mais bem sucedidos em Um argumento contra a Abolição do Cristianismo - que jogam com o texto sem se limitarem a ilustrá-lo.


















Uma Proposta Modesta (Jonathan Swift)

Alfabeto
1ª edição - Fevereiro de 2011
74 páginas

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A ironia de escrever

Continuemos a encontrar a nossa própria construção de Rubem Fonseca neste seu novo livro.
O seu livro sobre um escritor deixa traços daquilo que ele será. Fala-nos de outros autores que lhe guardam a criação, de comportamentos que o caracterizam.
Ou então mente descaradamente. Cria a personagem de um escritor que é, na sua maioria, o contrário do próprio Rubem.
Vale-nos que todo o autor é uma construção ficcional. Existem escritores, pessoas de vidas mais ou menos interessantes, que existem para quem os conhece. E depois existem autores, as versões reveladas dos homens, entregues a todos os leitores e observadores para que se contentem em dar vida a um nome ou uma foto impressas na capa.
José Rubem Fonseca é o escritor de vida recatada. Rubem Fonseca é o autor mistério, personagem de cada um dos seus leitores. Mil vezes criado e mil vezes distinto.
Neste seu exercício de intriga e literatura, nada há senão brilhantismo que é fácil de verificar, assinalando o domínio exacto que Rubem tem da evasão temporal, da gestão intriguista e da construção contista (integrada na obra, sempre).
São muitas as histórias dentro das histórias, as personagens e os eventos que surgem e que se sustentariam por si mesmos ainda que dêem o seu enorme contributo ao resultado global. O seu conjunto produz o desabrochar do alcance da obra, um policial delicioso que é uma colecção de retratos inigualável.
Tudo isso, ainda assim, é a revelação secundária de um livro que é um longo desafio de meta-linguagem.
Para dar uma ideia do que Rubem Faz neste livro com o processo de escrita, teria de recorrer ao cinema, mais precisamente ao argumento de Adaptation de Charlie Kaufman.
Rubem escreve da forma mais atraente possível uma das realidades da própria escrita.
O escritor, figura central, é personagem da sua tentativa de escrita, é o que conta e como o conta.
Bufo & Spallanzani retorce as nossas expectativas para revelar que o artifício de escrever é uma maravilha de assistir. E, lá está, tal como disse no início, o jogo de construir o autor Rubem Fonseca é nosso tal como é dele.
Aqui, a construção é a própria literatura, revelação da transformação do escritor em personagem. Tudo repleto de ironia e de sinceridade. Ou assim quero crer.


















Bufo & Spallanzani (Rubem Fonseca)
Sextante Editora
1ª edição - Fevereiro de 2011
232 páginas

sábado, 9 de abril de 2011

O crime do olhar

A notícia no Sol online mostra como ainda é possível usar a imagem de um acto de violência como novo e mais cruel acto de violência.
A imagem do homicídio que se cometeu usada como arma contra aqueles que nutriam sentimentos pela vítima.
O que a notícia demonstra é que há indivíduos que destruíram o pesar que todos os seres humanos merecem no momento da sua morte e que usam as novas tecnologias ao seu dispôr de forma insensível.
Mosby, neste livro como no que anteriormente li dele, parece vir prevendo e utilizando de forma arguta a desumanização que o contacto via ecrã permite.
O limite que o crime ultrapassa é o da aceitação moral e legal do comportamento generalizado. Mas a par disso, Mosby vem explorando outro limite, o da aceitação humana da exploração de um comportamento que suscita as possibilidades de um crime.
Em Um Grito de Ajuda era a socialização como matéria de despreocupado simplismo. Neste é a dissociação do olhar do estímulo que este deve provocar.
Um comportamento levado ao extremo é matéria de hipótese criminosa. Se cada pessoa que olha obsessivamente para cadáveres num noticiário está a alimentar uma indústria de exploração, é evidente que há um mercado por promover em que se vende a visão de um cadáver "fresco".
Uma premissa inteligente, que se move no limite entre a culpa e a cumplicidade, entre o crime e a sua promoção.
A partir dela, este policial é construído com inteligência, mas é pela sua interrogação actual que ele se distingue.
Até que ponto está a sociedade a gerar comportamentos desviantes por censurar com palavras o que o seu olhar glorifica?
Crime, violência e terror. Se estão a perder poder de choque e se estão a ganhar poder de atração, não estarão a ganhar terreno entre os comportamentos mais comuns?


















Mar de Sangue (Steve Mosby)
Europa-América
Sem indicação da edição - Maio de 2010
292 páginas

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O meu livro

Deixei passar algum tempo até contar esta história para não deixar demasiado evidente o livro a que se refere.

Sentei-me num cadeirão confortável de uma biblioteca, mais convidativo do que os de casa. Biblioteca moderna, com larga oferta de livros e filmes, com instalações que são uma verdadeira mordomia para os utentes.
Sentei-me com o livro escolhido e fui pelas páginas afora saciando-me com aquelas brilhantes páginas.
Isto até ao momento em que, no movimento de folhear, sinto uma página grossa demais. O elemento estranho no livro fez-me parar e nessa altura apercebi-me de que não era uma página mais grossa mas duas páginas ainda juntas pela sua extremidade.
Achei a situação engraçada, mas na sede da leitura limitei-me a puxar do meu canivete e abrir aquelas páginas.
Avançando mais um pouco a situação repete-se. E novamente lá mais para a frente. E de novo e de novo e de novo...
Fui sempre abrindo as páginas com o cuidado de preservar o livro e não fazer barulho que me denunciasse, não fosse alguém olhar para um gesto justificado como uma agressão ao livro.
Comecei a perguntar-me sobre aquele livro. Sobre o (muito) tempo que tinha passado naquelas prateleiras sem que ninguém o abrisse. Sem que ninguém lhe tocasse senão para o contabilizar no inventário ou para o mudar de secção.
Depois não continuei essa reflexão com amargura, não pensei na falta de leitura do livro e de todos os outros que ali deviam estar nas mesmas condições. Não pensei na quantidade de espaços dedicados aos livros que morrem a pouco e pouco porque ninguém os utiliza.
Continuei, isso sim, por pensar na vida dos livros, na relação única que estabelecemos com cada livro.
Deixei-me levar pelo prazer de crer que aquele livro estava a guardar-se para um leitor. Que o livro me tinha escolhido para que eu lhe insuflasse as páginas de vida, abrindo-as ao mundo pela primeira vez.
Libertando o que o livro tinha para dizer, recebendo-o e dando-lhe algo de volta.
Como um leitor procura um livro que o transforme, também um livro poderá procurar um leitor que o cuide.
O livro prestava-se a este discorrer dos pensamentos, mais interessante e pessoal e menos amargo para com o resto da população. E ainda bem.
Hei-de voltar àquela biblioteca e hei-de reencontrar aquele livro, quase de certeza ainda intocado, ainda o meu livro a aguardar um pouco mais de convivência, um pouco mais de vida!