quarta-feira, 29 de julho de 2015

Mais um que sai da fábrica

Um pai encobre o facto do seu filho adolescente, sem carta e tendo consigo erva ter atropelado uma rapariga.
Na tentativa de refazer a relação com o filho, permitiu-se o descuido de o deixar guiar, que a sua mulher muito censuraria. Ela está prestes a ascender à posição de juíza federal.
Não antes que o FBI lhe vasculhe a vida para se certificar que a história daquela família é imaculada!
Por um bom terço deste livro Lisa Scottoline parece usar o cenário de coincidências exageradas - telenovelescas, que é como quem diz da má ficção - para preparar terreno a uma visão da fractura marital num cenário extremo.
Nesta altura é mais difícil aceitar algumas das decisões do pai do que a probabilidade dos eventos coincidirem no tempo.
Fica-se porque há a expectativa de um cenário em que o adolescente quer confessar o que fez e toma decisões irreflectidas, o pai quer sacrificar a sua consciência para dar um futuro tanto ao filho como à mulher e ela é mantida na ignorância tentando garantir para ela a normalidade que os investigadores devem encontrar.
Um jogo potencialmente curioso que, dentro da mesma casa e numa comunidade pequena, tem tudo para se valer de uma claustrofobia que projecta o que de mais psicopático há nos elementos masculinos de uma família.
Não é por aí que o livro segue, antes começando a acrescentar elementos que o encaminham para algo diferente.
Descobre-se que a rapariga era colega do condutor e logo surge em cena uma chantagem feita ao pai por alguém que tem provas do que aconteceu, com o pai e chantagista a perseguirem-se mutuamente.
Quando a mulher descobre o que aconteceu, uma antiga traição que ela cometeu surge como o segredo que a torna menos digna de censurar o marido.
O que daí resulta é uma fachada, normalidade a cobrir o poço de ódio que se gerou, um casamento que é mantido em nome do filho.
Ganha papel principal a racionalidade da mãe, que entretanto abdica da sua promoção, e planeia sistematicamente os passos a dar para lidar com a chantagem e não perder a liberdade do filho.
Nessa altura o grau de coincidências vai para lá do absurdo que pensávamos já ter atingido e o chantagista aparece morto (talvez tenha sido a mãe...) porque era um voyeur da adolescente atropelada e tinha provas de que ela mantinha um caso com um homem mais velho.
Em pleno modo thriller, o livro continua adiante sem voltar a abrandar para reflectir numa devida construção, trata apenas de atirar elementos novos sobre os que já lá estão.
O desenlace é implausível ao jeito de cada vez mais thrillers, com um grande confronto onde tudo é explicado e cada interveniente sofre ainda mais um pouco.
Já a resolução que vem depois disso é pior de tão preguiçosa. A autora apresenta uma nova situação surgida sem que nenhuma pista para ela fosse apresentada até aí.
Um final feliz para a família que leva uma reguada, só para não sobreviver sem consequências, mas tem direito a reconstruir a sua relação e olhar o futuro com ânimo.
O final simplesmente afirma que nada do que se leu sobre as personagens interessou, acontecesse o que acontecesse iriam estar unidos, vivendo com menos posses mas desfrutando mais da companhia mútua.
Claro que, como a autora não se esforçou na caracterização dos elementos da família, pouca empatia se criara antes disso e a desilusão é nenhuma.
Cada um deles pode reduzir-se à grande decisão que toma, o que os torna em elementos funcionais do livro e não em personagens.
Elementos pouco funcionais, note-se, como a própria escrita que é indistinta de qualquer outra dos que escrevem este género de ficção.
Os diálogos ora estão no limite do aceitável ora se tornam ridículos e as suas descrições podem ser quase integralmente ignoradas sem que se perca atmosfera ou psicologia.
Espanta-me saber que Lisa Scottoline ganhou um Edgar Award, tão mau é o seu domínio do mistério.
Sendo um prémio de vinte anos antes deste livro só posso concluir que a autora se foi enredando num fabrico regular mas não metódico de bestsellers.
Desconfio que com esta escolha, talvez a pensar que pode capitalizar no estilo de sucesso de Gillian Flyn em mostrar o lado tenebroso de todos, Lisa Scottoline teve o seu primeiro e último livro traduzido para Língua Portuguesa.


Não Contes Nada (Lisa Scottoline)
Bertrand Editora
1ª edição - Julho de 2015
344 páginas

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Finalizar em grande

Depois de um começo que me suscitava dúvidas seguiu-se uma melhoria que me avivou o interesse para o final da trilogia.
A previsão que fiz a propósito deste livro revelou-se apenas metade ajuízada. Este tomo é, de facto, o mais interessante da trilogia mas, pelo contrário, Anders de la Motte está já bem perto de ser um escritor com domínio do seu labor.
A trilogia veio sempre em crescendo de ideias em vez de "espectáculo", o contrário do que é comum e precisamente o que se quer de uma boa saga.
Da dissipação de limites (morais) para o individualismo que o anonimato online permite chega-se agora à promiscuidade entre interesses privados e manipulação pelo Estado da informação dos cidadãos.
Um tema para o qual os alertas são cada vez maiores e que o autor não só integra na trama como o transforma num motivo global que se integra no percurso individual de Henrik Petterson.
Obviamente que um homem contra o "mundo" é uma imagem ainda exagerada no seu heroísmo, sobretudo porque não se reduz a uma acção de denúncia mas continua a depender de uma acção directa.
Acção cada vez menos significativa na trama, reduzida a um único grande evento. E essa é uma das situações em que uma adquirida sabedoria do escritor se faz notar.
O autor deu a HP parceiros na sua luta, fechando o círculo, pois são um grupo de indivíduos intentados em vingar o abuso que sofreram às mãos do Mestre do Jogo.
A sua discussão sobre o plano de acção leva-os a um ponto em que terão de ser dignos de um episódio de Mission: Impossible. E aí a ironia de HP desvia o grupo e o livro desse exagero.
Com menos cenas de acção, o livro dá-nos algo muito mais interessante, dúvida e tensão continuadas.
A paranóica crescente de HP transmite-se ao leitor pela forma como Anders de la Motte escreve. Ainda variando o ponto de vista entre HP e a irmã, é neste livro que essa variação funciona melhor pois as vozes estão cada vez mais definidas e o frenesim dele é contrariado pelo maior controlo dela.
É mesmo na última reviravolta da saga que a variação entre os dois pontos de vista tem o seu melhor desempenho, transmitindo uma dúvida que deixa o leitor em suspenso para conhecer o final do arco narrativo de Henrik Petterson.
Ele, claramente, evoluiu ao longo dos livros e a sua história pessoal recebeu o mesmo cuidado que os detalhes da trama sobre a aproximação de uma versão do big brother. Em parte foi necessário terminar a trilogia para concluir que o personagem era tão importante para manter o interesse como a inteligência dos meandros destes thrillers.
Meandros que o autor leva ao limite, fazendo malabarismo com muitas hipóteses e personagens mas conseguindo concluir o espectáculo sem deixar cair nenhuma. Une-as com lógica e eficácia e responde a todas as questões sem fechar por completo a porta a algumas sugestões que oferecem ao leitor algo para o acompanhar para lá do final.
Não se trata de deixar espaço aberto a uma sequela mais, apenas não negar ao leitor o prazer da reflexão.
Bolha é a devida recompensa para quem acompanhou toda esta história, tenha ou não aderido com ânimo desde a primeira folha. Quem chegou aqui não fica desapontado.


Bolha (Anders de la Motte)
Bertrand Editora
1ª edição - Abril de 2015
424 páginas

domingo, 26 de julho de 2015

Para acompanhar o que veio antes

Creio não se poder dar melhor elogio a um livro que não marca a primeira aparição do seu personagem principal do que este: deixou-me ansioso para ler todos os que o antecederam (e os que se seguirão, já agora).
Rui Araújo tem esse talento, de criar um personagem culto e arguto que dá vontade de acompanhar sistematicamente.
Um detective ao jeito daqueles que marcam a memória dos policiais que se têm por favoritos, ou seja, daqueles que transformam um crime num relato da sua própria intervenção.
O inspector Miguel Neves é desses, dos que marcam pelo que trazem, mesmo da sua vida privada, para a construção de uma história em que ele - e os personagens que o rodeiam - importa. Não se limita a ser um narrador que faz avançar a trama de um ponto de resolução ao seguinte.
Há que dizer que o processo de resolução é bastante detalhado, trabalhado como aquilo que, crê-se, é o método policial em vigor neste país.
Afinal estamos no campo da ficção que recorre a uma história verídica como base de trabalho que permita tornar a leitura engajante e, no final, deixar algo à consciência.
Nessa combinação de realismo e ficção, Rui Araújo usa as transcrições de interrogatórios ou as circulares de serviço de forma credível mas também muito escorreita.
Esses atributos são essenciais para um livro breve mas que, além do fio policial explora a personalidade do inspector, dando-lhe espaço para exibir a sua cultura - uma agradável extensão do autor, por certo, que já abrra o livro com o poema Farewell de Alexander Search/Fernando Pessoa como epígrafe - a par das suas relações pessoais, que confundem os meandros da sua mente investigativa.
Miguel Neves está casado com Tânea Sanz, jornalista de investigação que aponta o seu faro na direcção dos crimes de colarinho branco ligados a várias posições de Estado.
As ameaças que surgem podem ter origem no caso de qualquer um deles e o inspector terá de ser interventivo em ambas as descobertas para afastar o perigo que os ronda.
Esse perigo é um agradável tempero do livro, que nunca afasta por completo o seu protagonista dele, aliás deixando-o ir na sua direcção.
Não temos um herói em Miguel Neves, antes um homem cujas decisões deixam algo a desejar tanto no campo do planeamento das acções como da avaliação moral das mesmas.
Com isso o livro termina com um cliffhanger de verdadeira incerteza sobre se teremos um próximo volume dedicado ao inspector. Embora a racionalidade diga que assim será, é a esperança que o afirma com mais força.
A tragédia não parece ser inédita para o inspector. Percebe-se que no seu passado houve já a perda de outra mulher amada.
Isto revela não só a coragem do autor, mas também a inteligência com que torna conhecido o passado do seu protagonista para os novos leitores, integrando-o na narrativa para garantir contexto suficiente, sem escrever uma introdução que torne redundante a leitura dos seus outros livros.
Tudo isto combinado leva ao desejo que expressei logo de início, de acompanhar as investigações de Miguel Neves que já foram ficando para trás. Prometem e muito!


A Tentação do Abismo - Sanz Blues (Rui Araújo)
Gradiva
1ª edição - Fevereiro de 2015
196 páginas

quinta-feira, 23 de julho de 2015

O eterno desconhecido

O Animé e o Manga são motivo de fascínio para quase todos, mesmo que se resuma às obras dos estúdios Ghibli.
Por isso esta partida para o Japão de Peter Carey em nome da comunhão com o seu filho dos códigos dessas expressões artísticas só pode ser uma escolha de leitura imediata.
Decisão reforçada, no caso pessoal, pelo facto de ser este um escritor pelo qual nutria um interesse já longínquo. E bastou um capítulo para reconhecer o talento que sempre vi ser-lhe gabado.
Carey é um ocidental inteligente no Japão, com ideias próprias acerca do que vê nos filmes e nas séries Japonesas.
O seu espírito vai disposto à descoberta mas já contaminado por uma vontade de reflectir.
O embate é imediato, descobrindo ele que em parte a sua visão das ligações do subtexto de Blood - O Último Vampiro (a boa tradução devia ter-se esmerado em procurar os títulos nacionais das obras) não passa de um erro de conhecimento da Língua Japonesa.
Depois virão as discussões sobre Mobile Suit Gundam em que Peter Carey projecta muitas visões sobre a guerra que lhe vão sendo sempre rebatidas.
Em vez de um grande significado de memória pós-Guerra a série foi feita para vender robôs de brinquedo.
Em vez de representar o isolamento das crianças em tempo de guerra, quando estas pilotam os seus robôs estão no ventre materno, protegidos mas também sensíveis ao impacto exterior.
Torna-se evidente o enorme problema de comunicação entre povos. Quase impossível perscrutar a cultura Japonesa, também porque eles se recusam a desenvolver as suas ideias perante o autor - respostas lacónicas ou simples negações das ideias que Carey já traz consigo.
Ao rever O Meu Vizinho Totoro com alguém que lho possa comentar, o resultado só reforça tal percepção. A sessão termina com apenas um terço do filme visto e com, adivinha-se, muito mais comentários do que aqueles relatados.
O que descobrimos é que só uma vivência profunda do Japão nos permite entender tudo o que se mostra nas imagens e que está escondido apenas para quem não tem os códigos culturais de leitura.
No entanto o livro deixa também a certeza que é justo que se coloque nestas obras a nossa deslocada experiência. Afinal Hayao Miyazaki diz ao autor que o mais importante é a imaginação e se esta desenvolver para lá dos significados que o realizador imputa, tal não deverá estar errado.
Peter Carey não se limita a Animé e o Manga. Visita e escreve sobre Kabuki, forja de espadas ou a dificuldade em definir otaku.
Isto torna a experiência mais rica e reforça a ideia de que o Japão continuará, de forma transversal, uma incógnita para forasteiros, por mais que o estudemos.

Em contraponto e complemento, o livro de Porfírio Silva é bastante mais detalhado na descrição de conceitos e eventos Japoneses.
Um guia que vai da religião à política ou que se preocupa com os ínfinos detalhes de como se prepara uma refeição transportável.
Trata-se de um guia encaminhador e facilitador por quem teve tempo de começar a viver o Japão e não apenas de percorrê-lo.
A parti de um ponto o autor já tem até a percepção dos detalhes sociais - transportes ou sanitários públicos - e interroga-se acerca das regras (escritas ou não) lá assumidas e que fazem pouco sentido a um ocidental na sua discrepância interna (de sensibilidades) quase irreconciliável.
Isto vai de encontro à descoberta feita por Peter Carey e, por muito que Porfírio Silva experimente e nos transmita as vivências locais, estas estão limitadas.
Um teatro Kabuki tem legendagem inglesa para que os restantes não sejam invadidos por estrangeiros.
Partes dos rituais religiosos têm folhetos em diversas línguas para que as restantes componentes sejam preservadas.
Parece evidente que nesta abertura controlada a visitantes os Japoneses resgauardam a sua existência e identidade.
Creio que a introdução aqui conseguida é já causa de um olhar enriquecido que dificilmente teríamos de outra forma. Infelizmente as fotogradias que acompanham o texto não estão tratadas com a qualidade necessária - do tamanho de reprodução ao enquadramente.
As referências à robótica - parte do trabalho do autor - são interessantíssimas e deixam a vontade de leituras (técnicas) adicionais pois o tema já tem sido escrutinado dentro e fora da ficção e tem com Porfírio Silva um importante grau de aprofundamento.
O facto da abordagem à robótica no Japão ser tão singular deverá servir como mais uma porta de entrada para o mistério que é o Japão.
Mesmo se, como disseram a Peter Carey, metade do conhecimento é pior do que a incompreensão total, não se pode deixar de tentar saber mais sobre o Japão.


O Japão é um Lugar Estranho (Peter Carey)
Tinta da China
Sem Indicação da edição - Setembro de 2010
176 páginas


Caderno de Tóquio (Porfírio Silva)
Esfera do Caos
1ª edição - Abril de 2015
224 páginas

terça-feira, 21 de julho de 2015

Realmente não havia pressa

Depois de muitos anos colocado na prateleira, foi a adaptação ao cinema que me fez pegar em A Humilhação.
Não houve razão concreta para este atraso e, como ficou provado na pressa de ler o livro antes de ver o filme, foi muito pouco o tempo que gastei nesta leitura.
Já a poderia ter feito há muito, mas que o tenha feito agora foi útil, pois verifiquei que o filme de Barry Levinson soube melhor tratar os temas que verdadeiramente interessam neste livro.
O filme ajudou a perceber o falhanço do livro e esse auxiliar foi importante contra um Philip Roth que continua a escrever com descrição intensa num registo livre de adornos - e, com isso, seduz o leitor mesmo em livros menores.
Gosta-se do pressuposto, de que um homem perde a sua razão de ser quando a idade o atinge e lhe rouba a expressão dramática de que era mestre.
Gosta-se da conclusão, previsível que possa ser, de que no palco o homem pode recuperar o domínio sobre a sua existência ainda que não sobre a arte a que se dedicava.
O problema está no que leva de um ponto ao outro, uma espécie de ascensão e queda que o leva da desistência a uma nova tentativa e que, depreende-se, repete e resume - concentrada no tempo - a carreira do personagem central, Simon Axler.
Mais importante teria sido conhecer essa carreira, pois quase qualquer razão teria acabado por servir para o fazer regressar aos palcos depois de afirmar que se desligara deles para sempre por já não ter a Arte em si.
Philip Roth prefere antes confundir a falência do talento com a falência da masculinidade e assim torna Simon num velho homem com uma jovem amante.
Uma amante que era lésbica até aí, que ainda é perseguida pela sua anterior amante, que se parece transformar na mais ousada heterossexual à face da Terra...
Simon começa por transformá-la de maria rapaz em mulher fatal. Depois quebra-se-lhe o coração quando ela parte.
Tal como o seu talento falhara em palco, agora a sua virilidade falha em privado.
Se o talento era o maior da sua geração, que dizer do seu pénis, que preenchia Pegeen como nenhum dildo o fizera?
Tal como na arte teatral em que Simon Axler se afirmou, assim Roth faz do seu livro uma peça em três actos.
Não há subtileza nenhuma nesta constatação, como não houve na intenção do autor. Afinal a terceira parte do livro intitiula-se O Último Acto!
Se os seus personagens estavam aqui a interpretar papéis, todos eles foram escritos com base em lugares-comuns de quem só conhece as pessoas de uma leitura excessiva dos seus derivados ficcionais.
O caricato é que nesses papéis Roth até reafirma, de forma acidental, a perda da masculinidade do protagonista.
É ele que tenta transformar a amante em algo que ela não era e que depois é surpreendido e arrasado pela sua partida quando ela percebe valer mais do que o seu amante - que ela escolheu por ser mais velho e, daí, um "macho" pouco ameaçador para a sua transição.
Não é este o preconceito que se costuma associar às mulheres, de que tentam transformar os homens à imagem do que querem apenas para ficarem submissas deles?
Talvez fosse para encontrar aí ironia, como no facto de ser na concretização da grande fantasia masculina, um ménage à trois com duas mulheres, que Pegeen regressa à sua anterior orientação sexual.
Parecem antes velhas piadas recuperadas para constatar o ridículo do que Philip Roth fez neste livro, não fosse o leitor deixar passar algum dos muitos absurdos da peça central do romance.
Que tenha chamado A Transformação a esse segundo acto inteiramente sobre a vida sexual leva-nos a perguntar se não estava a descrever aquilo que fez com a história, abdicando por completo do tema com que a iniciou para escrever sobre algo mais do seu agrado - o que torna difícil ligar o início e o fim do livro, que fariam todo o sentido juntos.
Não vou afirmar que sejam as fantasias de um velho reaccionário que vive (e se expressa) através das suas personagens, mas creio que serão muitos a lê-las como tal.
Pensando que foi este o texto que esteve tantos anos na prateleira à espera, não vejo que tenha perdido muito por não o ler mais cedo.
Agora fico a perguntar-me se devo ler Nemesis desde já ou se devo deixá-lo ficar na prateleira mais tempo e não ser desapontado tão cedo.


A Humilhação (Philip Roth)
Publicações Dom Quixote
2ª edição - Abril de 2011
128 páginas

domingo, 19 de julho de 2015

Não terá sido um inferno

O cadavre exquis pode dar numa leitura delirante que nos traz em suspenso à conta de tantas ideias a reivindicarem o lugar cimeiro enquanto se integram umas nas outras.
Ou pode dar nisto: autores que por mais que tentem não conseguem mostrar que se foram aproximando, antes usaram cada um dos seus capítulos para trazerem o livro de volta ao seu estilo e pretensões sem parecerem ter consciência do que veio imediatamente antes.
Há momentos em que o livro ganha fôlego e mostra uma narrativa em que as variações não desmontam o objectivo desta farsa.
Só que ao longo da maioria das suas páginas é dado a ler quatro conjuntos de ideias de narrativa que quase se poderiam marcar a intervalos regulares.
Não se trata de exigir cedências aos autores, apenas que cheguem a cada individual delírio irónico partindo do que veio antes.
A história varia muito o seu cenário, umas vezes estando no domínio dos Céus, outras indo parar ao "Inferno" do Estádio da Luz, para regressar sistematicamente à Assembleia da República - um verdadeiro Purgatório para o Diabo que tem de aturar as sessões encarnado num deputado.
Como esta última, há algumas ideias desta sátira que são boas. Outras têm o potencial para levarem o riso mais longe.
O problema vem de muitas outras não serem mais do que variações sobre eventos e personagens reais que não necessitam do trabalho da ficção para se mostrarem à luz da ridicularização.
Mudam-se os nomes, exageram-se uns detalhes, adicionam-se uns diálogos que não se prestam ao politicamente correcto.
A inventividade destas escolhas não é suficiente para elevar o texto acima da mistura de piadas e comentários maldosos que foram sendo ouvidos nos cafés ou lidos na internet.
O absurdo já lá estava todo e estes quatro autores viram nele uma porta para falarem do presente desalinho do nosso país.
Uma tentativa que merece o reconhecimento do activismo mas que não funciona, o que é aquilo que conta no final.


O Diabo dos Políticos (Fernando Évora, João Pedro Duarte, Miguel Almeida e Vítor Fernandes)
Esfera do Caos
1ª edição - Maio de 2014
200 páginas

sábado, 18 de julho de 2015

Literatura é reconciliação

Este é um melodrama de relações familiares que se transformam quando um casamento termina, demasiado realista por conta da estupidez humana que se torna abnegada de qualquer sentido de decência.
Amor entre marido e mulher rapidamente transformado em ódio que só se dá por contente quando destrói a outra parcela destas relações, o amor entre progenitor e filho: esse amor que deveria ser protegido e, se possível, incondicional.
Só que este melodrama não se rende à narração "de faca e alguidar", procura esse ponto mais raro e mais importante em que a destruição da família é confrontada com o reencontro dos seus elementos.
Esse instante serve para contar uma história que é, de facto, de um absoluto, quando ao fim de muitos anos de não ver o filho, um pai afastado à força prepara-se para o receber em casa.
O pai recebe-o com amor e apenas amor. O filho vem para atacar, preparado para um combate onde crê saber - sem espaço para a dúvida - qual o lado dos bons e qual o lado do mau.
Um combate travado com palavras e gestos que o filho vai tentando ferir o pai que resiste, sempre, pela força do seu amor.
Até ao momento em que até o amor a um filho dá lugar ao amor a si mesmo. O pai replica, não em retaliação, num gesto limite de auto-preservação.
Ou melhor, de preservação da dignidade do pai que sabe ser e que apenas conseguiu mostrar durante pouco tempo ao seu filho.
O combate entre os dois transforma-se em transformação própria.
O pai descobre que ainda tem em si uma centelha que lhe dá valor, depois de tanto tempo em que desistiu da vida, para ver que o amor é dádiva permanente mas não pode causar o esgotamento do ser que o sente.
O filho descobre que as certezas do seu ódio não correspondem à verdade límpida, tendo de amadurecer e enfrentar a realidade da sua própria culpa naquela relação falhada, sujeito que foi a uma manipulação.
Isso antes de entrar em cena a terceira personagem desta família. A mãe, cuja morte é o motivo pelo qual os dois se encontram.
Ela materializa-se pela carta que o filho leva ao pai e que pode considerar-se um retrato das ilusões raivosas com que alguém molda as memórias do seu passado para, assim, se justificar e se expurgar de erros próprios.
Embora também seja um relato que levanta dúvidas sobre o que verdadeiramente aconteceu entre os elementos daquela família.
Há um homem cuja entrega ao filho nos merece empatia. Ele é o mais perto que o livro está de ter um herói, mas nem mesmo o seu relato é totalmente objectivo.
Por isso mesmo o livro não termina de forma límpida, antes deixa margem à projecção de desejos que cada leitor fará a partir dos seus sentimentos individuais.
A única certeza é a que o narrador do livro reconquistou algo de si mesmo ao aliviar a emoção que guardou tantos anos.
Por pudor pessoal de falar da sua mágoa perante uma sociedade patriarcal. E, sobretudo, por pudor do seu filho a quem não quis impôr mais uma narrativa de acusadores e culpados.
O livro não termina "em bem" mas tem um momento marcante em que o diálogo se torna possível.
Acontece pelo poder da Literatura, que acaba por ligar os dois homens e, num encontro de gostos, quase os reestabelece como pai e filho.
A Literatura é, aliás, a outra grande personagem do livro, destacada e homenageada pelas muitas referências que o narrador faz às obras que julga meritórias.
Referências essas que surgem na forma de (muitas) notas de rodapé, apartes no encadeamento lógico do narrador. Que acabam por ser confissões do escritor que nesses elementos do livro vê as suas opiniões confundirem-se com as do personagem.
Jorge Araújo trabalhou a forma do livro de forma muito inteligente e com o conhecimento de utras experiências literárias modernas. Trazendo a experimentação para um patamar onde se torna acessível e convidativa a todos os públicos que o seu livro possa encontrar.


O Cemitério dos Amores Vivos (Jorge Araújo)
Clube do Autor
1ª edição - Fevereiro de 2015
150 páginas

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Fraca introdução

Eu sei que este livro foi escrito para os "jovens adultos", mas um policial é um policial e tenta os leitores.
E deveria ser um policial nórdico quanto muito com o grau de choque reduzido para o público a que se destina.
O cenário inicialmente montado promete ser o que normalmente vemos como a revelação dos segredos negros de uma sociedade habitualmente considerada ideal, rapidamente  esta se transforma num mistério liceal à americana onde a componente de relações entre grupos de maior e menor popularidade tem primazia.
A trama é relativamente eficaz, ainda que totalmente implausível, com uns adolescentes a enfrentarem e vencerem a máfia local.
Daí vem essa sensação de que o livro se inspira nas aventuras ficcionais que costumam chegar do outro lado do Atlântico e que não se compadecem com o realismo que vimos a associar aos policiais nórdicos.
Essa evocação só faz com que história revele a sua gritante falta de originalidade que mostra que a autora tentou posicionar o seu livro dentro de uma etiqueta que tem sucesso (quase) garantido quando, ao mesmo tempo, recorria a processos que destoam, por completo, desse género.
A tentativa da autora colar a sua heroína a Lisbeth Salander só demonstra que a autora não tem capacidade para criar algo que não seja um derivado.
Não importa que a autora até coloque Lumikki Andersson a brincar com essa ideia de que ela é como uma filha da personagem Stieg Larsson (com Hercule Poirot, valha-nos a presunção de Salla Simukka para nos fazer rir!), pois não é pela auto-consciência de personagem e autora que a imitação passa a ser mais meritória.
A imitação leva Simukka a escrever a sua protagonista adolescente como uma exímia lutadora, hacker e espia.
Não bastava que a rapariga não tenha idade para tal, mas ainda por cima ganhou a sua perícia nas diversas áreas completamente sozinha.
A autora nunca caracteriza a fundo Lumikki, passando o livro inteiro a sugerir um segredo profundo que a tornou naquela máquina de eficácia e secretismo quando se trata de combater o crime.
O segredo não passa de um caso de bullying a que Lumikki respondeu com violência, ou seja, nada que recupere o livro para uma história dos negros segredos da sociedade Finlandesa.
Ainda menos algo perto de ser plausível como justificação para o que lemos que ela é capaz de fazer e cuja preparação é referida como umas visitas ao ginásio.
Para um caso em que a autora está a criar uma forte personagem feminina que sirva de modelo às suas jovens leitoras e perde a mão, levando-a para o patamar logo abaixo da super-herónia.
Ter usado uma estrutura policial apenas eficiente como base para o seu drama adolescente foi, no mínimo um facilitismo literário, no máximo uma estratégia comercial.
Se a ideia era proporcionar uma introdução ao género em causa, talvez numa forma tendencialmente asséptica, a leitores mais jovens (e impressionáveis?), a autora falhou.
A simplificação acaba por não exigir algum esforço a esses leitores (nem vale a pena mencionar os que estão para lá desse ponto) que ficam vidrados na componente de angústia adolescente e não recebem o estímulo de uma trama intricada.


Vermelho como o Sangue (Salla Simukka)
Editorial Presença
1ª edição - Janeiro de 2015
216 páginas

terça-feira, 14 de julho de 2015

Atravancado

Perante um livro em que a sua autora colocou uma intenção política muito intensiva, a dificuldade está em libertar-se dessa carga para pensar o restante.
Até porque a intenção política, de consciencialização do genocídio Arménio de há cem anos atrás, é o mais interessante do livro, debatido entre uma jovem Americana de ascendência Arménia, a sua prima Turca e o grupo de personagens (entre o intelectual e o pretensioso) com que esta última se dá.
As discussões são muito informativas, pelo menos como ponto de partida para o tema, embora literariamente sofram precisamente por isso.
Os discursos não são naturais nem fluidos, valem pela sua composição que tem maior sentido como texto argumentativo do que como diálogo tertuliano.
Sendo isto o mais interessante do livro, não se pode afirmar que seja o seu núcleo. Aliás, a dispersão do livro é um dos seus grandes males.
Veja-se que estamos perante uma história melodramática em torno de quatro gerações de mulheres, parte de dois povos - Turco e Arménio - a braços com a clivagem de gerações que se cruzam num mundo aberto à modernidade - a (promessa da) Europa e os Estados Unidos da América, respectivamente.
História salpicada pela tal consciência política mas, também, por um realismo mágico que enreda (sem grande sucesso) loucura e magia.
Trata-se de um livro contado com um arreigado feminismo, que se "livra" dos homens dando-lhes mortes precoces ou fazendo-os fugir desse destino.
Infelizmente, entre tantas personagens femininas, só as duas adolescentes são devidamente caracterizadas, servindo as outras como receptáculos de características cuja pontual irradiação ajuda ao avanço da trama.
Isto inclui até mesmo um excesso de conveniência como é a aparição de um Jinn com conhecimentos que passa à mulher a quem está agarrado.
Esses conhecimentos revelam o segredo negro que afecta a mãe da "bastarda" e que vilipendia por completo o único homem digno de referência dentro deste romance de mulheres.
O segredo não é difícil de perceber - ainda que me possam acusar de ser um leitor tétrico - desde os capítulos iniciais do livro.
Os momentos em que a autora escreve de vários pontos de vista sobre acontecimentos com dezanove anos e um oceano de distância são aqueles que dão certezas de que as linhas da história não só se vão encontrar, como vão chocar com violência.
O desvio pela substancial diferença entre as memórias de Turcos e Arménios para um mesmo e terrível evento, bem como a diferença em como lidam com ele, adia a descoberta dessa falta de imaginação da autora.
Só que o desvio também obriga a autora a recorrer ao Jinn ex machina para voltar à história que tem de contar para que o romance se componha.
Para que se leve o livro até ao seu final sem desistência vale a escrita da autora que fala de Istambul com honorável poesia.
E, no meio de tudo o resto, uma curiosa história de coming of age em contextos intensos que deixaram, pelo caminho, de ser exóticos para o público português.


A Bastarda de Istambul (Elif Shafak)
Jacarandá
1ª edição - Janeiro de 2015
372 páginas

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Toda a loucura será incentivada

Nesta novela isso significa que ele fez da realidade uma porta para o interior da ficção. De lá pode testar a via contrária desta janela que julgamos ter para um autor.
Juan José Millás, o autor, escreveu um livro onde incluiu Juan José Millás, o repórter, que se desdobra num outro Juan José Millás, o ficcionista.
Chegando ao Juan José Millás ficcionista devemos aproveitar a ambivalência da palavra, tanto referindo o criar como a criatura da ficção.
Millás está atormentado pelos outros Millás, não sabendo qual deles é a aparição que o conecta ou afasta do leitor.
Há pelo menos um Millás que é uma alucinação, tal como as palavras e orações corporizadas que aparecem a Júlia, mas que está contido e tratado pela Literatura num arranjo que sana, senão o autor, pelo menos algumas das suas dúvidas.
Nada que possa acudir à peixeira que por amor a um filólogo se debate com as palavras e os seus sentidos e acaba por se descobrir por elas tiranizada.
Não que a capacidade para a expressão literária seja sinónimo de conquista de Liberdade. Millás no plural, os dois que são personagem e desdobramento ou vice-versa, continua submisso.
Pois um encontrou um tema de reportagem que o outro crê dar bons apontamentos para um romance e o outro encontrou o tema de um romance que para o outro dará uma reportagem extraordinária.
A ficção é a alucinação da reportagem (da realidade) ou a reportagem apenas um desdobramento das pistas que se recolhem para a ficção?
Lá estão de novo Millás presos entre o que é e o que daí se projecta, a linguagem e como esta se estabelece, para além de quem a estabelece.
Sendo morte assistida o tema à volta do qual deambula Millás, recusando repeti-lo porque já o tratara anteriormente no El País, pode dizer-se que a preocupação pelas alucinações não terminou.
A morte, intrinsecamente ligada à vida, oderá bem ser o desdobramento desta. Incompreensível mas desejada por uns tanto quanto outros desejam a vida plena.
Sem sequer referir os postulados das religiões, pode bem ser que a morte seja outra vida, inexprimível por enquanto.
Júlia, a mulher louca é-o porque recebe a visita de palavras que lhe pedem ajuda ou que, simplesmente, copulam em frente a ela.
Pode-se não classificar também assim aquele Millás que se vê preso na fronteira destas fitas de Möbius do poder da palavra?
O Millás que é autor continua de fora, protegido até certo ponto, mas por ser leitor de outros acaba por se transformar num leitor de si mesmo e estar captivo das suas deambulações dentro desta novela.
O seu narrador e o desdobramento deste devem continuar a instigá-lo à interrogação. E por lá continuarão eternamente, existindo em ambos os estados (realidade e alucinação ou impossibilidade e concretização), como o Gato Schrödinger.
Só que ao invés de abrir a caixa, trata-se de fechar o livro. E nem então saberemos qual o estado de Millás, tal como o autor - que fez uma personagem com o seu nome e descobriu que esta se desdobrava - não o soube quando terminou
Caso contrário não valeria a pena Juan José Millás ter escrito este livro que se fez mostrando o seu processo de criação.
As dúvidas que o fizeram avançam estão à vista porque a interrogação se tornou necessária aos passos seguintes de Juan José Millás.
Millás, autor em definitivo, que se interroga sobre a pertença da voz que se alude ser do escritor, mas que é de um narrador que partilha nome (que não identidade) com ele e ainda com um personagem.
Interrogando-se, Millás voltou a descobrir que tem de continuar a descobrir formas de olhar e de transmiti-las pelas palavras que retorcem na imaginação.
Assim consegue provar a quem o leia que as palavras continuam a ter poder, venham elas em que modalidade venham, pela mão de quem Millás seja.
Seja ele personagem, narrador ou autor, confia-se no trilho de Juan José Millás. E pede-se-lhe que o continue a traçar!


A Mulher Louca (Juan José Millás)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Agosto de 2014
192 páginas