domingo, 29 de julho de 2012

O epigrama redentor

Tenho um problema com O Epigrama de Estaline que poderá ser essencial às considerações que se seguem. Embora tal problema não tenho impedido que fruísse da leitura, faço notar.
O meu problema relaciona-se com o estilo do livro que parece ser parte do destaque que ele merece, como a crítica do The Guardian destaca: ainda que não seja um thriller está montado como tal desnecessariamente.
Não conhecendo a obra de Robert Littell - embora me tenha ficado interesse nela - não afirmo que o autor foi incapaz de escapar a uma construção que lhe é mais confortável, mas suspeito disso (e, por isso, estou em crer que os seus verdadeiros thrillers terão vasto interesse).
Isto não quer dizer que a forma seja excelente. O jogo de vozes múltiplas no estilo de narração de entrevistas conduzidas pelo autor - que é a voz última do livro - é bem controlada dentro de alguns capítulos, mas é ostensivamente esquecida noutros.
Esses outros capítulos são aqueles em que é necessário apresentar informação complementar que as fontes ouvidas não poderiam conhecer, passando a usar uma voz narradora directa.
O que me traz a outro ponto, a presença de algumas personagens pouco (ou mesmo nada) importantes que servem a função de estar presente nos momentos em que mais ninguém poderia presenciar os eventos em torno de Osip Mandelstam e Estaline.
São personagens com vozes por vezes muito brevemente escutadas e com vidas pouco visitadas. Como Fikrit Shotman, antigo halterofilista e actual homem forte de um circo, um militante ferveroso que é preciso para aprender que é culpado de não saber o seu crime. Personagem que parece estar a mais no livro, até que no final surge a dar a informação ao líder da Mãe Rússia sobre o poeta com quem se cruzou enquanto estavam ambos condenados a trabalhos forçados.
Estas são falhas graves, recursos a que faltou uma maior exigência. Mas ao contrário do expectável, não levam a rejeitar o livro. Os seus méritos serão maiores ou, pelo menos, mais atractivos.
Desde logo porque as personagens são muito interessantes.
Algumas por serem reais e já nossas conhecidas - Akhmatova e Pasternak, além de Mandelstam - e qualquer visão da sua intervenção política e das suas relações literárias serem fascinantes.
As restantes porque, mesmo se algumas são desnecessárias por largos períodos do livro, são muito bem criadas - ou aproveitadas da realidade, consoante o caso - e têm pormenores memoráveis por via das contradições humanizadoras que as caracterizam.
Ainda acima disso, o que apaga qualquer traço de ressentimento permanente com a forma do livro e o torna numa leitura que tem de se iniciar e acabar no mesmo dia, é o fulcro da história entre o estadista e o poeta.
Um drama humano que por momentos é um combate antes de se tornar numa confissão emocionada.
Uma história de perda de parte a parte, com o poeta a derrotar-se a si mesmo com um poema pobre de intenções políticas ainda antes de Estaline o derrotar por via do seu sistema sensor. E o ditador derrotado pelo desejo inconcretizado de ler um poema a si dedicado por Mandelstam (que não aquele Epigrama que o ridicularizava).
Estaline que tinha todos os outros escritores - e demais artistas - a dedicar-lhe obras de louvor, apenas não a conseguia daquele que considerava o maior poeta da pátria. Quando o conseguiu, já não lhe interessava, havia coisas mais importantes no horizonte (a guerra!).
E acabou mesmo por ficar para a História o poema primeiro, o Epigrama que, mau ou bom, merece hoje - fui informar-me embora o livro deixe a indicação velada disso - ser lembrado como acto de coragem da denúncia da crueldade de que já era feito o regime. É menos um poema do que uma denúncia estilizada. Um grito que teria de ser sussurrado em segredo até poder ser ouvido abertamente.
Esta história dos desencontros dos desejos humanos entre dois homens de poderes e personalidades muito diferentes é tão intensa que, mesmo que devesse ter sido explorada de forma mais fechada sobre estas duas figuras em vez de como recurso para a revelação do nascimento do império ameaçador que seria a Rússia da segunda metade do século XX, salva o livro do falhanço.
A força do próprio episódio entre poeta e ditador redime a intervenção ficcional do autor.

 
O Epigrama de Estaline (Robert Littel)
Civilização Editora
1ª edição - Outubro de 2011
328 páginas

sábado, 28 de julho de 2012

Destino: outro livro

Agatha Christie deve ter escrito Destino: Frankfurt como reacção a um momento do século XX que exigia um outro tipo de ficção criminal.
Um tipo de ficção que se expandisse para lá do ambiente controlado de uma pequena vila inglesa e ocupasse todo o mundo,
Destino: Frankfurt é uma intriga internacional - quase um thriller, direi - repleta de viagens, perseguições, disfarces e ideologias.
É o livro em que Agatha Christie teve de abandonar o cenário que lhe proporcionou os seus melhores trabalhos, aquele mundo em que o crime é apenas uma leve mancha no carácter decente e cavalheiresco do Reino Unido - e sempre rapidamente removida.
Um mundo inocente em que até uma velha solteirona de St. Mary Mead consegue resolver os casos baseando-se apenas nos seus muitos anos de observação da natureza humana (ou coscuvilhice, se preferirem).
Esse mundo era o ideal para o requinte imaginativo que Agatha Christie colocava nos seus crimes. Não só porque recuperaria a sua imaculada existência, mas porque ajudava ao efeito de surpresa do acto criminoso mais feroz.
Num romance de espionagem internacional, a inocência está perdida e o crime torna-se na ferramenta mais comum do trabalho.
A desconfiança assegura que os seus protagonistas sobrevivem e, por mais cerebral que possam ser, a sua intervenção no terreno faz a diferença.
Basta o início do livro para o revelar, quando um cavalheiro inglês acede ao pedido de uma desconhecida para lhe permitir usar a sua identidade para apanhar um voo no qual foge salvando a sua vida. Não só isso como ainda se permite ingerir uma bebida que ela própria lhe confessou ter adulterado com algum sonífero.
Ele ainda se interroga sobre se não foi um risco tal atitude, mas perante uma donzela em apuros, ele é de uma elevação a toda a prova que vai acabar por o colocar na rota de graves perigos.
Perante esta conjugação de factores, o livro em que Agatha Christie abandona a segurança dos seus cenários mais inocentes torna-se, igualmente, naquele em que ela os defende.
Fica claro que Agatha Christie não conseguiu escapar à sua própria natureza e que tentou influenciar o novo género, que ameaçava o seu policial, negando-o.
Muito do livro é um conjunto de conversas (entre o discurso e o debate) onde se discute a violência corrente, alguma política e bastante filosofia de valores.
Destino: Frankfurt seria Hitchcock se este não retirasse as partes chatas à vida. Aprende-se com este livro de Agatha Christie o quanto o Mestre estava correcto na lição que tinha para dar.
Estamos, pois, perante um trabalho de Agatha Christie a evitar em absoluto. Os que aqui ficarem avisados, saltem directamente para o próximo livro à espera de uma oportunidade.


Destino: Frankfurt (Agatha Christie)
Edições Asa
1ª edição - Maio de 2012
272 páginas

Negócio da Memória

Esta crítica não pretende colocar em causa a importância dos anos em que Pinochet dominou sobre o Chile. Ou a importância de se cultivar a memória de tais anos, dos muitos e cruéis actos perpretados pelo general no poder.
Aliás, como o post de abertura já indiciava e mais de três anos de escrita têm ajudado a compreender, não há frase mais acertada sobre o acto de escrever enquanto registo primordial da memória e, mais importante ainda, da memória colectiva do que aquela que abre a sinopse na contracapa: Escrevo porque tenho memória e a cultivo escrevendo...
Não poderia, pois, vir contrariar a necessidade de se ler este livro até ao fim. O que não é o mesmo que dizer que seja aprazível fazê-lo.
Não se trata de sofrer perante a imagem das muitas vítimas - que ganham o direito a ser representadas pela figura "palpável" do jovem Oscar Lagos Ríos - mas antes perante a própria formação do livro.
A compilação dos artigos que Sepúlveda escreveu durante três anos, para vários jornais tanto na América do Sul como na Europa, funciona mal como livro pois fica à mostra uma repetição que cansa o leitor, por mais que este queira respeitar a importância que possa reconhecer ao livro.
O facto dos artigos terem sido escritos num intervalo tão breve e para tantos públicos diferentes obrigou a que o escritor recorresse à mesma informação por várias vezes, nem sempre de maneiras distintas entre si.
O seu tema era apenas um, Pinochet (de forma directa ou não), tal como o seu objectivo era apenas um, consciencialização.
Os vinte e dois artigos aqui reunidos vão dando conta de outros detalhes, sobre o Chile e sobre o próprio autor sobretudo, mas as suas muitas páginas começam a parecer-se com um discurso repetido vezes sem conta, apenas modificado na sua forma para melhor se adaptar a cada local onde seria revelado.
Resta pois uma ideia incomodativa sobre o livro que alerta para o 30º aniversário do Golpe de Estado de Pinochet, que no final de contas foi uma decisão de negócios.
Artigos e autores relevantes que tenham escrito sobre a ditadura de Pinochet terão sido vários ao longo dessas décadas.
Mas apenas este escritor vende substancialmente em Itália, Portugal, Grécia e França (os países onde o livro foi editado simultaneamente, algo anunciado com refoço na contracapa).
Fica o esclarecimento sobre o mundo actual pela memória de um tempo passado: tudo se transforma em negócio.


O General e o Juíz (Luis Sepúlveda)
Edições Asa
3ª edição - Outubro de 2003
96 páginas

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O realismo que não vem do frio

Com a procura pelo realismo policial a levar a que se virem os olhos sistematicamente para as letras nórdicas, esquecem-se outras paragens que guardam surpresas maiores do que o movimento editorial ainda permite encontrar depois de massificar os títulos dos descendentes de Henning Mankell.
Vale a pena olhar para perto da zona do nosso antípoda para descobrir que (pelo menos) já no final do século anterior produzia policiais de um determinado protagonismo da realidade do trabalho de investigação.
O livro foca-se na vida de uma esquadra de uma pequena comunidade australiana. Embora haja um detective principal, Hal Challis, cujo estilo e gostos servem de âncora ao interesse do leitor, não há uma redução do trabalho detectivesco a essa figura.
Tal como não há uma limitação do funcionamento da esquadra à investigação do serial killer que se começa a forma, rapariga morta após rapariga morta.
Os vários patamares de trabalho - e capacidade - policial estão em funcionamento simultâneo e os muitos focos de desrespeito pela Lei acabam por se enredar ao longo do tempo, complicando as respectivas investigações.
Assaltos a habitações vazias, vandalismo incendiário, protecção de testemunhas em casos de tráfico de drogas e os raptos de raparigas. Cada um destes incidentes começa por ser um caso separado e vai influenciar as questões levantadas sobre os restantes.
Mas o realismo não se vê apenas pela coincidência temporal destes casos, uma casualidade que a ficção leva muitas vezes ao exagero probabilístico. Vê-se na reacção que cada departamento tem à informação disponível.
Como o rolo de fotos do interior de casas colocadas a revelar. Os polícias de giro que as vêem usam da objectividade para as atribuírem ao trabalho da mulher que lá as deixou, uma agente imobiliária.
Se lá tivesse passado um detective mais imaginativo e afoito - na forma do próprio leitor já muito habituado a extrapolar a partir do mínimo de dados - teria concluído que era artimanha dessa mulher que também trabalha como advogada e representa alguns dos delinquentes da cidade.
Algo mais se passa dentro da força policial. Algo revelador dos muitos tipos de carácteres que têm de ser aceites.
Fotocópias circulam denunciando o comportamento bruto e abusivo de um dos polícias de giro. Havemos de descobri-lo tentando obter favores sexuais em troca de um fechar de olhos a uma infracção rodoviária.
Outro seu colega envolve-se com uma das vítimas que foi auxiliar, rouba droga da sla de provas para a contentar e ataca fornecedores locais para encobrir o seu próprio erro.
E o detective Challis envolve-se com a repórter que cobre as notícias criminais e que, contra a recomendação dele, publica as cartas que o serial killer lhe envia.
Livros de ficção com intenções verídicas saem quase sempre derrotados, mas neste caso não se trata de denúncia social do carácter maculado da polícia, trata-se da criação da personalidade de um sistema que é mais do que um detective carismático e inteligente rodeado de elementos anónimos.
A verdadeira personagem, com os seus muitos tons entre o preto e o branco, é toda a força policial e o seu funcionamento.
Isto sim é realismo, a criação de um sistema dinâmico onde a informação circula abundantemente mas gerando reacções de graus diferentes. Os erros e as vitórias da polícia a tempos diferentes para o mesmo pedaço de informação tornam credíveis os acontecimentos, ainda que levem o leitor a resolver vários dos casos por si mesmo muito antes do último capítulo.


O Homem-Dragão (Garry Disher)
Alfabeto
1ª edição - Junho de 2012
352 páginas

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Rir do Passado para não chorar do Presente

O cágado é uma boa escolha para traduzir visualmente o carácter agora intitulado de paciente - e antes de sereno - do povo português. Carácter que de tão paciente se tornou resignado apenas umas décadas depois de ter afastado a Monarquia de arma em punho.
Mais útil para o efeito crítico do livro é antropomorficar o povo todo por igual, das figuras de poder ao anónimo personagem que ocupa o espaço da rua. Assim não há quem possa escapar à paródia inteligente com que os autores tratam estes animais.
O País dos Cágados valoriza-se por ter um humor impiedoso. Se há coisa que não se vê nos autores é partiditarismo ou ideologia.
Tanto o povo e o seu pensamento, como os governantes e as suas decisões, estão sujeitos à ironia da sua transformação cagadal.
Isso torna o livro num compêndio rico da História tal como ela era escrita oficialmente mas também qual como ela era vivida na cabeça do povo.
Aquilo que se aprende com o riso generalizado é o grau de crítica que merecem todos os patamares da vida do país. Crítica a um modo de estar cuja incoerência tende a ser atribuída a uma bipolaridade de feitio: do pessimismo ao êxtase no tempo dum golo falhado, dum edifício construído ou duma revolução iniciada.
O que, verdadeiramente, se passa é que o período de festa excessiva que se segue ao período negro tende a ser usado para apagar os indícios de discordância com o novo regime vitorioso.
Os autores nada perdoam e a História dentro deste livro é escrita por quem nem venceu nem perdeu, mas assistiu de uma bancada priveligiada à permanente derrota transformada em vitória.
A actualidade do livro talvez seja ainda maior agora, com os perigos da crise a as inconstâncias políticas. Mostra que nada disso é novidade, como mostra que a memória é sempre curta.
A actualidade social do livro é maior do que nunca, graças também à resistência do seu humor.
Ainda eficaz por via dos seus trocadilhos afiados, piadas recorrentes ou pormenores irónicos, é um humor que é mais forte logo na sua forma.
Algo infantilizado para ser mais livre e mais didáctico, é um desenho que conforta o leitor (adulto) enquanto lhe dá uma ensaboadela à consciência.
Artur Correia recriou com qualidade o seu próprio traço do final dos anos 1970, conseguindo que a actualização do livro fosse visualmente coerente. No entanto, no restante, a actualização falha na continuidade que deverá ter procurado atingir.
O livro deveria ter continuado a terminar no painel da página 68. Ainda que antes dessa página haja actualizações, essas conseguem funcionar a contento por serem informação extra para a que já lá se encontrava.
As páginas que foram acrescentadas depois desse ponto (cerca de uma vintena) trazem o livro até ao presente num passo demasiado acelerado que toca apenas meia dúzia de temas maiores - leia-se mais mediáticos - do "mamarracho" do CCB tornado essência de Lisboa à vampirização da troika enviada pelo Fundo Monetário Internacional.
Estas últimas páginas são, contrariamente ao que seria lógico esperar, menos escorreitas do que aquelas que se demoram em detalhes (por vezes até demasiado específicos e, por isso, pouco relevantes) das vidas de personagens como António de Oliveira Azar ou Saraiva de Cágado.
Estas vinte páginas sofrem do mal de estarem a repetir - quanto muito, ilustrar - piadas de um tempo em que estas brotam minutos depois das suas matérias terem sido divulgadas. E que, ainda para mais, se espalham a uma velocidade ainda maior nas plataformas virtuais.
Não há melhorias significativas no Presente do país, nem nas páginas com que os autores o tentam mostrar.
Já o Passado que eles caracterizam é inesquecível numa aprendizagem que sabe ter graça, contrariando ideias de seriedade exagerada.


O País dos Cágados (António Gomes Dalmeida e Artur Correia)
Bertrand Editora
1ª edição - Abril de 2012
88 páginas

terça-feira, 24 de julho de 2012

Um nome fácil de recordar

Onésimo será nome de revelação para a maioria dos leitores mas é autor a merecer reconhecimento pelo seu extenso domínio da arte de bem escrever.
A Língua Portuguesa nas suas mãos é material cuidado, enriquecido por um certo descaramento em nela misturar o exótico linguajar inglês dos portugueses emigrados nos Estados Unidos da América.
Mas isso é apenas parte do interesse de um cronista (escrevo-o no lugar de escritor apenas para evidenciar a forma dos textos aqui compilados) cuja inventividade pode ser constatada percorrendo apenas a lista de títulos do índice.
A sua mais distinta qualidade é a de narrador apaixonante. Na brevidade que as crónicas exigem ele é capaz de extasiar o leitor uma mão cheia de vezes.
Por essa maneira se descobre ele aventureiro sadio, sábio auto-irónico ou vítima lúdica. Ele é o primeiro dos personagens que revela, embora muitos outros mereçam parágrafos seus. Pelos olhos dele, a realidade é a origem maior da ficção mais memorável.
Estamos em suspenso nas suas palavras que nos controlam a emoção sem chegarem a precisar da entoação ou da espera de que uma narrativa oral costuma beneficiar para atingir o mesmo resultado.
Onésimo - surpreende-me a facilidade com que, ao fim de quatrocentas páginas, se fica a tratá-lo intimamente usando apenas o primeiro nome -  faz-nos isto tratanto vários assuntos corriqueiros mas, como bem indicam os temas em que as suas crónicas foram divididas, está a falar-nos do mundo.
Um mundo aquém- e além-Atlântico, de uma portugalidade que ocupa as duas margens do oceano e ainda o enche com aquelas pequenas ilhas lá plantadas.
Portugalidade a ser lida com espírito aberto mas, também, com caneta e bloco ao lado para tomar nota das referências a que o autor recorre. Seja para se ir descobrir ou seja para ir reler as ricas recomendações que ele lança, não se sai do livro sem uma recuperada noção da elevação cultural do nosso pequeno país.
Aprende-se, portanto,  sobre o país do topo ao fundo dos seus méritos socialmente estratificados.
Não me merece dúvidas que, nessa perspectiva, o mais importante texto deste volume é a Trilogia Breve, retrato de seis páginas (um pouco menos, até) da evolução do perfil do emigrado nacional e das reacções a ele por parte tanto do país que o recebe como do país que o viu partir.
Um retrato de raízes cortadas pelos que ficaram parados e parecem deixar de saber acolher devidamente. Tudo feito em três episódios do senhor Chico Ávila em que todas as palavras contam para fazer valer o nosso entendimento.
Claro que sei, por outro lado, que a impressão mais duradoura do livro será o seu humor quase constante. Também por culpa da crónica última, Que nome é esse, ó Nézimo, que compila os muitos dislates a si dirigidos por via do seu nome. De Big O a Professor Almerda, tudo lhe chamam e ele gosta de coleccionar a memória de tais nomes.
Mas para o leitor português que não hesitar, o nome de Onésimo Teotónio Almeida será facilmente memorizado, sem erros mas com saudades!


Onésimo - Português sem Filtro (Onésimo Teotónio Almeida)
Clube do Autor
1ª edição - Maio de 2011
400 páginas

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O autor vive

Talvez não haja dado mais importante para abordar este livro do que o facto de María Gallardo estar listada como autora do mesmo.
Autora primeira e principal como a capa indica vivamente sublinhando isso mesmo no título, María - em letras grandes, todas elas maiúsculas - e eu - eu, o seu pai, um acompanhante menor ainda que o autor físico deste livro.
Miguel Gallardo só está a reconhecer que esta não é uma criação sua, mas antes uma tradução sua da vida levada - criada, portanto - por María.
A um ritmo muito próprio, este é o diário de uma existência em que o autismo influencia o mundo circundante mas não define a María.
O seu autismo parece a acentuação da estranheza que todos sentimos enquanto o mundo nos é estranho.
O autismo como a emoção vivida pela sensibilidade máxima. Olha-se para a reacção de María a estranhos, primeiro receando-os em excesso para depois os acolher (se eles quiserem dar-se a ela, claro) no seu mundo particular com um prazer que os toca, e percebe-se que é o mesmo que fazemos mas demoradamente, encontro após encontro. Para ela é uma questão de instantes.
Admira-se, por isso, a sua leitura vertiginosa dos outros. Como a sua memória para nomes até de pessoas que viu por instantes apenas.
Qualidades - ou, pelo menos, capacidades - que faltam a tantas das pessoas denominada como normais.
Merece por isso María a nossa atenção, uma aventureira de férias, suportando os perigos de aviões e autocarros com que nós nem sequer conseguimos sonhar!
Desenhado a preto com a emoção expressa pelo vermelho - o mesmo vermelho da camisola de María que a destaca na sua diferença como a de todas as outras pessoas - o livro lembra a energia com que Sempé animava as aventuras de Le Petit Nicolas.
A ideia de partida à descoberta de uma pessoa e de uma vivência cheia de pormenores extraordinários sai reforçada por essa associação. Mas não se trata somente de confissão, trata-se também de pedagogia servida como divertimento.
Já próximo do final o final apresenta um painel com os sintomas que estão associados ao diagnóstico do autismo.
Esse painel é funcional e objectivo, mas surgido depois de toda a narrativa das férias de María só serve para avisar que nenhum sintoma pode enclausurar uma pessoa na limitação de um rótulo. A riqueza interior desta rapariga de doze anos não é um sintoma, mas uma meritória característica da humanidade que a torna tal e qual nós, leitores.
O livro tem ainda uma vertente mais. Uma vertente terna que o leitor nunca poderá apreciar completamente.
Em certa medida o livro afasta-se da banda desenhada e aproxima-se do diário ilustrado, com páginas dedicadas quase em exclusivo a texto e outras à enumeração (ilustrada) das pessoas que passaram pela festa da María.
É assim o livro porque pretende ser uma memória desenhada, uma que María possa usar como os restantes pictogramas que a ajudam a regular o seu dia. Esta memória que o pai lhe oferece é a retibuição pela aprendizagem que ela lhe deu.
Estão lá os momentos em que ele receia o escândalo que María provocará - assim portando-se como as pessoas que a julgam com o olhar - ou em que ele é superado pela memória da filha quanto aos nomes das muitas pessoas que conhecem.
As confissões de tais momentos fá-las Miguel com grande humor, não se importando de se vilipendiar um pouco quando tal parece merecer.
Tal ajuda a apaziguar a consciência do leitor para o seu próprio comportamento errado, pois pelo riso auto-crítico melhor consegue ele relacionar-se com aquele pai a revelar a obra de arte que María cria vivendo.


María e eu (María Gallardo e Miguel Gallardo)
Edições Asa
1ª edição - Março de 2012
64 páginas

domingo, 22 de julho de 2012

E é assim

Este é um romance que começa no capítulo 2. Mas no final do capítulo 1 já fomos avisados de como começa e de como acaba tal romance.
O capítulo 1 não pode ser ignorado! É dos mais importantes para compreender que o narrador do livro está colado ao seu autor, transportando-o de encontro aos leitores como personagem da voz real que deve conseguir ecoar nas suas cabeças.
Ele narra a história de Billy Pilgrim que se tornou volúvel no tempo, o que quer dizer que vive a sua vida sem seguir a ordem específica. Ele experimentou a sua própria morte e depois continuou a viver como se nada tivesse sido.
Nada que perturbe Billy Pilgrim depois dele ter sido levado até ao planeta Tralfamadore onde aprendeu que todos os momentos existem simultaneamente, ainda que os humanos não consigam ver tal realidade, o que leva a que todos os momentos estejam determinados e sejam inevitáveis. Mesmo a sua própria morte.
Inacreditável?
Não mais inacreditável do que o facto de alguém ter decidido bombardear Dresden durante a Segunda Guerra Mundial, destruindo um centro cultural comparado a Florença, e tentando justifica-lo para lá do razoável.
Não mais inacreditável que mais de cem mil pessoas tenham morrido nessa altura mas Billy Pilgrim (como o narrador) tenha sobrevivido porque como prisioneiro de guerra estivesse numa estrutura subterrânea de um velho matadouro desactivado.
A realidade humana é tão absurda que é aprazível – e mesmo inevitável – para Billy acreditar numa outra realidade. Mesmo uma em que ele se tornou um animal de jardim zoológico fazendo sexo com uma esquecida estrela de cinema para gáudio dos extraterrestres que o levaram.
Como diz Rosewater, companheiro de hospital de Pilgrim, aos psicólogos, Eu acho que vocês vão ter de inventar uma data de mentiras novas, senão as pessoas simplesmente não vão querer continuar a viver. Parece-me evidente que seja o próprio Pilgrim a criar essas mentiras até que elas se tornam reais porque nelas acredita por completo.
Com a sua volubilidade Pilgrim pode regressar a Dresden ou de lá escapar, tornando mais aceitável para a sua própria consciência que aquele momento aconteceria sempre, não importa quantas vezes e porque ordem ele a viva.
Dresden não é apenas um tropeção numa vida de extraordinário valor ficcional. Esse é, de facto, o acaso comum que o narrador achou entre si mesmo e a sua personagem para que pudesse combinar realidade e ficção numa cadência que agarrasse o leitor.
O narrador queria ter escrito um livro sobre esse momento de guerra que presenciou, mas pouco conseguiria dizer porque um homem não vale pela sua sobrevivência. Por isso o seu romance de guerra é-o por portas travessas.
São muitos os episódios a contar e, no entanto, por mais extraordinários que eles sejam não se lembram tão bem como a ideia de Dresden arrasada.
O narrador penetrou-nos a consciência contando o muito que acontece entre o momento em que Billy Pilgrim se torna volúvel no tempo e o momento em que os pássaros lhe dizem Piu-titi-piru?. Porque tudo isso que se passou não supera a ideia de que num momento existem vidas a habitar uma cidade e no momento seguinte nada existe mais.
O que se diz sobre tal momento que possa ocupar mais do que uma linha? O que se diz sobre tal momento que signifique mais do que o silêncio?
Ou se diz o mesmo que os pássaros que se desviaram das bombas e depois regressam ou não se diz nada. Por isso, a narrativa deriva por todos os outros momentos de uma vida deixando a sensação desconfortável de que não se evitou falar desse momento essencial e definidor que apaga todos os outros.
Umas duzentas páginas humoradas a tons de negro profundo que amedrontam os leitores ao dizerem demais sobre as cem mil vidas desaparecidas “porque sim” por via de uma outra que sobreviveu e cujo riso que inspira não parece digno de ser ouvido – nem mesmo e somente pela nossa voz interna.
Kurt Vonnegut criou um livro delicioso e arrasador cuja estrutura é arrojada e deslumbrante e, nem por um momento, labiríntica.
Talvez seja caso para dizer que ele se tentou aproximar dos romances de Tralfamadore que descreve e cujas páginas eram lidas em simultâneo para criar uma imagem agradável. No caso de Matadouro Cinco, os género (Ficção Científica, Guerra ou Humor Absurdo) e as cenas baralhadas são usadas para atingir aquele extraordinário efeito final que não nos abandona.
Claro que, neste caso, a imagem literária final é extasiante enquanto a imagem humana final é dolorosa. Mas nenhum prazer é gratuito e nenhuma aprendizagem é totalmente dolorosa.
O momento em que lemos o livro é um momento entre tantos e é um momento que durará. Repertir-se-á permanentemente na nossa lembrança porque era inevitável que ocorresse desta forma assoberbada neste e em todos os momentos da nossa vida.
E é assim.

Matadouro Cinco (Kurt Vonnegut)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Agosto de 2011
200 páginas