sábado, 31 de dezembro de 2011

As aventuras de um sujeito vulgar através da União Soviética

O humor literário é uma frágil entidade que demasiado analisada perde a sua força. O mistério de como resulta quando certos autores o tentam e com outros não continua a escapar-nos porque está para lá da análise científica da qualidade de escrita ou dos temas escolhidos ou de um punhado de outras razões que se queiram invocar.
O humor resulta sempre para uns e não para outros dos leitores mas o humor que perdura funciona para todos mas para cada um de uma maneira única e indefinível.
Não estou a escrever estes primeiros parágrafos para desculpa uma crítica vaga que parece ter dificuldade em começar a compôr-se como um todo na minha mente.
Estou a escrevê-los porque a hilaridade deste livro não se transmite indirectamente com os efeitos desejados. Bastou tentar recontar um dos meus episódios favoritos que ele guarda e logo ele perdia o humor.
Nada aqui terá o resultado simples de passar o livro para mãos alheias e deixar que a pessoa descubra o episódio que o faz rir.
Para mim foi logo o inicial em que o autor conta a sua infância em que inventa tais histórias que elas começam a gerar-se à sua volta ao mesmo ritmo que ele as cria.
Os percalços dele lembraram-me do que seriam as aventuras de Sawyer e Finn numa URSS de regras apertadas mas com espaço para uma inocente subversão.
A sua vida continua a ser um poço de desventuras, seja destino ou decisão própria que ele se envolva nelas. Os muitos episódios que vive são a fonte do humor revisionista do seu relato e vão da ponta evoluída da União Soviética aos seus recantos mais remotos, tal como esse humor calha a todos, do poder político aos pequenos rebeldes rock Moscovitas.
O potagonista - que facilmente se confunde com o autor - carrega na ironia contra o seu país de origem. Aquele país limitou-o e ainda o enraivece. Mas até as mais duras palavras, quando toca a comédia, têm um fundo de apreço pelo país que também lhe proporcionou a possibilidade tanto de trabalhar em isoladas regiões agrícolas como de fazer o serviço militar num posto qualificado.
Proporcionou oportunidades de vida ou de criação. Essa é a grande dúvida que sobra, se o protagonista nos está a contar a verdade da sua vida ou a falsidade da sua imaginação.
Ele próprio nos avisa de tal possibilidade, mas seja ficção ou biografia o relato da sua vida dá a conhecer um país excepcional e terrível, tão cheio de contradições que é o único cenário possível para todas estas páginas de desastres pessoais.
O retrato de um país que dá lugar a excelentes histórias tão - tão! - difíceis de acreditar que só podem ser verdade - para alguém, mesmo se não quem agora os relata.


Militärmusik (Wladimir Kaminer)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Junho de 2003
160 páginas

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Frankenstein, mais de nome do que de essência

As mais recentes e modernas encarnações do monstro de Frankenstein de que tenho tido conhecimento têm surgido através de banda desenhada (por exemplo, Seven Soldiers of Victory) em que o monstro assume o nome do seu criador e existe ainda incompreendido mas sendo uma mais valia para o mundo.
Aqui a sua existência continua a revelar-se como a de um herói - na medida possível em que um monstro o pode ser - e que agora assume um nome, Deucalião ou não fosse ele o filho do Prometeus moderno.
Victor deixou de rejeitar as suas criações para passar a usá-las como peões para a sua distopia futura em que se assume como ditador de uma obediente raça nova. E o nome que dá às suas criações é meramente funcional, pois mesmo humano - Erika ou Randall - vem seguido de um número que os contabiliza e os deixa saber não serem mais do que um passo intermédio da experiência em curso.
Montado este cenário, Dean Koontz consegue cruzar referências do romance original a elementos de thrillers e neo-noirs de décadas recentes. Pelo caminho acrescenta ainda várias citações ao género em que Frankenstein foi pioneiro, sendo a retransformação de algumas das ideias de Asimov a mais evidente.
Estamos longe da romântica reflexão sobre a Humanidade de Mary Shelley ou a humoradamente subversiva visão da sociedade de James Whale.
Esta é uma trama de acção e mistério a caminho do confronto entre criador e criatura, com as intromissões que pelo caminho se exigem para que o embate não surja demasiado cedo.
No fundo Koontz traçou uma misturada de elementos que resumem várias décadas de elevada criação a um formato mais fácil e atractivo para o público generalista moderno.
Afinal esta é a segunda vida de um projecto televisivo e, sem dúvida alguma, há uma construção que serve a renovação do interesse na trama de curto prazo enquanto a trama maior se desenvolve lentamente.
Nota-se isso mesmo naquela que, desde logo, tem de ser a grande queixa a fazer ao livro: os capítulos curtos que não parecem precisar de estar assim pensados, mesmo sendo esta a a versão livresca de um projecto por episódios.
A história tem de seguir personagens desirmanadas em direcção a um momento de inevitável agregação das suas histórias.
Os eventos policiais que constituem um arco narrativo fechado neste primeiro livro da trilogia são mais interessantes do que são produtivos para a composição das personagens. Pelo menos para as personagens de Deucalião e Victor, que se esperam terem o protagonismo que a sua longuíssima relação de antagonismo exige.
O efeito é cativante, apesar de tudo, sobretudo por culpa de Randall Seis, uma estranha personagem cuja vida interior molda o seu comportamento no exterior do mundo com menos restrições morais e mais foco em elementos que raras vezes preocupam os autores ou até mesmo a vida quotidiana dos leitores.


Frankenstein - O Filho Pródigo (Dean Koontz)
Contraponto
1ª edição - Janeiro de 2011
304 páginas

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Quase... nada

O Quase Romance de Miguel Sousa Tavares é uma quase memória, uma quase reportagem, um quase diário e um quase livro de viagens.
É um livro que não cabe numa categoria não porque extravase os limites da definição de várias delas mas porque é demasiado estreito para satisfazer as exigências de qualquer uma delas.
Falta-lhe uma voz que o comande e que lhe dê forma. Tem como narrador um homem levado pela memória de uma velha foto que lhe cai nas mãos. Mas esse narrador parece determinado em ser preciso sem nunca se deixar levar pela pieguice que o seu relato de terna memória deveria denotar.
Enumera as câmaras que transporta mas quando chega o momento de revelar que através de uma fresta de porta olhou o corpo nú da sua companheira de viagem, o seu grande culminar de emoção é um triste Estava cansado de mais para desviar o olhar.
Pode até ser que a mulher agora relembrada seja merecedora de um livro, não pelo seu corpo mas porque o seu espírito é inolvidável, mas se o narrador lhe olhou o corpo convinha que o tivesse feito por apreço ou porque no meio do deserto a beleza feminina é escassa e o olhar ainda pode ser uma meiga forma de elogio e desejo.
Claro que o deserto é algo que também não existe na sua voz. Não arrisca falar do deserto, dar as impressões pessoais que poderiam soar falhadas mas mereceriam o elogio pela sua ousadia.
A viagem define-se pelos atrasos, pelos quilómetros, pelos enganos. Raramente se define pelo que está à frente dos olhos, por algo mais do que as acções descritas com a minúcia que vinte anos de distância já não deviam permitir.
Só quando ela, Cláudia, fala é que o livro ganha personalidade porque corre riscos.
Claro que a estratégia é das mais fáceis possíveis, visto que ela está morta - morre no final do livro diz o primeiro parágrafo, que é o mesmo que matá-la logo de início - e vem falar-lhe numa forma de wishful thinking que ajuda a completar os espaços em que falha a exactidão do narrador: Mas, depois, veio e deitou-se abraçada a mim. Ou assim me pareceu.
A incerteza dele dura pouco, pois Cláudia só fala por dois capítulos, mas deixa as impressões mais profundas do livro, como ao falar da transformação da ordem em caos quando a tempestade de areia os apanha e dando a conhecer o medo e a beleza que se apreciam sendo fustigados por ela.
A voz dela faz sentir o deserto e dá a conhecer o preço físico da viagem. Os parágrafos que lhe pertencem são, sim, quase um texto por direito próprio. Um conto apenas, talvez, que ficou abafado pela voz dele.
Ele, arrogante, afirma ao início lembrar-se de todos os detalhes para depois duvidar do nome do barco em que embarcou ou - o que deveria ser mais importante - se ela o abraçou ou não.
Ele, irritante, não consegue evitar acrescentar informação redundante para o leitor atento, até no detalhe da inexistência do Euro quando já tinha vincado que a viagem começara em 1987.
Ele, coitado, não tem voz e deveria deixá-la falar a ela o tempo todo, mesmo que Cláudia já só possa falar porque ele lhe imaginava uma voz.


No teu deserto (Miguel Sousa Tavares)
Oficina do Livro
1ª edição - Julho de 2009
128 páginas

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O absurdo caso português

Este livro trata de uma operação militar secreta exectuada pelos ingleses contra barcos alemães em território português e de todos os malabarismos judiciais e diplomáticos que vieram depois para resolver - de forma pouco ortodoxa e bastante atabalhoada - os problemas que daí advieram.
Há um ridículo que atravessa todo o caso, sobretudo no comportamento português, que é inacreditável para o leitor que agora descobre o que se passou.
A atitude do governo português da altura, afirmando até ao fim a versão que todos já sabiam ser falsa, só podia mesmo resultar porque os interesses que a II Guerra Mundial obrigava a manter em equilíbrio calavam (quase) toda a indignação alheia.
A desinformação inglesa contribuiu igualmente com alguns excelentes episódios, o melhor deles todos a criação de um mito popular que tornava um fracasso num sucesso por via de um livro e depois de um filme: The Sea Wolves.
Quem se lembrar do filme sabe que este tem uma história de espionagem muito pouco sólida, com tendência para emular os feitos românticos de James Bond e adicionar humor fora de tom aos diálogos dos três protagonistas. Com O Espião Alemão em Goa ficamos a saber porque assim é e, mais ainda, ficamos a saber que mesmo após 30 anos o orgulho inglês não passou sem embelezar a realidade com as presenças de Gregory Peck, Roger Moore e David Niven.
A excelente investigação de José António Barreiros parece até estupidamente fácil e evidente em certos momentos para que perdure tal mito britânico.
O autor diz na apresentação a esta segunda edição do livro que se trata de uma história real contada como se fosse uma história de ficção.
Não concordo com ele porque o seu estilo tem mais precisão do que fluidez, mas entendo que as suas palavras sublinham o grau de espanto que merece toda a conjuntura que ele descreve.
Há alguns capítulos em que a ironia do autor vem ao de cima, em que o absurdo é de tal ordem que nem o mais pragmático dos autores conseguiria relatar o caso sem deixar transparecer alguma emoção própria. Mas ao longo da maioria do livro é com exactidão autoral que Barreiros conta o que tirou da sua investigação.
O contexto absolutamente correcto para o qual nos transporta merece ser elogiado, mas a verdade é que para ler o livro de forma fluida é necessário aprender a seleccionar intuitivamente as notas de rodapé que devem ser lidas ou deixadas para uma leitura tardia em conjunto com os anexos.
Nem que seja por um motivo de identidade (quiçá, responsabilidade) patriótica - até mesmo para aguçar o sentido auto-crítico - vale a pena ler o livro e entender o contexto do que foi o affaire português com ambos os lados da Guerra por debaixo dos lençóis da neutralidade.


O Espião Alemão em Goa (José António Barreiros)
Oficina do Livro
1ª edição - Novembro de 2011
192 páginas

domingo, 18 de dezembro de 2011

Uma companhia para Allan Poe

Louis Bayard consegue, em três capítulos, construir uma personagem forte que mereceria o epíteto de detective privado a par dos maiores da literatura.
O leitor está praticamente conquistado e ainda nem há sombra de Edgar Allan Poe, possivelmente o factor de maior atracção para este livro.
Augustus Landor - Gus Landor como nome de guerra - é um polícia reformado chamado a West Point para investigar a profanação de um cadáver e o seu primeiro acto é a imposição da sua autoridade (ainda que civil) à chefia militar perguntando-lhes se querem que descubra quem matou o cadete ou quem roubou o coração ao cadáver.
Em sentido contrário, os militares apenas conseguem pedir a Landor que pare de beber com a regular obstinação que o caracteriza até que a investigação termine.
Fica claro que Landor tem as características que fazem um detective interessante de acompenhar na sua investigação, embora se isso serve para resolver o caso seja obviamente a incógnita que adoramos que acompanhe o próprio mistério do crime.
O recruta que ele escolherá para o ajudar é Poe, outra figura que levanta mais dúvidas do certezas.
A dupla entende-se mas raramente consegue avançar no caso. Dedicam-se a debater temas variados e profundos, bebem em conjunto e alvitram hipóteses sobre quem serão os envolvidos. Mas conclusões que possam transmitir aos líderes não as têm.
Isto também porque se acumulam as alturas em que os dois parecem esquecidos do caso, entretidos na sua camaradagem.
Até pode ser que isso se revele um pouco frustrante visto que há um espesso mistério sobre o qual queremos saber mais, mas acompanhar a relação dos dois e desvendar a paralela evolução do imberbe homem que ainda é um Poe que já vamos reconhecendo como a figura literária que ficou para a História e do peculiar Landor que está longe de viver à imagem de "bicho do mato" que criou para si.
Torna-se complicado, depois do foco se virar para a relação dos dois, ficar satisfeito com a resolução do livro. Não falo da surpresa final que até se coaduna bem com os desvios feitos à investigação, mas dos eventos que ainda antes disso proporcionam uma razão para o coração ter sido retirado ao cadáver.
Ainda que seja um pedaço de narrativa no espírito de algumas das histórias de Allan Poe, não deixa de ser um exagero pouco ligado ao que foi construído antes.
Não estraga o romance até porque o que mais interessante que ele consegue é a imersão do leitor no estilo da literatura da altura em que ele decorre.
O registo narrativo é próprio de alguns dos primeiros policiais, directamente dirigido ao leitor como se tivesse sido dado à estampa num jornal e com um texto lúcido que parece vir de um afastamento intelectual do caso em que o narrador se viu envolvido.
Este é interrompido amiúde pela transcrição dos relatórios de Poe, num estilo que imita com talento - e até cita - aquele que associamos ao homem que foi, também, um dos criadores do policial moderno.


Os Olhos de Allan Poe (Louis Bayard)
Saída de Emergência
1ª edição - Abril de 2011
416 páginas

domingo, 11 de dezembro de 2011

Um avô contando histórias

Este é o terceiro livro de Luis Sepúlveda que leio desde que iniciei este blogue e, assim de memória, serão pelo menos outros tantos que havia lido antes.
Não se trata de um autor que ache bom o suficiente para estar sempre a regressar a ele, até porque apenas por uma vez - com Diário de um Killer Sentimental - ele esteve próximo de deixar uma marca permanente na minha existência de leitor.
Mas é um escritor com um uso agradável das palavras e livros de leitura breve que se encaixam bem de permeio com duas outras quaisquer leituras. É, se tal classificação existisse, um escritor de meio da tabela que não surpreende positiva ou negativamente perante as expectativas geradas.
O que é o que volta a acontecer com este livro, embora pela primeira vez me tenha sentido cansado de ler as histórias do autor - apesar de não ocuparem mais do que uma mão cheia de páginas.
Como no seu último livro que li, Histórias daqui e dali, Sepúlveda usa seu melhor estilo de contador (oral) de histórias.
Há mesmo uma revelação de que é essa a sua forma de se atirar a estes pequenos relatos quando abre uma das suas histórias dizendo que é a favorita dos seus netos.
Não há nada de mal nisso, aliás era o forte do livro anterior que me passou pelas mãos. Mas o livro anterior tinha uma capacidade de sedução que este parece ter perdido.
Trata-se das histórias contadas que deixaram de ser exóticas com uma base emocional com que nos podemos identificar. Passaram antes a ser histórias muito mais chegadas ao próprio escritor, em grande parte dedicadas a pessoas que conhece ou admira e a situações que viveu.
Por isso é necessário gostar do homem para se gostar do que nos conta. É preciso ter-se sentimentos fortes por ele para se admirar os nobres sentimentos que ele quer transmitir.
Estes pedaços de realidade que ele vai trazendo à baila não são admiráveis pedaços de literatura, são apenas memórias simpáticas em que ele passou a ser personagem.
Verdade que ele viveu muito - ou, pelo menos, viajou muito e cruzou-se com muitas pessoas inusitadas - mas isto já são as histórias que um "simpático velhote" tem para legar a uma família que o recorde como figura tutelar, uma lenda para gerações que estão por vir.
Se os leitores fazem já parte dessa família é uma questão que estará por responder. Desconfio que as vendas do livro dirão "Sim" a isso, mas também sinto que Luis Sepúlveda presumiu demais ao tomar os leitores como mais dos seus netos.


As Rosas de Atacama (Luis Sepúlveda)
Porto Editora
1ª edição - Outubro de 2011
144 páginas

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Desconfiança em que confiar

Todos os leitores têm uma desconfiança própria para com alguns livros, aquilo a que se chamará preconceito e que sinto que aumenta tanto com o número e a variedade de livros que se lê. Mas que também aumenta com o exercício crítico sucessivamente realizado.
Essa minha desconfiança activou-se para com este livro quando já era tarde demais. Activou-se perante o título a que só dei a devida atenção já na página de rosto onde as reticências deixam de ser um pormenor que a mente tende a ignorar quando na capa estão em jogo os efeitos de cor.
Não tenho estatística que me apoie, mas não me recordo de título algum - ou título algum relevante - que faça uso de reticências.
O título do livro é o local onde tal marca de pontuação não faz falta. O mistério do que fica por dizer no título é, naturalmente, tudo o que vem depois dele mas que o terá originado.
Usar reticências no final do título do livro é abusar de um estilo que não tem razão de ser e que, por isso, gera a forte desconfiança de que vim falando.
A desconfiança, neste caso, mostra-se certeira e justa. Tal como no título, por todo o livro o abuso de um estilo inconstante e capaz de impressionar apenas os ingénuos. Trata-se do barroco do bacoco, se ninguém levar a mal que também eu jogue com as palavras.
A autora não atenua esse estilo em parte alguma do livro. Não evita duplicar as metáforas quando uma era suficiente. Não evita buscar um vocábulo menos lembrado para engalanar os seus parágrafos quando a banalidade do sinónimo mais comum lhe assentava melhor. Não evita qualquer adjectivo que a inspiração do momento lhe tenha sugerido quando a releitura mostra que é insensata a sua presença.
O estilo assim tão extravagante até seria útil em certas passagens que confessamente são delírios do protagonista, mas como permanente exercício de memória parece forçado, sobretudo nos tempos dedicados à assimilação da vida na pacata e simples aldeia tão tipicamente portuguesa.
Uma aldeia que até é a fonte das duas melhores ideias do livros, historietas de maldade (o pequeno delinquente que se impõe como tirano) e mitos (os fantasmas que percorrem encruzilhadas na estrada) que manietam as pessoas enquanto agigantam os espaços esquecidos na imagem global de um país.
O resto do livro é um thriller como desculpa para o exercício de linguagem que martela sempre a mesma nota.
Como vinha escrevendo, há passagens que precisavam de ser mortiças na linguagem, soar mesmo banais e corriqueiras. Porque não o fazendo, não matizando a memória do protagonista, a autora revela pela própria falta de surpresa as intenções perversas com que joga o entendimento do leitor.
Qualquer leitor experimentado lhe diria que a manipulação narrativa não se joga assim - sobretudo, assim tão tardiamente.
Desconfia o leitor porque o texto está a ser demasiado indiferente (como desconfiaria se estivesse a ser demasiado intencional) e fica mais alerta, tornando a surpresa em mera confirmação (da desconfiança, pois claro).
Entre a desconfiança a abrir e a desconfiança a fechar, está o miolo da confirmação de um livro falhado.


Na Senda da Memória... (Sónia Cravo)
Esfera do Caos
1ª edição - Setembro de 2011
160 páginas

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Para uma degustação moderada

Os leitores que gostam de vinho vão dar por si a sentir na saliva que as suas glândulas produzem o sabor dos vinhos sobre os quais vão lendo, tentando preservar na boca o néctar que as palavras recordam.
Este é um livro para esses leitores, que já chegam com o paladar aguçado e para quem um vinho nunca termina com a garrafa vazia ao fim do jantar.
Dando atenção à História dos vinhos, mas aproveitando algumas histórias dos vinhos pelo meio, João Barbosa faz a sua declaração de amor ao néctar retribuindo com um documento permanente o prazer momentâneo que cada garrafa lhe traz. Uma arte em nome de outra.
Nota-se que o objectivo é mais documental do que lúdico, nem que seja pela minúcia de incluir declarações de alguns entrevistados que sabem ainda mais do que o autor e que ele bem fez em partilhar com todos.
Daí resulta uma certa seriedade a que nem mesmo os faits divers conseguem fugir quando pediam uma pena mais solta para se escapar em direcção ao tom mais humorístico que os episódios menos abonatórios mereciam.
Digo eu, sem ser um especialista, que a realização de um vinho é uma arte merecedora de toda a dignidade, mas sendo uma arte do prazer também não lhe fica mal passar pela lama uma ou outra vez.
Queixo-me por ter ficado mal habituado e esperar que estas histórias - que também fazem História de um Portugal que, neste campo, se ergue acima de muitos outros países - fossem mais saborosas e menos detalhadas.
Quando abrisse a próxima garrafa de um destes vinhos queria que o seu primeiro travo viesse acompanhado da memória das pequenas loucuras que não podem ser engarrafadas mas são indispensáveis ao sabor daquele vinho. A informação precisa serve melhor a consulta bibliográfica do que a degustação permanente ou o fácil relato aos convivas.
Parece-me justo dizer, dado que os breves relatos deste livro me foram acompanhando divididos por várias noites , que  vale mais a prova moderada para que os efeitos nocivos da acumulação sejam menos evidentes.
As histórias de João Barbosa acabam por recordar o sermão de um avó aos seus netos demasiado novos tentando passar-lhes a noção do peso da família. E o que se queria mesmo era que se parecessem com aquelas partilhas que entrosam avô e neto revelando os momentos menos compostos do primeiro... possivelmente de volta do primeiro copo de vinho que o jovem prova na sua vida!


Grande Reserva (João Barbosa)
Oficina do Livro
1ª edição - Setembro de 2011
236 páginas

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Escrever apesar da realidade

Talvez seja mera coincidência, mas para o leitor que casualmente faz o seu balanço de leituras é uma facto a assinalar que dois livros com origem nas Letras Espanholas acabem por reflectir sobre a linha que une a realidade e a ficção de um escritor.
No caso de O Dois Amigos tratava-se do avanço da vida ao ponto em que se torna indissociável do processo de escrita e, como consequência, a narrativa de feitura do livro entrelaça-se com a narrativa (re)criada.
No caso deste Verão trata-se do seu oposto prático, versando sobre um escritor que mexe com a narrativa da realidade para que tal desvende a narrativa que depois escreverá.
Se aqui o livro vem apenas depois, quando a realidade já está influenciada, não deixa de ser talvez mais acentuado o grau de abstracção em que vive o escritor.
A atitude do escritor aqui passa por escrever um "romance na realidade", ou seja, por lançar na vida de outros as bases do que poderáser um desenvolvimento romanesco que ele possa relatar assim fugindo ao bloqueio que o aflige.
O seu método de eleição é o envio de cartas em nome de uma figura há muito desaparecida do convívio do seu grupo de amigos.
Ele lança essa pedrada na existência pacífica do seu grupo de amigos porque só nele se encontra em posição privilegiada para obter a informação sobre progressos que ficariam escondidos se (como no primeiro teste que fez com o esquema) as pessoas usadas como peões fossem estranhos.
A total desconsideração pelos sentimentos alheios mede-se pela utilidade com que ele os vê, importantes no seu foro afectivo mas sacrifícios válidos ao que é, no final, o seu único estro e a única existência a que deve a sua lealdade: a escrita.
Aliás, esse jogo de moldagem é de tal forma egocêntrico e submisso que falha em ver as hipóteses de falha que todo o plano tem.
Crendo que todo o desenlace se revelará sempre, não espera que haja independência e privacidade. Para ele a realidade é já o seu cenário e os seus companheiros são as suas personagens.
Muito menos mede consequências que se concretizam sempre que o passado mexe com a construção pacífica que as pessoas fazem do seu passado para desembocar num presente satisfatório (no mínimo).
O acto de escrever como pulsão maníaca mas de uma falsa elevação racional torna-se aqui catalisador dos dramas reais. Porque a narrativa da realidade não se entrelaçou na narrativa ficcional, antes acabou perturbada por esta última.
Será injusto centrar toda a crítica em tal tema - de uma brilhante invenção ainda que nem sempre com uma concretização condizente - quando o autor tratou de construir um retrato de grupo que reflecte no preenchimento dos espaços em branco do passado privado e do Passado Histórico.
Um preenchimento que também se serve de formas de ficção pois, afinal, todas os pequenos apaziguamentos de consciência começados por Ele deve estar... são irrealidades confortáveis que transformam o entendimento da realidade sem dar conta das suas eventuais consequências.
Por esse método, mesmo se não tão descaradamente, todos os membros do grupo são em parte como o escritor no seu seio.
Só que, a fechar o romance, Manuel Rico lança a pista de um exercício de metalinguagem total que lança pistas para uma culpa do próprio leitor e das suas exigências também egocêntricas feitas ao autor para que este forneça novos temas e melhores ideias.
As pistas denunciam também que este pode ser, eventualmente, um exercício verídico até certo grau e a mera hipótese de tal é suficiente para reforçar o efeito sobre o leitor que sai com medo do seu papel nos desígnios a que o escritor submeteu as suas personagens... os seus amigos?


Verão (Manuel Rico)
Minotauro/Edições 70
1ª edição - Fevereiro de 2011
304 páginas

domingo, 27 de novembro de 2011

Uma vida a preservar

Esta é a história de um pequeno árabe nascido da tragédia, habitante da realidade mais inóspita que um país civilizado tem para mostrar.
Um rapaz que, mesmo assim, vive demonstrando todas as melhores qualidades que um ser humano pode possuir.
Dignidade, fidelidade, coragem, perseverância. Todas nascidas dentro de si e não transformadas pelo mundo, mostrando que até um rapaz mal nascido pode ter direito a um ambiente propício.
Propício para ele e não para a sociedade, visto que é uma velha prostituta judia que o alberga a troco de dinheiro. Mas o que ela lhe incute e o que ele aprende a sentir por ela tem uma elevação que poucas vezes uma educação institucional consegue transmitir.
Ele relata a sua vida a alguém que, descobrimos bastante tarde, pertence à “pequena burguesia”, uma classe priveligiada que acaba por se comparar muito ao próprio leitor, que certamente sempre viveu em condições melhores do que aquelas relatadas (ou nem teria acesso a livros).
O relato revela um olhar casualmente profundo sobre a vida, com tanto a ensinar que se torna difícil esconder as emoções fortes que gera.
O que ele tem para contar da vida que nos causaria pena e das pessoas que nos causariam asco está repleto de uma combinação surpreendente de sabedoria e ternura!
Uma bondosa sabedoria que lhe nasce dessa conjugação de aparência impossível entre os poucos anos de existência e os muitos sofrimentos de vida. Que nasce de ser uma criança quem vive o pior que a Humanidade e a Natureza guardam para o ser humano e, com isso, encarar, pensar e falar da realidade com uma honestidade desarmante e incensurável.
O olhar é puro e o seu desconhecimento da aprendizagem social faz dele um entendido profundo da entida
Sendo criança, é também o seu apanágio o amor incondicional pela figura materna que lhe coube em destino. Apanágio que na idade adulta rapidamente se perderia, substituído por um triste desprezo cínico que não sabe separar as circunstâncias externas da essência das relações criadas.
Pelos olhos dele a velha prostituta torna-se para nós numa admirável figura que todos deveríamos ser capazes de amar como o pequeno árabe que até teria razões graves para se apartar dela.
Todo o relato é uma biografia que tenta mostrar àqueles privilegiados que o podem acolher para o futuro como ele lhes chega e, também, persuadi-los de que merece um pedaço de boa sorte na vida.
Mas o seu efeito mais convincente e, até, devastador para as visões mais pedantes e imutáveis sobre a vida é o de que deve ser preservado o seu estado de alma que venceu sobre todas as adversidades vale mais para o futuro - para a vida de todos à sua volta - do que o conforto financeiro.
Romain Gary usou para o relato uma linguagem perfeitamente apropriada à personagem que a usa e que, pela sua origem comum e pela sua falta de educação, deveria estar empobrecida.
O contrário é que é verdade, com um uso tão original e inteligente das limitações que a Língua Francesa (entrevista por via da tradução, claro) que lhe dá uma expressividade comparável à de qualquer uso eloquente da vastidão linguística.
Mais ainda, abre várias perspectivas de uso da língua, de criação de hábitos e recursos no seio da mesma, de manipulação orgânica que a torna mais sentida e mais vivida - assim adicionando à capacidade tocante do discurso.
Talvez a comparação roce o exagero, mas tão virtuoso e expressivo uso da Língua pode situar-se lado a lado com a inventividade com que Anthony Burgess dotou a sua distopia.
Assim caminho para a inevitável conclusão: tanto quanto é comovente, este é um livro fascinante. Um trabalho de filigrana literária inesquecível que deveria ser reapresentado a cada nova geração.
Não vou ceder à tentação fácil de iniciar uma ordenação das leituras que preencheram os últimos meses. Vou antes dizer que se há um livro que me apetece comprar em molhada de forma a transportar sempre um exemplar comigo sabendo que teria facilidade no gesto de o distribuir tanto a um velho amigo como a um conhecido de ocasião.
Estou em crer que não se dever permitir a nenhum leitor que regresse a casa sem Uma vida à sua frente.


Uma vida à sua frente (Romain Gary como Émile Ajar)
Sextante Editora
1ª edição - Janeiro de 2011
184 páginas

domingo, 20 de novembro de 2011

A viagem e a fuga

Uma mesma personagem para três viagens em que se alteram cenários, idades e acompanhantes, mas onde a evidência  esencial se mantém: o viajante não é realmente capaz de viajar.
Viajar como o acto de se mudar do seu conforto próprio, do sedentarismo existencial que lhe conforta a vida, mas também a manieta.
Ele parte sozinho mas o seu primeiro destino é sempre ao encontro de pares viajantes que preencham o vazio da realidade que assola Damon.
Ele quer construir relações como não consegue manter na vida quotidiana. Quando em movimento obrigatório por um mesmo caminho, Damon quer acreditar que essa condicionante, umas vezes casual, outras forçada, chega para gerar uma verdade emocional entre ele próprio e de quem força o força a dele ser dependente ("O Seguidor"), de quem lhe propõe um futuro emocional para lá da viagem  ("O Amante") ou de quem a ele se agarra egoisticamente ("O Guardião").
A sua falta da inata compreensão que num regime de viagem, contra a imensa possibilidade geográfica que tem pela frente está a estreita possibilidade de relação humana.
Confinado a essas relações que, pelo contexto, são mais intensas e mais perecíveis do que num ambiente normal, ele vive uma ilusão que se desmorona sempre numa solidão que retorna sem excepção.
Cada uma das viagens fica por concluir porque cada uma das relações é abandonada a meio. Damon não se deixa submeter, não se permite prolongar um vínculo, nem se torna numa figura confiável.
Todos esses papéis que, experenciados por ordem, seriam sintomáticos de um amadurecimento acabam por ser estágios experimentais a que Damon só acede por os saber breves. E mesmo condenados a terminarem rapidamente, ele foge deles mais cedo.
Não fossem por esses períodos de viagem e nem se saberia que Damon testa uma condição humana para si mesmo.
Sente-se que, entre viagens, não haveria realmente nada a contar. As páginas vazias estão assim porque nada haveria para as preencher.
Só em viagem parece que Damon se consubstancia, preenchendo a quota de relações humanas que, naturalmente, deseja de tempos a tempos mas que, também naturalmente, é incapaz de acolher em si.
A solidão é o seu destino, um destino escolhido. Afinal, Damon não suporta as outras pessoas. Nem que o moldem, nem que o queiram, nem que o enraizem.
Senão veja-se como situações que para outras pessoas seriam marcas inesquecíveis (de culpa, provavelmente) - o abandono de um companheiro no meio de um país desconhecido, o abdicar da possibilidade de um amor e a longa tutela de uma amiga suicida no hospital - se mostram como memórias difusas, prestes a partirem para sempre.
O relato que Damon faz das suas três viagens está sempre mesclado - num jogo difícil mas muito bem concretizado - entre as primeira e terceira pessoas.
Assim se torna evidente o quanto o distanciamento dos anos, senão apenas da própria forma de vida que Damon escolheu para si, tornaram a figura que esteve nessas viagens uma outra que a figura actual reconhece apenas como um narrador distante.
Um narrador que cede, por vezes, a uma emoção ou um apontamento que com ele ficou, que ainda reconhece como seu e não como o de uma criação sua. Aí a sua voz lhe foge para o "eu" em vez do "ele".
Porque, mesmo as experiências de que se foge deixam sequelas na realidade pessoal, confirmando que conseguiu preencher-se do Sentir nas viagens que efectuou, o que lhe dá o poder de se satisfazer com o ressentir na sua vida afastada dos caminhos.


Um quarto desconhecido (Damon Galgut)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Maio de 2011
240 páginas

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Implausível

Começo a crítica por um detalhe que será indiferente para o conteúdo do livro mas que raramente o é para os leitores.
Trata-se da capa e aquilo que sobre ela direi será, provavalmente, contestado pela maioria dos leitores cuja opinião favorece este livro.
A capa é demasiado sugestiva do universo do "romance feminino" que tem padronizado a abordagem do design de tais edições.
Só a um segundo e mais atento olhar é que se reconhece a intenção de usar as cores para definir um universo de terror com o cenário a esbater-se para o sépia e o vermelho (que deveria ser menos vivo e mais vermelho-sangue) em evidência.
A degenerescência da capa - com um estilo de letra que acresce ao efeito perverso de vender um implícito romance - é grave porque não se aproxima do teor negro da abordagem a lendas antigas e crimes modernos.

Falando agora do livro, admito sem delonga que está bem escrito, que se lê com desenvoltura e que tem uma história que, no seu todo, é muito sedutora.
No entanto isso sente-se se nos deixarmos entrar na leitura sem atender à sua execução. Suponho que se trata de aceitar aquilo que há quem apelide de "entretenimento com o cérebro à porta".
Ou seja, estou a fazer estes primeiros e positivos comentários ao livro olhando para ele de maneira distante e benévola.
Aquilo que se passou durante a leitura do livro foi muito diferente dessa sensação de imersão num universo alheio.
Tanto a questão da plausabilidade como a da mera construção do livro estão sempre a vir ao de cima, a fazer-se notar pelos piores motivos.
Há bastante que se podia apontar nesses dois campos, mas acho que a peça central do livro - a história de três irmãs mantidas prisioneiras - serve melhor que o restante para exemplificar o que afirmo.
As suas histórias são reveladas a um anti-herói, carteiro que acha um envelope esquecido contendo um diário.
O diário pertence a uma dessas irmãs que o escreve no escuro, esfomeada e envenenada. Ainda assim ela consegue reproduzir com minúcia todas as palavras ditas pelo Jim do título muitos meses antes.
Seria de esperar que, em tais condições e com apenas alguns minutos antes que a sua carcereira volte, essa irmã resumisse os factos, confundisse detalhes, deixasse palavras pouco perceptíveis.
Pelo contrário, é um relato eloquente e aperfeiçoado de acontecimentos que uma pessoa lembraria mal mesmo num dia relaxado. Com a agravante de ser escrito num estilo que se dirige directamente a um leitor.
O artifício é tão evidente e tão despropositado que é difícil não sentir incómodo. E é mesmo impossível ceder a consciência que dele temos a partir daí.
Esse diário não termina sem um erro maior de lógica. Uma das últimas frases escritas é a reprodução da frase que esta rapariga presa dirige à irmã que está a alguns metros. Uma frase que a pretende acalmar enquanto faz saber o motivo pelo qual o diário vai ser interrompido: a carcereira aproxima-se.
Este truque é tão velho e falhado que a ironia de que ele merece ser alvo pode ser encontrada na cena sobre o Castelo de Arrrggghhh no filme Monty Python and the Holy Grail.
Essa irmã presa na mesma sala daquela que escreveu o primeiro diário também escreveu o seu, mostrando quão grande é a sorte de haver cadernos e lápis suficientes para todas.
O diário desta segunda irmã acabou molhado, mas felizmente só as primeiras páginas se tornaram ilegíveis. Aquelas que repetiam informação do primeiro diário, claro está. E apenas essas!
Mesmo querendo aceitar que a repetição de informação pode ser um aborrecimento para o leitor, não conseguiria ultrapassar o facto de as duas irmãs escreverem exactamente da mesma forma. Não me referido apenas a escreverem como se estivessem envolvidas numa interlocução, mas também ao facto de não haver um único traço distinto entre as "vozes" de ambas. Apenas se dá o caso de uma escrever sobre a fase da história em que ainda havia ingenuidade e amor e outra sobre a fase em que a raiva era dominante.
Falta ainda uma terceira irmã, que estava presa noutra zona da casa, mas que também encontrou papel e lápis para escrever um diário.
Esse diário já não temos direito a ler. O livro termina com o surgimento físico desse diário e com ele deixa um vazio.
Um vazio no espaço de uma das personagens - que até viveu o momento mais tenebroso da história; que até sobreviveu - que deveria ter algo a contar.
Um vazio na satisfação do leitor que esperaria, pelo menos, que as três irmãs tivessem o mesmo valor para o desenvolvimento da história e não fossem apenas um desdobramento para que não houvesse uma única mulher a suportar todos os acontecimentos.
Tudo isto levou a que a leitura se assemelhasse a um olhar constante para as costuras desfeitas de uma história.
Um livro feito de algumas boas microestruturas ligadas por uma conveniência macroestrutural facilista e pouco ponderada.
Tendo, ainda para mais, descoberto que o autor conseguiu que Howard Chaykin (um autor de banda desenhada que aprecio) lhe desenhasse esta magnífica tradução das últimas palavras do livro, sinto-me ainda mais defraudado por esta história - e pela capa, já agora.



Darling Jim (Christian Mørk)
Editorial Presença
1ª edição - Outubro de 2011
318 páginas

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Instantes de progressão

Uma abordagem a Israel Sketchbook poderá parecer estranho no seio deste blogue, masnão deixa de ser um caso em que uma narrativa se constrói.
A sequência imagética esparsa e pessoal ganha sentido por via das palavras do autor que ajudam a entrar nos interstícios que levam o autor do ponto de vista para um desenho ao seguinte ou que nos elucidam do papel que cada local ou pessoa representado teve na viagem.
Mas há também - talvez mais correcto fosse dizer sobretudo- uma narrativa num sentido mais global e numa interpretação mais lata do que é o domínio ficcional.
O livro parece um percurso longo através das várias zonas visitadas por Ricardo Cabral, sentido pessoalmente por ele através do desenho.
Só que o próprio autor explica que, apesar de o livro parecer uno, trata-se de um trabalho de três viagens distintas que ele terá trabalhado numa linha contínua.
Tanto quanto sabemos Ricardo Cabral terá agrupado, não só, locais visitados em viagens diferentes mas desenhos do mesmo local feitos em momentos distantes entre si. Isso é, possivelmente, sinal de um autor.
Encontrada a sua coerência interna, o seu trabalho faseado não se torna num compósito, torna-se numa obra.
Os traços de autor que se encontram passam, primeiro que tudo, pela importância que o próprio desenho tem por contraste com um livro similar feito a partir de fotografias.
A mistura de visões assombrosas dos montes da Galileia com detalhes tão corriqueiros como a mesa do pequeno-almoço tomado em Safed ou a garrafa de cerveja que comprou mostram que a transmissão da experiência está a um nível de interesse muito pessoal - como era intenção - que não resiste também ao próprio desafio que desenhar exerce sobre o autor.
Essa mistura entre o extraordinário e o banal não imita, no entanto, o tipo de registo de viagem que qualquer pessoa faz por estes dias com uma máquina digital, registando insistentemente todos os momentos sem filtro lógico ou de gosto. Há um fio condutor que nos permite vaguear como o próprio autor e que evita o cansaço de uma recolha sistemática apenas dos locais mais belos. Há uma vivência quase comunal da experiência do acto privado desta viagem.
Apesar disto, a verdade é que o método de trabalho de Ricardo Cabral combina o desenho com a fotografia, usando ele estas últimas para pintar os desenhos que executou. Esse elemento de apoio é essencial, ainda que nao precisemos de o conhecer para fazer comparações.
As cores que de lá retira dão um realismo às imagens que tornam o ambiente mais compreensível mas que não apagam a verdadeira pessoalidade do autor e do seu desenho feito de linhas nem sempre perfeitas ou de uma perspectiva ligeiramente enviesada.
Desenho através do qual ele volta a tornar-se criador - e não copista - da realidade em redor, acrescentando elementos essenciais do espaço em volta mesmo se não visíveis no ponto onde está (ver, em específico as páginas 124-125) ou reproduzindo num único desenho três momentos distintos do movimento de uma única rapariga que ali brinca.
Pelo desenho Ricardo Cabral reinventa tempo e espaço como o quis ver e não como o viu, de facto.


O penúltimo desenho de Israel Sketchbook é um indicativo do que viria depois em NewBorn - 10 Dias no Kosovo.
O autor tornou-se menos preocupado em ser um completista do desenho e da cor para se preocupar mais com a representação do movimento da própria vida.
Como nesse penúltimo desenho em que as muitas representações das pessoas que circulam se vão sobrepondo à representação do cenário, aqui o próprio acto de desenhar torna-se essencial na página.
Mais do que isso, o movimento que se sente vem do próprio acto de desenhar estar patente na representação da experiência da viagem.
Os traços deixados a lápis em torno dos elementos pintados dão conta de qual o verdadeiro foco de atenção do desenhador e de qual o espaço que só é essencial para que o desenho não fique a pender no vazio.
Há mesmo um desenho (páginas 48-49) em que estamos perante a representação das páginas de um caderno em que a mão do autor vai traçando esboços das pessoas que passam.
Aí se concretiza uma espécie de visão metalinguística do desenho sobre a sua execução.
Mais adiante (páginas 116-117), quatro desenhos do mesmo local vão gradualmente enchendo-se de cor a partir de um único ponto.
Percebe-se mais fortemente como a execução do desenho reforça a visão (ou eventualmente o imaginário, não podemos ter a certeza) de autor. Esse crescendo de cor transmite as emoções que Ricardo Cabral projectou para a sua observação.
Como ele viu é inteligível na página de forma cada vez mais precisa numa forma de expressão que supera o que foi meramente visto para reentrar no campo da recriação.
Neste livro há mais sequências de quatro painéis em que o ponto de vista é sempre o mesmo mas as pessoas mudam. Talvez nenhuma seja tão intensa quanto a acima referida, mas todas dão a noção clara de passagem do tempo.
Esse é outro elemento importante para o entendimento do que se passa até à existência final de um desenho na página.
Um desenho demora tempo mas nem todos os elementos são imutáveis. Daí que o desenhador não se satisfaça com uma única captação do que viu.
Essa ideia está patente desde o início de Israel Sketchbook na forma como a coloração vem devolver o instantâneo ao que não o é. A fotografia que serve de apoio e, no final, dá cor a cada desenho acaba por ser um dos momentos que ocorrem enquanto o desenhador leva o seu tempo a traçar a realidade.
A fotografia estacou o movimento que o desenho consegue reproduzir. O instante ajuda a complementar a mobilidade da vida.
Esta ideia concretiza-se na forma como Ricardo Cabral termina os seus desenhos dentro de automóveis usando para o mundo exterior a própria fotografia que tirou. No movimento do carro os elementos que permanecem são evidentes (e evidenciados pelo desenho) mas os muitos elemento que mudam acabam por ser resumidos no acaso de uma placa de auto-estrada que nada diz do que veio antes ou depois.
Como no sentido inverso, aqueles que são provavelmente os melhores desenhos deste conjunto, nascem a partir de fotografias porque o desenho era impossível naquele momento. Aí a imagem é muito mais demorada e detalhada, mas é a cor que os afasta do fotorrealismo, sublinhando que o desenho não pretende apenas imitar ou substituir a fotografia.
Mas é ao ver-se o desenho deixado totalmente por pintar (páginas 28-29) que se vê a aglutinação de tudo que ficou escrito acima (mesmo na ausência de cor).
Um homem em três posições/momentos distintos dentro do mesmo desenho permanece por colorir porque o objecto do desenho interferiu com este e não se terá permitido ser fotogrado para que, através desse único instante, servisse a captação do tempo que ele próprio já influenciara.
O movimento torna-se desenho e torna-se mutação do desenho.


Depois das sequências de panéis de NewBorn - 10 Dias no Kosovo tornava-se evidente que a própria ideia da narração banda desenhística já nascia nos desenhos de Ricardo Cabral.
Pontas Soltas é essa evidência na reunião de várias das suas histórias, embora o tema escolhido como ligação entre todas, Cidades, não seja o mais acertado. Eu sugeriria Instantes, algo que poderia mesmo ser o tema de ligação destes três livros.
Lágrimas de Elefante é a história mais interessante como estruturação narrativa em banda desenhada, superando a mera leitura do quotidiano, inserindo elementos que acabam por fazer as vinhetas ultrapassar o único ponto de vista possível.
Como esta, The Lisbon Studio é maravilhosa de inventividade, aproximando-se do Fantástico para falar da imaginação que transforma um espaço quando o trabalho nele executado é o de criação artística.
Mas são as restantes histórias que mais se relacionam com os dois sketchbooks que vieram antes, recuperando os elementos que fui descrevendo.
Da Cidade... usa os elementos de texto para demonstrar que a vida de um local é um acto contínuo sempre ligado que o desenho - ou a sucessão de desenhos - consegue captar melhor na sua morfose do que uma fotografia alguma vez conseguirá.
5 Jours (nas suas duas partes desenhas com um intervalo pelo meio) utiliza narrativamente os traços por colorir, a visão do próprio papel em que o desenho está prestes a nascer ou o uso de fotografia como cenário de fundo para fixar a vertigem incapturável pelo desenho. Os elementos essenciais que se foram destacando, sobretudo, no trabalho sobre o Kosovo. O processo de desenho entra mesmo no tema da banda desenhada, com uma voz balonada pertencente ao criado invisível a descrever as características envolvidas no desenho que estamos a ver ao mesmo tempo.
No entanto, é em Barcelona-Kosovo-Barcelona que Ricardo Cabral deixa os elementos mais importantes para perspectivarmos o progresso no seu trabalho futuro.
Ao reproduzir os sacos de pano e o papel de mesa em que fez alguns dos desenhos da história, Ricardo Cabral faz notar que tanto o meio como o material serão tão importantes para a expressão do desenho como as formas do seus traços, as cores aplicadas mais tarde ou o ponto de vista escolhido.
Não se trata somente de dar conta da textura do trabalho mas também da realidade em que o desenho interfere - e molda - porque este não se restringe ao papel cuidado nos blocos do autor.
O desenho de Ricardo Cabral espraia-se para fora da página como na própria vida do autor que ele nos vai mostrando trabalhada a nosso prazer.


Israel Sketchbook (Ricardo Cabral)
Edições Asa
1ª edição - Outubro de 2009
214 páginas


NewBorn - 10 Dias no Kosovo (Ricardo Cabral)
Edições Asa
1ª edição - Outubro de 2010
144 páginas


Pontas Soltas (Ricardo Cabral)
Editorial Presença
1ª edição - Outubro de 2011
92 páginas

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Editorial sueco

Capitalizando a moda dos policiais suecos, Três Segundos é o exemplo que me leva a especular que uma parte da escrita policial nunca conseguirá sair do país e, nela incluída, uma parte da que é melhor escrita.
Isso fica a dever-se a um papel de elucidação que os policiais nórdicos parecem ter e cujo funcionamento para o público que mora longe da região onde se reune a frieza dos países nórdicos pode não ser eficaz. Mas este é um tema que se tornará mais evidente ao longo desta crítica.
Três Segundos é um thriller e não tanto um policial (distinção que é importante para mim), problema que a correspondência entre "ficção criminal" (tradução literal) e "romance policial" não resolve.
Na estrutura de Três Segundos não há pistas ou expectativa de revelação de um culpado, há uma construção de um conjunto de eventos cujas intenções e cujos causadores estão bem patentes.
O que vem depois é um desfecho que não tem nada de inesperado, mas que vem contribuir para o ponto argumentativo que o livro está prestes a fazer.
Um desfecho que tem dois momentos essenciais, um primeiro que envolve reféns e uma explosão e um segundo que envolve política. O primeiro é o momento de acção, o segundo o momento de explicações.
O segundo momento depende da revisão dos elementos que levaram até ao primeiro, numa repetição que torna a leitura irritante na falta de expectativa no que esteja por desvendar. A única coisa que sobra por saber é a resposta a duas perguntas "Quem sobrevive?" e "Quem será preso?".
É o problema de utilizar uma estrutura cinematográfica americana para a história, com o momento de acção como culminar antecipado de uma história que deveria fazer durar o seu tema criminal.
Um problema sobretudo quando para além da vertigem da acção o livro faz-se da procura de fidelidade à realidade da Suécia.
Isso reflecte-se estruturalmente na sequência de capítulos que vão do facilitismo do page turner à delonga da reprodução do quotidiano de ambos os lados da acção criminosa. Ora muito breves e escritos com grande economia para servir as acções, ora longos e palavrosos para servir o realismo descritivo, os capítulos acabam em desequilíbrio acentuando a mudança radical de ritmo com que o leitor atravessa o livro.
Isto não impede que existam partes muito bem escritas e igualmente eficazes. Duas que se destacam são a vida no interior da prisão e a envolvência final com a personagem do detective Ewert Grens.
A relação com um ambiente fascinante nas suas duras regras e a relação com uma personagem que nos motive a acompanhar a trama de uma ponta à outra. Se o ambiente seria o que nos faria manter o foco no livro, o personagem - mesmo se a tornam um depósito de vários estereótipos e a sua existência tem vários pontos demasiado vagos por culpa desta ser o primeiro contacto que temos com ele mas não ser a sua primeira aparição - seria a presença recorrente que nos tornaria leitores sistémicos dos autores.
Nenhuma delas dura páginas suficientes, mecanizadas no objectivo principal do livro, mas são bons enquanto duram trazendo a lume o que de melhor pode ser explorado num policial sueco.
Um objectivo central que é o de denúncia de processos desumanizados que os poderes políticos e policiais exercem na Suécia para travarem a invasão das máfias estrangeiras. Denúncia do pouco valor dado à vida humana, sobretudo dentro das prisões, e da total falta de consequências para comportamentos indignos do governo local.
A consciencialização de um povo para quem (parece-nos) a existência é tão serena que se esquece de que já existe crime dentro das suas fronteiras é um objectivo reforçado pelas páginas finais onde os autores separam factos de ficção. Aí indicam que apenas pessoas e locais foram inventados e que, pelo contrário, as descrições do tráfico de droga ou da utilidade desta para as autoridades na gestão dos presos são retirados directamente da realidade.
Se essa realidade é universalmente interessante em certos pontos, também é universalmente desinteressante nos momentos em que repassa culpas para que os suecos deixem de encarar os seus burocratas com ingenuidade.
A exploração insuficiente dos elementos geralmente admiráveis - acima referidos - acentua o facto de haver elementos que não funcionam fora do seu país de origem.
A escolha dos livros a publicar não pode somente adaptar-se à moda vigente mas tem de ser capaz de se sustentar para lá da sua integração nesse momento que terminará.

Não podia terminar sem fazer um reparo à tradução. Feita a duas mãos - suponho que um casal - é assinalável a coerência interna da mesma.
No entanto há uma diferença no resultado final que parece distinguir o trabalho de cada um e cuja culpa final até pode recair sobre a revisora. Trata-se de um número não muito elevado mas notável de gralhas que são na sua maioria artigos de género contrário ao do substantivo que se segue ou pedaços de frases pertencentes a duas formas de tradução que ficaram no resultado final quando uma deveria ter substituído a outra.
Estas gralhas desaparecem sensivelmente a meio do livro e isso parece indicar o ponto em que o livro "mudou de mãos".
Num momento em que os livros em língua inglesa são igualmente acessíveis e bastante mais baratos é necessário que a qualidade dos detalhes - capa, papel, impressão, tradução... - torne os livros em português mais apetecíveis que a alternativa.
Detalhes que sejam credíveis, também, pois com uma tradução feita a partir do inglês pelo menos que se indique o título original correcto. Ninguém acredita que um policial sueco tenha um título inglês...


Três Segundos (Roslund e Hellström)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Junho de 2011
496 páginas

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A ironia de ser um leitor

Nunca lera Palahniuk até agora. A culpa é do cinema, mais propriamente de David Fincher. Como arriscar ler um autor se o livro dele que se quer realmente ler é o mesmo livro que mais assusta pelo desapontamento que pode causar no momento de comparação?
Claro que quando o filme não é tão bom quanto isso ler o livro é um exercício mais seguro e de potencial constatação de que o autor tinha mais para dizer do que souberam colocar em imagens.
Confirma-se que assim é neste caso, mas não vou seguir o texto fazendo comparações.
Mesmo se não é por este livro que um leitor verá que Palahniuk é um escritor de excepção, dá já para encontrar uma quantidade de ideias que se balançam entre o genial e o absurdo. Uma linha onde se joga o desespero e a ambição.
Palahniuk tem a capacidade de circunscrever as obsessões do mundo a uma mão cheia de perturbados que são os aclamados anti-heróis das gerações recentes que nasceram quando o mundo já não tinha ilusões para oferecer.
Trata-os com uma ironia sacana, acertando piada atrás de piada com as vidas que eles levam, tornando-os tão perturbadores quanto patéticos.
A estratégia é de longo prazo, para no final do filme lhes retribuir com um final feliz, mesmo se ele vem ainda com um traço de destruição.
Estratégia de longo prazo que não salva nenhuma personagem mas que revela a verdadeira ironia que está inscrita na forma como ele lida com os leitores.
Os perturbados são os leitores que se afeiçoaram a um sujeito viciado em sexo, se enredaram na crença de que ele poderia ser filho de uma nova imaculada concepção e se enterneceram com a falsidade da estratégia com que ele conseguia dinheiro para pagar a mensalidade do lar da sua mãe.
Os mesmos leitores que no seu quotidiano teriam desprezado uma pessoa que demonstrasse abertamente apenas uma destas características são os mesmos que idolatram uma personagem miserável ao longo de mais de duzentas páginas.
Os leitores andam todos um pouco desesperados por qualquer figura pouco abonatória (e nada sentimental) que lhes alivie a misantropia. Ou então uma figura com quem se possam identificar sem deixarem de se sentirem melhores consigo próprios por não serem tão loucos assim.
Palahniuk é um inteligente bufão qe está pronto a mostrar aos leitores o grau de ridículo em que vivem ou desejam viver. E isso é o mais divertido de tudo.


Asfixia (Chuck Palahniuk)
Editorial Notícias
1ª edição - Outubro de 2003
260 páginas

terça-feira, 25 de outubro de 2011

... e beijos com Língua

A primeira coisa que se nota neste livro é a frescura libertária da escrita de Hugo Gonçalves que não tem medo de introduzir sonoridades novas num uso educado da Língua Portuguesa
Ele vai buscar expressões que parecem ter saído directamente de um improviso tornado norma no seu círculo de conhecidos. Expressões que passam por serem norma interna com que ele nos convida a escutar os seus relatos, também eles dignos dessa partilha entre amigos.
Isso dá-lhe agilidade, permite-lhe expressar em duas palavras o que outros escritores teriam de explicar longamente.
Fred fazia colherzinha comigo é a forma que ele encontrou para explicar que acordou para encontrar um amigo encostado a ele numa posição de concha. Parece tão mais simples e elegante naquelas quatro palavras que ele escolheu...
Este exemplo sai da "fase brasileira" das crónicas do autor (quem sabe se a expressão não é vulgar do outro lado do Atlântico...) mas é o género de pequena ousadia que ele tem sempre que pode.
É mais do que agradável percorrer as histórias de Hugo Gonçalves, as suas percepções do mundo e da vida privada misturadas e explanadas de uma forma capaz de tocar todos os leitores.
Sinal de um bom cronista, ainda que o prazer ao longo do livro dependa sempre da empatia que se tem com os temas que vão rodando pela caneta de Hugo Gonçalves.
Além de, também, depender do grau de acerto com que o autor se atira a elas.
Quando ele usa mais o humor e menos a seriedade afectiva as suas crónicas são bem melhores.
A sua abordagem menos discreta à falta de qualidade dos minetes dados pelos portugueses (ver aqui) é mais interessante do que a sua respeitosa abordagem aos problemas que as mulheres partilham com as mulheres de Verona com a missão de responder às cartas dirigidas a Julieta. Os temas são distintos, o primeiro será sempre mais divertido e ousado, mas o autor deveria ter encontrado maneira de dar a mesma identidade pessoal na abordagem a ambos.
Talvez seja ainda uma personalidade de cronista em construção, a precisar de deixar de ser tão oscilante ou, então, meramente uma falta de contextualização da origem de cada bloco de críticas que se distinguem pelos temas e pelas formas de abordagem - negando a afirmação de João Tordo de que o livro se constrói como um romance pela coesão das crónicas e a abrangência da vida que abordam.
Se há uma identidade inequívoca do autor em todas as crónicas é, como disse antes, da sua abordagem linguística, original e distinta.
E mais do que as crónicas de uma página são os contos com oito ou dez delas que realmente ficam na memória, como aquele que encerra o livro chamado Escrever pode Matar, escrito do ponto de vista feminino, repleto de ideias fortes e melhor articuladas numa estrutura excelente. Redime qualquer fulgor que as crónica percam ao decaírem do minete para a versão shakespeareana dos conselhos da revista Maria.


Fado, Samba e beijos com língua (Hugo Gonçalves)
Clube do Autor
1ª edição - Abril de 2011
208 páginas

sábado, 22 de outubro de 2011

Pouco ousado

Ao contrário do que a capa possa sugerir, é muito longe do Hotel Íris que a história de amor entre um homem a caminho de ser um velho e uma rapariga demasiado nova para ser mulher.
Ele tem gostos sexuais poucos habituais e ela ainda nem sabe o que é entregar-se, mas o livro conta a história de amor que eles viveram.
História que entre súor lambido do corpo e combinações rasgadas a tesoura só termina no momento maior de dramatismo que uma trágica história de amor pode ter.
É o pior momento para terminar a história, quando ela ainda é uma fogueira ao rubro. Não tanto porque esta história de amor não possa terminar em tragédia como tantas outras mas porque tantas outras histórias de amor terminaram em tragédia e esta não teria de ser mais uma.
As relações entre homens demasiado velhos e raparigas demasiado novas não é uma novidade literária e não é por haver um eventual amor sincero que o sexo se torna menos importante no grau de atenção que a relação merece.
Numa relação onde o fétiche e, sobretudo, a dominação são o ponto forte, não é na fuga (em sentido lato) dele que o livro realmente terminaria.
A história está mesmo no ponto em que se pedia que se explorassem temas maiores do que o amor, que tantos autores teimam em escrever com maiúscula pensando que nada mais há a dizer para lá dele.
E, no entanto, aqui seria mais forte saber porque os amantes pouco habituais têm destinos reservados a monstros incompreendidos ou que destino espera uma mulher que foi apresentada à sua sexualidade de uma forma que também destrói as suas possibilidades de se relacionar afectuosamente.
Ainda que a miúda da história tenha um momento de amor com o sobrinho do homem com quem se relaciona, é rastejando e servindo um amo que ela aprende a sentir a atração dos corpos. O que lhe sobra depois disso, como mulher mal habituada e de perspectivas severas que se tornou?
Nesta interrogação sobre o destino estava o espaço em que a autora poderia ter explorado a ousadia sexual que o livro anuncia mas que não cumpre.
Basta conhecer algumas das obras que o Japão - em domínios literários, cinematográficos ou banda desenhísticos - produz para saber que na produção popular do país há abordagens muito mais ousadas que continuam a ser escondidas do conhecimento europeu por mero embaraço.
Mesmo fazendo o esforço de compreender que este livro se publica porque o seu tema continua a conter o assombro sussurrado de quem quer parecer púdico, não posso deixar de sentir que trata apenas um tabú educado que (com a ajuda da linguagem polida da autora) até seduz mas não choca.
O amor condimentado com um pouco de sexo está bem para se ler. Mas o sexo esvaziado de amor estaria bem melhor para se pensar mais longamente no assunto.


Hotel Íris (Yoko Ogawa)
Quetzal
Sem indicação da edição - Junho de 2009
176 páginas

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os retalhos da realidade

Como a viagem de avião na qual o protagonista-autor passa a maior parte deste livro, este livro é um processo em caminho e não uma ligação entre dois pontos.
Há uma pergunta de partida sobre o porquê do avô do protagonista-autor ter dado o nome ao seu barco. E até há uma descoberta da resposta a essa pergunta.
Só que não há um longo processo de estruturação da saga familiar em torno dessa pequena interrogação que parece ter passado de geração em geração até se tornar no grande mistério do protagonista-autor.
As razões das aventuras inexplicadas do seu avô, em alto mar ou em terra firme, são o propósito inicial do protagonista-autor para falar de si, dos seus pais e do seu avô. Mas ele não o conseguirá assim como o julgava possível, acabando por perseguir pequenos fragmentos de informação em torno dos quais ele poderia trabalhar para alcançar uma narrtiva convincente.
Ficcionalizar em torno dos dados que se têm é um processo de fechar caminhos, estancar as dúvidas numa organização satisfatória mas talvez não sedutora como será o mistério tal como ele existe como ponto de partida e, depois, como muitos pontos de chegada.
Aquilo que o protagonista-autor acaba por mostrar é a sua procura pelo detalhe do que foram os seus antepassados. A afinidade emotiva do avô pelo artista de murais Aurelio Arteta ou a coragem do seu pai a enfrentar ondas gigantes ao largo da ilha de Rockall são temas em que ele se torna um especialista.
Ele é tanto pesquisador como rememoriador, relendo diários alheios e fazendo confissões próprias.
O protagonista-autor tem o ofício de respigador, compilando e agregando os fragmentos possíveis da sua narrativa. Ele deixou de ser romancista para se dedicar ao detalhe, deixou de procurar uma imagem grandiloquente e geral de uma descendência familiar para penetrar a fundo nos momentos que definem a sua imagem do seu avô e do seu pai.
A partir desse momento deixou de ser capaz de escrever o romance como prometera no início da narrativa e passou a ter de (d)escrever o processo de desvendamento de um traço que conjuga História e histórias.
Assim a sua narrativa são, na verdade, duas aventuras (dois romances, até): aquela que se lê nas frinchas de texto que olham as histórias do que os antecederam e aquela que traduz a sua própria demanda para preencher as falhas do seu conhecimento.
A sua escrita é a sua aventura, aquela que se equipara às dos seus antepassados e que, por isso, tem de facto de figurar lado a lado com elas.
O seu livro é o processo de união, uma reconstituição da verdade para o protagonista a que assistimos com deleite equivalente àquele com que esperamos a revelação maior do porquê de ter existido um barco que se chamava Dois Amigos.
Até porque essa revelação chega e não parece nada literária, traz aquele desapontamento fascinante que só vemos porque estamos a ler o romance e a sua construção ao mesmo tempo. Caso contrário a ficção teria trabalhado a revelação até o seu âmago se tornar anti-climático de tão extraordinário.
Dessa forma o livro é um método experimentalista - com emails transcritos, registos da distância a percorrer pelo avião em que viaja ou descrições minuciosas de escolhas de filmes para visionamento (situação que até na própria vida descartamos da memória, quanto mais na ficção) - de trabalhar o retalho da realidade.
Sem alienar o leitor, Kirmen Uribe deu em olhar para as costuras da manta de retalhos e demonstrar que há lá tanto para ver como no padrão aleatório que o olhar distanciado torna em agradável conjunto unificado.


O Dois Amigos (Kirmen Uribe)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Janeiro de 2011
184 páginas

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Uma ponte a atravessar

Imagine-se que John Watson ou Archie Goodwin assumem o papel principal de uma história de detectives e eis o início de Manual do Detective, uma história onde um escrivão se vê subitamente promovido ao lugar do detective para quem escrevia os relatórios.
A sua missão é-lhe tão desconhecida quanto a profissão que tem de assumir e o seu maior objectivo é encontrar o maior detective que a História já conheceu para que possa voltar à sua secretária e inventar títulos brilhantes para os casos que o Detective Sivart resolve e Charles Unwin apenas organiza.
Envolvido numa trama extraordinária, o recém-nomeado detective tem ao seu serviço apenas um estranho manual com conselhos como "Pistas - Siga-as para que não o sigam a si" (que, deliciosamente, abrem cada capítulo do livro correspondendo a cada capítulo do livro dentro do livro).
Move-se num ambiente que se apropria do retro - o noir dos anos 1940, sobretudo - para daí reinventar a ficção especulativa que um detective é capaz de enfrentar.
Nos meandros complexos de uma cidade onde chove o tempo todo e que conta, pelo menos, com uma femme fatale de considerável alcance, nada se esgota na realidade à medida que sonâmbulos se tornam figuras essenciais do mistério, os despertadores são roubados massivamente e uma voz cantada adormece com os seus ouvintes.
Há mais do que um plano de (ir)realidade em que decorrem as investigações e os melhores ingredientes policiais - o arqui-inimigo brilhante - marcam presença à medida que se mergulha mais fundo nos muitos segredos que aquele mundo sem nome esconde na sua mistura de Sociedade Policiada pela grande orgnização de detectives mas repleta dos recantos escuros onde Feiras Itinerantes são esconderijos ideais a capangas gémeos.
Ordem e caos equilibrando uma mistura de géneros a que o autor dá sempre consistência e que contribui ainda mais para uma imaginação que cita muitas referências sem as ter de exibir em frente ao leitor. Envolvem-se discretamente num mundo novo e enfeitiçante!
Um bom livro para arrumar entre O fim do Sr Y e O Sindicato de Polícias Iídiches. Tão imaginativo como o primeiro e tão bem ambientado como o segundo, é a ponte ideal.
Mas estas são as minhas duas margens entre as quais senti que atravessava. Cada leitor encontrará outras margens que ligar com esta ponte literária que não esgota referências desde que o leitor as tenha à mão!


Manual do detective (Jebediah Berry)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Junho de 2011
260 páginas

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

À medida da vida

A velha senhora ao canto da página é como a figura de referência que um artista coloca no esboço de uma enorme estrutura.
Dessa forma se dá noção da escala com o ser humano como medida. E esta vida é realmente bem maior do que a mulher que a viveu e que a conta.
A mulher algo frágil que se faz passar por um pouco senil para preservar a sua solidão e em paz olhar o mar.
Uma mulher que aguentou a Guerra Civil Espanhola até conseguir fugir para Biarritz e ver chegar os alemães. E depois acabou em Portugal aguentando uma versão apenas ligeiramente diferente de Franco.
Uma mulher que num breve período perdeu a primeira família que teve para, muitos anos depois, ver tudo repetir-se com a família que conseguiu construir.
A vida desta mulher, mesmo nas tragédias normais de uma vida que se prolonga e vê as dos outros irem chegando ao seu inevitável destino, foi imensa. E também foi imensa nalgumas alegrias, mas essas contam sempre menos quando se faz a revisão do que ficou para trás. Ou talvez não contem menos, mas certamente marcam menos a cronologia da memória.
Até uma traição ela sofreu, o que lhe ocupou muitos anos, que tanto lhe causou pesar como a fez descobrir os direitos que tinha ao prazer.
Para uma mulher que sobreviveu à guerra e por pouco não entrou noutra deveria ser uma questão menor. Mas nunca é, nem para ela nem para ninguém.
Aliás, como ela dirá, ainda que a guerra matasse incontáveis pessoas a cada dia, a sua pior memória desse tempo foi da cedência que teve de fazer a um soldado para que ele se satisfizesse esfregando-se contra ela.
Assim é a vida - toda uma vida e todas as vidas -, um conjunto de dados pessoais que conta mais do que quaisquer acontecimentos da História.
A memória desta mulher irá perder-se - porque ela reconta a vida sempre para si mesma - enquanto os feitos de outros ficarão impressos para a posteridade.
Só que enquanto os donos desses feitos morreram e assim se tornam figuras construídas, enquanto houver quem a lembre ela continuará, mesmo com as rasuras que isso implica, por mera falta de conhecimento de todas as histórias que quem as viveu saberia contar mas guardou.
Infelizmente esta vida é contada com uma mentalidade demasiado reaccionária, própria da idade e das vivências de quem fala, mas demasiado militante para o leitor.
Nem sempre o discurso inflamado parece servir um propósito para a história e fica a desconfiança dos objectivos reais que o autor esconde na ficção.
A sensação é desagradável quando a insistência argumentativa se mistura numa ficção que tinha tudo para ser agradável.


Toda uma Vida (Henrique Monteiro)
Publicações Dom Quixote
1ª edição - Abril de 2010
208 páginas

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Adeus, até sempre

O Great American Novel é um conceito que se tornou mundialmente familiar, mesmo que na maior parte do tempo a aplicação desse termo a um livro interesse a todos os países que não os próprios EUA como um mero motivo de atenção extra.
O conceito não vem a propósito de ser aplicado a Adeus, até amanhã - ou talvez até venha, mas isso é questão para os mais entendidos na matéria e eu limitar-me-ei à minha percepção, por mais errada que seja mas que me serve sempre os argumentos que pretendo apresentar.
Adeus, até amanhã não tem qualquer ambição elefantina de escrever um país inteiro, mas no seu breve relato descreve algumas centenas de anos do seu país como muitos nunca o fizeram.
O objectivo do livro, além da fidelidade às suas personagens, passa apenas por fazer a emenda da realidade pela ficção.
Mais precisamente, o narrador busca na memória - sua mas, igualmente, de jornais da época da sua infância - o máximo de dados que lhe permitam iniciar o relato que Cletus, seu amigo e filho de um assassino que se acabaria por matar, nunca fez - e que o narrador nunca lhe pediu, mesmo anos depois dele ter abandonado a cidade onde moravam, ao rever Cletus.
Iniciar um relato pelos factos mas continuá-lo pela ficção, entrando na perspectiva dos que estavam lá - intervenientes ou público, culpados ou inocentes -, dando a cada um uma hipótese de existirem para lá da figura esquemática que os jornais descreviam.
O narrador faz a redenção de toda aquela pequena comunidade, da humanidade sempre repleta de falhas que merece mais do que a definição que dela faz um chavão publicado a letra grandes no frontispício de um jornal.
Toda a vida enorme de um país imenso se vive assim mais intensamente num pequeno lugar. Toda a América são pequenos lugares, mesmo os que foram crescendo em direcção aos céus.
Comunidades que crescem pelo desencanto, que perdem a inocência naquele primeiro tiro (e quantos tiros se deram dentro daquele território...), que se enchem de zonas escuras em direcção a tornarem-se cidades que olham dominantes sobre o mundo.
O protagonista que revê a sua memória e a recria 50 anos depois daquela primeira morte é como o país que se tornou na nação mais poderosa do mundo e que, no seu interior, nunca deixou de viver na curiosidade mórbida das aldeias que se tornam organismos com um conjunto de regras morais avessas à entrada no Presente.
Um protagonista e um país que cresceram mas que não se libertam da penitência de um passado silenciado a ter de ser (re)criado. Cada um tem de criar a História dos que deixou para trás.


Adeus, até amanhã (William Maxwell)
Sextante Editora
1ª edição - Setembro de 2010
140 páginas

sábado, 24 de setembro de 2011

Instantes de uma voz

Ru é um daqueles livros para o qual serve muito bem uma expressão que me é estranha,"é capaz do melhor e do pior".
No romance da sua própria biografia Kim Thúy escreve pequenas partilhas - são comuns os "capítulos" de uma página só, mas chegam a um mero parágrafo - ora como confissões sussurradas em privado nos quais não quer ir mais longe (naquele momento) ora como histórias partilhadas em grupo que têm de terminar num clímax.
Desses dois tipos de formas de relatar a sua vida são as histórias que interessam, terminadas com aquela ironia humorada que só quem atravessou aquela realidade pode aplicar ao relato.
As confissões sem filtro emocional parecem próprios à aparição no programa da Oprah (ou aquilo que imagino que seja o programa, à falta de canais onde ver tal coisa). Deveriam acabar com pequenos choros semi-contidos e o aplauso da audiência que se espanta com o grande exemplo de vida daquela mulher antes de surgir a próxima história triste.
O problema na amplitude entre estes dois momentos é que se passa de uma sedução pela voz narradora a uma aversão à exploração de uma voz indefesa.
Voz que usa sempre de uma certa toada poética casual, fruto da sua própria sensibilidade, mas que só funciona como aprofundamento do que está para lá das palavras quando a sensibilidade tem a defesa da ironia.
Essa voz fala do Vietname, da vida em fuga, da adaptação a outro país e de uma existência na sombra de outras pessoas.
Contando a sua vida, a narradora está (finalmente?) a sair da sombra, mas são as sombras em que viveu que a tornam interessante, nem mesmo a forma como venceu as dificuldades da fuga e da adaptação.
Como a maioria das pessoas que fogem, o que têm de interessante são as histórias de que fugiram. Os motivos para partirem para um lugar seguro esclarecem-nos muito mais do que a história da passagem a uma vida ocidentalizada - e banal.
Ru, um livro que se lê num instante, é demasiado pequeno para percorrer com tempo os muitos momentos da vida da narradora que deveria, para bem do leitor, ter falado mais do passado que tornava a sua voz única.


Ru (Kim Thúy)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Fevereiro de 2011
148 páginas