Uma personagem diz, muito cedo no livro, que a história que será contada ao narrador o fará crer em Deus. Visto que o narrador serve de figurante intermediário do próprio leitor, é a este que está a ser dito que a história o fará acreditar em Deus.
Um objectivo demasiado ousado e, certamente, capaz de insuflar expectativas igualmente elevadas num livro vulgar quando nem os livros com expressão religiosa atingem facilmente tal prédica.
Nem sequer é essa exagerada pretensão que tornará o resultado final numa obra desequilibrada e, consequentemente, falhada.
O verdadeiro problema é a maneira como a última parte do livro não responde em conformidade à longa fábula que se leu até aí, por ser demasiado breve e por ser demasiado débil para fazer o contraponto catártico às aventuras de elevação - mais do que superação - humana que Pi vive a bordo do barco.
A fantasia que mistura comportamento animal, desenvoltura humana, entendimento do divino e impossibilidades naturais poderia ser apenas uma fábula inócua. Uma versão (teoricamente) mais adulta - ou em modo de sobrevivência - das lições de descoberta pessoal que já estavam n'O Principezinho.
Poderia não fosse aquela última parte a confrontá-la e a transformar o texto numa representação simbólica da qual se podem começar a tirar ilações, embora não tão determinadas como as sobre Deus que são feitas então.
Não se entende que a componente realista do romance, ao existir, não tenha a mesma dimensão - afectiva e dramática - que tem a componente de imaginação que se esforça por escapar a grilhetas de qualquer tipo.
Pelo contrário, parece que o romance se esquiva a revelar que tem um lado negro dentro de si, como se tal contagiasse indevidamente os leitores, incapazes de compreenderem as "belas lições" do livro por si.
Daí que o protagonista seja unidimensional (numa leitura simpática) ou figura de corpo presente (num tom de crítica ríspida) na sua existência a solo.
Num barco onde só vai ele com um tigre seria impossível que Pi fosse confrontado por algo mais do que os instintos mais primários de sobrevivência, tanto de resistência física como mental, que não conhecia em si próprio.
Seria, por isso, necessário que os seus vários estados de existência chocassem uns com os outros de forma mais decisiva. A sua vida agora apaziguada contra a verdade daquele período que o define, mais do que qualquer outro momento, ou não estaria ele a relatar tal história com a sua vida na Índia e no Canadá - com eventos importantes como a descoberta simultânea de três religiões ou o casamento seguido do nascimento dos filhos, respectivamente - a servirem de meras balizas à vida a bordo do barco.
Falta ao livro a força da interpelação, pois mesmo com os investigadores japoneses a perguntarem pela correspondência daquela estranha ilha da história, não sei se haverá desejo dos leitores de lhe procurarem um significado possivelmente terrível quando o episódio não guarda verdadeiros perigos.
Neste desequilíbrio de partes o livro faz, ao contrário do anúncio inicial e de forma acidental, um retrato do esforço humano na criação, representação e reprovação de Deus. Tarefas importantes para ocupar a mente humano quando se vê obrigada a confrontar a solidão, o medo ou a culpa.
A religião e os seus rituais servem a Pi para ocupar o tempo. O volume da descrição de uma viagem imaginária supera largamente o da descrição seca da realidade. Assim é a mente humana capaz de superar o que conhece para criar algo engrandecido.
O grande trunfo do livro deveria ter sido esta dúvida levantada sobre a possibilidade de a religião, mesmo que pareça manifestar-se em momentos de enorme exigência, ser mais um veículo da capacidade humana para a criação e para o livre-arbítrio.
Se, intencionalmente, o livro trata com placidez crítica a integração possível de todas as religiões numa mesma dimensão de superação da condição humana, deveria ter ido mais longe e celebrá-las como um dos corolários extraordinários da criatividade humana.
Dessa forma o livro teria superado o "quase" e teria feito com que se admirasse o resultado extraordinário da mera condição humana.
A Vida de Pi (Yann Martel)
Editorial Presença
9ª edição - Janeiro de 2011
328 páginas
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