Os primeiros contos d'Os Objectos Chamam-nos confirmam desde logo as muitas obsessões de Juan José Millás como a relação com a mãe, as histórias de homenzinhos ou a mutação do ponto de vista da realidade.
Todo o livro é um catálogo dessas obsessões, mas de uma acima de todas: a de encontrar na realidade mais banal aquilo que é quase o surrealismo da interpretação humana.
Um misto de absurdo e extraordinário que tudo transforma quando a realidade se filtra pela mente humana.
Do primeiro ao último conto está lá essa transformação, da simples frase do amigo do narrador, em A Morta, que lhe diz "Olha para ela, está morta." e leva o amigo a descobrir como se distinguem entre os que percorrem o mundo vivos e mortos, à bizarra tarefa (coxear) de uma vida toda para adiar a morte da irmã de Rodrigo Fuertes em A morte retroactiva.
Há uma única distinção entre os muitos contos, a dos seus protagonistas. Crianças e jovens na primeira parte, adultos na segunda. Dessa divisão resulta a ideia de que as crónicas agrupadas sob o título As Origens são melhores do que aquelas agrupadas sob o título A Vida.
A relação de Millás com as suas memórias de infância são uma fonte de material melhor do que a vida adulta, como também se verificava comparando O Mundo com O Que Sei dos Homenzinhos.
Talvez porque a infância revista à luz idade adulta é uma fonte (muito) maior de matéria de absurdos. Mas nada trava o olhar deturpador do escritor ao longo de toda a vida.
Deturpador por fazer a modificação da realidade de forma a melhor servir os moldes que o escritor tem em mente concretizar.
Neste caso os moldes são a da fantasia que lança ao caos cada vida assim escrita e, com elas, a consciência do leitor é exponenciada para a solidão das personagens.
Porque quase todos os momentos em que decorrem as absurdamente maravilhosas releituras da realidade se dão quando as personagens estão à espera.
Isoladas ou mesmo quando acompanhadas, é nos tempos mortos que as personagens ocupam o silêncio interno com ideias que uma conduta impoluta impediria de serem expressas.
Felizmente que não há essa pureza de comportamento, ou estaríamos privados dessa transformação do mundano em extraordinário, que pela mão deste escritor é tudo o que queremos ler durante muito tempo.
Contados de outra forma, todos estes contos seriam piadas com uma valente tirada final. Mas nas mãos de Juan José Millás são comoventes e desarmantes estruturas de enorme precisão, escritas de tal forma que engolem para o seu pequeno universo o leitor.
Cada três páginas são pequenos universos auto-suficientes, mas no acumular de realidades paralelas, temos uma visão da imensidade que é incomparável.
Não há quem saia deste livro sem encarar o quotidiano como material de onde escaranfuchar ideias sobre os outros e si mesmos, formas de falar da realidade como quem fala na abstracção da sua própria imaginação.
Estamos todos a sós com as nossas próprias ideias, resta usá-las para à nossa volta criar tudo o que nos retirará da solidão.
O Mundo (Juan José Millás)
Paneta Manuscrito
1ª edição - Janeiro de 2009
176 páginas
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