domingo, 31 de julho de 2011

Minudências maravilhosas

Os contos de Felisberto Hernández são reflexões funcionais sobre a percepção nas suas mais diversas facetas.
A percepção que recombina os mais diversos sentidos ou que lança a memória em espirais que se enleam em si mesmas.
Uma das personagens que habita as páginas diz mesmo que ia aos seus lugares preferidos como se entrasse em buracos próximos e encontrasse ligações inesperadas. Isso é um processo físico para um arrumador de teatro a circular pela cidade mas é um processo bem diferente para um escritor a circular pela materialização das existências imaginadas que lhe pertencem.
Recordações e percepções parecem banais até caírem na página, momento em que se tornam símbolos de outras vivências ou traduzem significados que nem a emoção sabia reconhecer nelas.
Não interessa que sejam sinceros (ou biográficos, se preferirem), interessa que mostram o próprio processo de associação que leva o relato a saltar tão rapidamente da vida de quem fala para a memória de quem o acompanhou ou que leva o relato a saltar do realismo para o fantasioso sem que o próprio relator se dê conta do grau de absurdo de que se aproxima.
Os caminhos destes contos são a própria visão de como a sua escrita surpreendeu o próprio autor, encaminhando o seu trabalho para campos distantes mas que falam do mesmo.
O relato de memórias torna-se na elaboração do fantástico porque se rompem as barreiras entre o olhar empírico e a elaboração da mente, umas vezes perigosa na sua obsessão e outras mais rigorosa na sua vontade de chegar ao mais longínquo ponto de contacto entre o presente (e o presente relato) e o que foi o passado.
No final, aquilo que torna os contos tão ricos é a forma como as pequenas minudências do quotidiano se tornam no maravilhoso segundo a pena de Felisberto Hernández.


Contos Reunidos (Felisberto Hernández)
Oficina do Livro
1ª edição - Março de 2010
140 páginas

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Homens, animais... e outros que tais

Pensemos no episódio que nos contam sobre a Torre de Babel e entendamo-la agora com um olhar renovado.
Não terá o "pai do mundo" - chame-lhe cada qual como lhe aprouver - descoberto que a linguagem comum que o ameaçava era a linguagem que permitia aos seres entenderem-se?
Não terá o "pai do mundo" achado que a torre que os seres erguiam e que o ia alcançar era o entendimento que os levaria a ser capazes de fazer do mundo o que ele tentara sem conseguir?
Não terá o "pai do mundo" destruído essa torre, melhor dizendo a Língua do Mundo, para que não houvesse forma do conjunto dos seres fosse tão dono do espaço e do destino como quem o criara?
Ou seja, o "pai do mundo" sentiu-se afrontado pela mãe natureza e na disputa entre progenitores quem pagou foram os seus filhos a quem roubaram a possibilidade de partilharem um mundo em que todos poderiam caminhar erguidos, quer caminhassem erectos quer não.
O mais provável é que o "pai do mundo" tenha sentido que a sua criação mais demorada e complexa tinha de se superiorizar às restantes para que ele fosse louvado e admirado por um acaso de sorte, acabando por atirar com os pobres animais para um desentendimento geral. Ou, ao menos, um desentendimento absoluto com os homens que não conseguem, assim, valorizar o que os animais têm para lhes ensinar.
E muito têm eles para ensinar, como bem mostra Batalha, uma ratazana de sentimentos admiráveis.
Admiráveis tanto porque são os mais dignos como porque resistem por entre os instintos animais primários que surgem contra o pior tratamento que lhe dá o mundo.
Os animais falam-nos (e censuram-nos) pela nossa forma de sermos humanos melhor do que as formas que criamos por nós mesmos.
Sobretudo Batalha, melhor humana do que nós seremos - nós somos os ratos de maus instintos, alegres por chafurdar no nosso próprio lixo existencial. E por isso Batalha merece a Torre de Babel que lhe erguem, monumento real, mas sobretudo monumento de memória.
Batalha enternece-nos por essa grandeza nascida ao nível do solo. E pelos olhos dos animais perscrutamos o divino. E pela boca dos animais ouvimos a fala comum.
Da Religião e da Linguagem escreve David Soares, de uma forma inesperada e com uma qualidade vocabular inexcedível.
A admiração pela demanda das palavras esquecidas, inabituais ou, tão somente, estranhas é de uma grandeza que perdura(rá) para lá da força reflectiva do livro, ainda que essa qualidade acabe por contrariar um pouco a conversão da idealogia textual na forma do discurso.


Batalha (David Soares)
Saída de Emergência
1ª edição - Maio de 2011
208 páginas

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Humanidade perdida, Humanidade reencontrada

Estes seres são os pobres, os desamparados que lidam com o dinheiro numa base diária que lhes permita subsistir até ao momento seguinte.
Seres que já não têm aquele mínimo das condições que julgamos indispensáveis para viver.
São seres marginais e marginalizados, que vivem à base de álcool e de da bondade aproveitadora dos que são como eles mas que se acham um pouco mais espertos.
Estão desesperados por qualquer oportunidade à qual se agarram rapidamente e sem pesarem as consequências.
Na verdades estes são os seres que parecem já não serem humanos mas que o negam no seu quotidiano.
Muito sós, inconsoláveis com a sua própria existência, conseguem reunir-se numa comunidade falhada mas melhor e mais duradoura do que as comunidades abastadas que se unem pelas características comuns mas se dividem pela ganância individual.
Esta comunidade de seres aparentemente acabados move-se para um ténue objectivo comum, o da sobrevivência.
Celebram sem reservas e até que se esgotem pequenas benesses que o acaso ainda lhes traga sabendo que estão condenados às dificuldades e não há como sonhar com um futuro a partir de momentos mais felizes.
Afundam-se em conjunto e com prazer nas bebedeiras que os deixem dormentes para a realidade alheia que os reflecte bem demais.
Vivem, ainda, como quando a Humanidade merecia o seu nome, valendo-se da disponibilidade gratuita (quanto muito, barata) dos poucos meios que possuem quando estão em conjunto.
Na verdade, os seres que outrora foram humanos são os restantes, aqueles que desprezam, e até atacam, o miolo social pobre que criaram à conta das suas próprias acções!
Esses seres, confortavelmente instalados numa posição financeira inabalável, esqueceram-se da caridade humana que devia tecer a sociedade.
Esqueceram-se dos sentimentos que os homens devem partilhar por pertencerem a uma raça de seres semelhantes. Raça em que se um perde a sua humanidade, todos a acabarão por perder.
O ponto mais fraco do tecido social é o que dá a medida do seu total. Mesmo se depois a redime pela maneira como resiste contra todas as contrariedades.
É importante reaprender a lição que vem da Rússia de há cem anos, que se repete para o Portugal de hoje e que se manifestará de novo daqui por cem anos, quem sabe se nessa altura não será por toda a parte...


Seres que outrora foram humanos (Máximo Gorki)
Arbor Litterae
1ª edição - Março de 2010
140 páginas

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Demais

Cresci rodeado de livros do tempo em que uma investigação ainda dava um livro policial e não um thriller e não me lembro que os melhores daqueles livros ultrapassassem as duzentas ou trezentas páginas.
Desse tempo nasce-me agora a óbvia percepção de que é possível ter ideias a mais num livro só.
Esse é o caso aqui, de um policial (ou thriller...) que se passa num cenário pouco habitual como é o Mónaco, com os seus ricos habitantes e a sua eficaz polícia, apenas para conseguir colocar um agente do FBI como personagem principal.
Um livro que tem a música - ainda em vinil - como elemento fulcral de provocação criminosa e de pista policial mas que se desembaraça dela através da moderna manipulação da imagem digital.
Um livro que tem a personagem principal ainda mal a superar um drama amoroso através do trabalho policial e logo a meter-se noutro sarilho do género durante a investigação.
Um livro que tem um Savant com memória extraordinária para a música para fazer dele o isco involuntário de um derradeiro combate corpo a corpo.
Há diversas boas ideias no livro, mas nem todas vão até ao fim das suas consequências, acabando por desembocar em soluções, em muitos casos, mais rápidas e até mais simples.
Tudo isto se torna mais evidente pelo capítulo 50 quando o autor nos apresenta a perspectiva de uma personagem que comete assaltos.
Ao longo do capítulo esse assaltante vai atacar uma personagem que já conhecíamos de trás e o objectivo do capítulo é matá-la. Mas disso só temos a certeza num diálogo já no capítulo 51.
Sim, o capítulo 50 até está bem escrito e é, em parte, emocionante. Mas a personagem nova não volta a aparecer e a morte podia facilmente ser apresentada apenas com o diálogo (que até faz uma breve revisão dos acontecimentos).
São sete páginas inúteis que só atrasam o desfecho e aumentam o livro.
Faletti poderia ter escrito, pelo menos, três livros com tudo o que incluiu neste. Tenho a certeza que os teria lido com mais interesse do que li só este (que não é mau entenda-se), sobretudo para acompanhar o desenvolvimento dos personagens que não precisavam de ter o seu arco narrativo encerrado logo à primeira aparição..
Mesmo se por estes dias os policiais (ou thrillers...) são transportados com maior prazer quanto mais páginas tiverem (sobretudo sendo nórdicos), ainda é possível ficar sobrecarregado com um que, apesar disso, pouco mais de quinhentas páginas tem.


Eu Mato (Giorgio Faletti)
Contraponto
1ª edição - Fevereiro de 2011
552 páginas

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Mau génio

Há um relato dentro do relato e com eles vêm vidas atrás de vidas. Em comum trazem aquele gosto cultivado para a tragédia.
Porque apenas a tragédia - amorosa, sobretudo - pode dar aquela dimensão profunda às vidas que lhes serve para a criação. Mesmo se essa criação apenas pode ser feita na própria vida, que enchem da tristeza que sonham sem ainda a conhecerem.
Não há tragédia senão aquela para a qual Toma e Ioan se encaminham, persuadidos por si mesmos de que já as suas vidas a ela estavam destinadas. Leram o seu Destino no seu pessimismo e assim o tornaram real.
Por isso as suas vidas são sempre feitas de altos e baixos, com os momentos altos a parecerem motivos para tombarem e nunca o contrário.
Do heroicismo à tolice, do amor à desesperança e da partilha à derota. Parecem voluntariar-se para se erguerem porque, caso contrário, não terão como se atirarem abaixo.
Mesmo o afecto que Toma sente por Ioan só o faz caminhar para o combate, para a frente de batalha onde o infortúnio é mais provável.
Os afectos, admiráveis, são as fontes dos actos mais inconsequentes e tenebrosos. Estes são homens que se enchem com o... vazio!
Ainda que O Génio Vazio seja "apenas" um fragmento de romance, acaba como se fosse no ponto correcto, com a promessa da partida para mais altos e baixos numa vida que está (agora) escrita mas ainda por concretizar.
Todo o livro é, afinal, o grande argumento da tese que lá vem escrita, pela defesa da independência da Roménia e pela defesa do patriotismo, que devem manter-se vivos ainda que essas ideias sejam, naquele país e naquela época, belas mas insubstanciais.
Um país é feito de muitas vidas, mas as vidas parecem feitas de um só génio - um só feitio, uma só ideia - que os encaminha para onde não devem seguir.
O convencimento é a grande tragédia destes seres e do que era então o seu país.


O Génio Vazio (Mihai Eminescu)
Alfabeto
1ª edição - Janeiro de 2011
168 páginas

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Humor sem revisão

A segunda vinda de Cristo ocorreu nos anos 1930 no deserto do Chile. Por lá vagueou esse homem admirável que se bufava, que ressonava, que se masturbava atrás dos arbustos e que se saciava (ocasionalmente) com as suas devotas admiradoras.
Era um homem abnegado que dormia ao relento, que possuía um mero saco de papel com uma muda de roupa e uma Bíblia.
Admire-se o seu grande milagre que foi a ressurreição de uma galinha. Não parece muito, mas era uma galinha que garantia ovos com duas gemas, um milagre em si mesmo.
Mas, pergunto eu, para que precisou este Cristo de uma Bíblia? Não deveria ele saber as suas palavras de cor?
Não era ele muito mais homem para que precisasse de uma meretriz caminhando lado a lado com ele o tempo todo?
Sim, este Cristo buscou uma mulher para ser a sua discípula mais fiel, uma mulher chamada Magalena que se dedicava à prostituição.
Dedicava, assim mesmo. Era uma "santa puta", admiradora maior de Nossa Senhora e prostituta por necessidade de fazer viver o martírio ao homem - um padre, ainda para mais - que a martirizou enquanto criança.
Vendia o corpo para sustentar-se como a sombra acusatória de um padre pedófilo que fugia de aldeia em aldeia daquela mulher que até poderia ser a sua própria filha...
A mais recente aldeia serve o cenário para este delicioso (e, possivelmente, controverso) pedaço de fino humor onde se cruzam estas vidas com a vida de uma fábrica onde ocorre uma greve.
Um greve na qual, aos direitos dos trabalhadores, se junta a reivindicação pelo retorno de Magalena, entretanto expulsa porque a mulher do opressor dono da fábrica ameaça chegar à cidade.
A vida privada e os desejos libidinosos metem-se no caminho da dignidade humana, mas também a ajudam - em solidariedade com a greve, a prostituta ofereceu os seus serviços aos trabalhadores.
Misturam-se política e religião e misturam-se defeitos humanos com expectativas de divindade.
O gozo do livro está no facto de ele não ser crítico mas antes ser irónico com um toque de afecto. No fundamental, isso é  humor, distribuir por todos a visão mordaz dos seus próprios erros. A verdade dita graciosamente (sem a obrigação de ser agradável).
Até porque a figura do Cristo de Elqui vai desaparecer da vida chilena apagada por Charlot, figura ainda mais assombrosa do humor terno que se admira até hoje.
Foi bom enquanto durou para o Cristo, que não chegou a ter discípula, mas que teveos seus momentos de fama e o milagre desejado por todos (que, infelizmente, só ele viu).

Dito isto, aviso que o livro precisava de tradução e revisão mais capaz. Diversos "à muito tempo" povoam o texto e as transições internas de tempos verbais ao longo de um único parágrafo, aparentemente originárias do próprio texto, nem sempre são devidamente acomodadas de forma a fazerem o sentido que devem ter.
Não é uma enfermidade que deixe o livro totalmente ilegível mas é motivo de algum sofrimento.


A arte da ressurreição (Hernán Rivera Letelier)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Janeiro de 2011
280 páginas

domingo, 10 de julho de 2011

Duelos

Será inevitável pensar, de forma geral, em O Velho e o Mar e Moby Dick. Mas O Peso da Borboleta não está em confronto com eles.
Sim, é um confronto entre um ser humano e um animal, mas não tem nem a fisicalidade do primeiro nem a complexa reflexão do segundo. Fará digna figura junto desses outros livros, mas é também bem diferente.
É um relato de duelos vários. O mais evidente será o do homem com o animal, mas são os confrontos individuais que realmente olham para o significado da existência do leitor.
O confronto do homem com a sua memória e o confronto do animal com o seu destino falam-nos daquilo que não sabemos mais como viver num ambiente de exigência física, diria mesmo de existência física.
A caçada vai de encontro ao que outrora foi uma necessidade e é agora uma escolha de uns poucos.
Como o próprio olhar para a nossa essência, até mais, o próprio desafio da nossa essência que é cada vez mais uma opção de uns poucos, seja pela brutalidade das experiências mais arriscadas ou pela simples interrogação sossegada diante de um livro.
O Peso da Borboleta é essa interrogação na forma mais preciosa, a que torna palavras na experiência, na que equipara a vida lida à vida experimentada.
O único duelo que o livro não trava - porque o vence ainda antes de darmos por ele - é o de nos levar para lá dele, sugerindo-nos a complexidade de um retrato em que se confundem as personagens (entre si e connosco mesmos).
Homem e animal partilham um nome, Rei dos Gamos, portanto como não haveriam de partilhar um destino?
Destino trágico, claro, para a qual partem os dois com disposição de tornarem mais uma caçada na última caçada.
A sua entrega a tal conclusão é um sacrifício que cada um faz por motivos distintos mas ainda em busca de um retiro com dignidade.
O gamo sacrifica-se porque a sua liderança está ameaçada pelos filhos e pela sua própria velhice. O homem sacrifica-se (como caçador) pela ligação a uma mulher.
Estão ambos confrontados com a mudança essencial da sua própria existência, o fim obrigatório da sua solidão. A sua presente independência
O gamo reinava solitário, olhando de cima mas não se misturando com o seu grupo. O homem vivia sozinho, distante da cidade mas auto-subsistente.
Vão ter de ceder esses postos e decidem, por isso, encararem aquela última caçada, sem medos nem ilusões.
Caem da maneira que acham mais própria, da única maneira que é por sua decisão. É um duelo de um para um e não uma decadência arrastada em comunidade.
O próprio protagonista (humano) diz que é uma disputa que se diferencia da pesca, porque a pesca é uma captura em massa. Só Ahab se distinguiu como pescador de uma presa só (diz ainda o protagonista e acrescentaria eu, também, o Velho).
Todos eles sabiam que a sua solidão só faz sentido quando vai de encontro à solidão do outro e da outra espécie. E levam isso às últimas consequências.
Só que, neste caso, o duelo essencial entre homem e animal é um duelo de natureza humana e natureza animal, cada uma delas confundindo-se entre os dois seres. O duelo interno do ser humano é expresso exteriormente pelo antropomorfismo.
Quem foi mais humano, se o gamo se o caçador, é uma conclusão a que se responde com um "ambos" pois os Reis dos Gamos tombam no final como um só. Aquela era uma vida só, uma vida solitária em busca daquela outra dimensão que se lhe equiparava.
De um lado ou do outro de um cano de espingarda, existe-se, mas apenas de ambos os lados ao mesmo tempo se é. Porque nessa altura é já como se não houvesse ameaça nenhuma. Nessa altura se larga a arma e se parte carregando o próprio peso da existência.
O peso da borboleta? Sim, esse peso com que cada um se esvaece para lá do palpável, embora antes dessa leveza cada um tenha de carregar o peso da vida que lhe está incumbida.
Falta saber quantos conseguirão encontrar a força para avaliar esse primeiro peso.
Sendo apenas o segundo livro de Erri de Luca que leio, este ainda mais pequeno do que o anterior, muito escrevi acerca dele.
Estas poucas páginas foram as que ele precisou para me convencer que é um génio literário. Um escritor de enorme sensibilidade e domínio vibrante das palavras.
O meu duelo agora é com o tempo que ainda terei de ver passar até que possa ler os seus livros mais longos.


O Peso da Borboleta (Erri de Luca)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Abril de 2011
80 páginas

terça-feira, 5 de julho de 2011

Isto é que são piratas!

Sei que A Ilha do Tesouro é um livro muito recomendado para os jovens leitores, mas eu nunca o tinha lido.
Robert Louis Stevenson ocupou a minha juventude com O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde e O Clube dos Suicidas.
Chamem-lhe afinidades electivas ou curiosidade mórbida, mas o primeiro tinha uma capa deliciosa de Jorge Colombo (que só viria a saber quem era anos mais tarde) e o segundo tinha uma capa prometedora e até mesmo tentadora (felizmente nunca cheguei a tentar trespassar nenhum Ás de Espadas com uma faca).
Já agora acrescento que eram, respectivamente, uma edição Relógio d'Água e Vega e que, ao miúdo que eu era, não agradava nada o (outrora) aborrecido estudo de Nabokov sobre o O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde.
Não é que não conheça bem esta história, fosse por a ver na versão realizada pela Disney ou na versão desenhada por Fernando Bento (que depois, em boa hora, lá se lembrou de regressar) - e mais outras tantas versões descobertas com mais idade, até mesmo a passada no futuro, também da Disney e mais interessante do que a fazem parecer.

Tenho de admitir que mesmo essas aproximações não preparam para este livro que é extraordinário e capaz de conquistar até quem preferia que as suas aventuras lhe fossem servidas mais negras.
A aventura é servida em doses intensas e, diria, celebratórias. Se cada pequeno progresso se aproxima da implausabilidade, mais ainda nos fala das grandes possibilidades de conquista que há para quem corre um pequeno risco.
A escrita tem o dom de fazer o que tantos anos depois é a norma do género, identificar-nos com os protagonistas e envolver-nos na acção. Sendo astuta na forma como consegue mudar o ponto de vista para nos colocar em todos os pontos fulcrais da acção, independentemente de quem os viva. Mesmo se é na pele de Jim que nos sentimos melhor, tão enérgicos como aquele miúdo que se arrisca mas que vence.
E, falando de Jim, acima de tudo estão as personagens, deliciosas na sua descrição e reais na sua acção. Jim é daqueles protagonistas miúdos que fazem crescer qualquer leitor mas é Long John Silver que nunca leitor algum deixará de lado.
Como me apetece ser modernaço, vou já dizendo que aqueles que tanto admiram os piratazinhos simpáticos e divertidos que vêm das Caraíbas a cada nova sequela, nunca souberam o que é um pirata astuto e manipulador, de uma perna só e com verdadeiro gosto por rum. Mas também um pirata com um fundo digno de afecto e mais sério do que os seus companheiros.
Felizmente já não sou um desses!

Já agora, uma palavra para a introdução de Miguel Sousa Tavares. A defesa da memorabilidade das personagens de toda a grande literatura, mas acima de tudo deste livro, é legítima (e exacta).
Já aproveitar o texto para, através dessa defesa, lançar mais um ataque na sua luta local pelo que é a "verdadeira literatura" não o é.
Sobretudo porque é um ataque a um conjunto abstracto de escritores que, se formos capazes de extrapolar os seus nome, muitas vezes nem sequer se interessam pelo que ele escreve. E isso é triste de encarar mais do que irritante de ler.



A Ilha do Tesouro (Robert Louis Stevenson)
Clube do Autor
1ª edição - Novembro de 2010
268 páginas