domingo, 26 de fevereiro de 2012

O miolo, finalmente

O segundo volume na saga de Dean Koontz é um livro superior ao que o primeiro livro faria supor.
Com o cenário e as personagens centrais estabelecidas, Koontz vai atrás da complexidade que se reconhece a Frankenstein, explorando as fronteiras ténues entre genialidade e loucura e entre humanidade e monstruosidade.
Só que, durante a maioria do livro, o Monstro não está em cena, nem sequer é referenciado. A história segue os dois detectives e uma quantidade crescente de personagens secundárias, o que obriga a olhar para o facto de que o recurso aos personagens de Mary Shelley são uma forma de poupar páginas de contexto e de apanhar os leitores já a meio caminho do conhecimento das personagens.
Esta saga poderia (deveria, até) ter sido uma construção de raíz de um universo novo, o que a pouparia às comparações sistemáticas.
Essas considerações mais alargadas sobre a natureza da saga são inevitáveis, creio eu, mas depois de se aceitar a dose de aproveitamente comercial envolvido,volta-se à constatação inicial de que este livro tem mais substância do que o anterior.
Sem dúvida que este é o miolo da história, mesmo que continue a acrescentar mistérios e personagens cujas correspondentes narrativas só ficarão resolvidas nos próximos livros.
Aqui a expectativa toma o lugar dos eventos o que levará a que o progresso na intriga pareça estagnado. Isso é bom para o trabalho do escritor, mesmo se (especulo eu) seja mau para a maioria dos leitores que desejam saber o que acontece.
Para ele, o interesse geral é mantido com a adição de uma figura guardada num tanque com forma de caixão e de uma criatura ainda por revelar que vive em túneis debaixo da lixeira onde Victor Helios se livra dos cadáveres que a sua actividade vai deixando pelo caminho.
Mas são as criações de Helios menos resguardadas pelo mistérios que transformam realmente o livro. Randal Seis e o padre confessor de Helio transitam do volume anterior e a ele juntam-se o casal de assassino Benny e Cindi.
Este conjunto traz ao livro uma reflexão sobre a necessidade de conciliação que é inata ao ser humano e que surge mesmo perante a construção de uma distopia baseada em máquinas biológicas desprovidas de sentimentos.
Mas a busca pela felicidade de ter o acolhimento de uma mãe, de ter uma crença superior às funções primárias ou de ter a responsabilidade da maternidade são complementos naturais a uma vida desenhada para servir propósitos de lógica purgada de tudo o resto.
São, mais ainda, instintos benignos que surgem numa população cujo único instinto primordial revelado até aí é o da violência.
As criaturas têm um gosto pelo assassinato - mesmo assim reservado apenas a alguns e por ordem estrita de Frankenstein - e pelo sadismo da morte ritualizada - por parte da população das castas mais baixas da nova espécie que desmembram os cadáveres para satisfazer brevemente os instintos de morte.
A ignorância de um dos dois extremos inatos à condição humana é o fundamento do falhanço anunciado das perspectivas de Victor Helios. Esse elemento, um inimigo com igual potencial ao de Deucalião, é o que dá vigor a uma saga que deixara dúvidas.
Este miolo da história de Koontz, não sendo totalmente original, é bem vindo. Só não faz sentido que só surja num segundo livro, pois seria mais lógico que Koontz tivesse saltado a perseguição a um serial killer do primeiro volume para começar desde logo a construir o grande vilão da saga e a mostrar as falhas nos seus planos de domínio do mundo.
Com isso teria, também, evitado adicionar tantos elementos à história que obrigaram a ter de alongar a trilogia para cinco livros de forma a resolver todas as pontas soltas.


Frankenstein - A Cidade das Trevas (Dean Koontz)
Contraponto
1ª edição - Setembro de 2011
256 páginas

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Economia à italiana

Andrea Camilleri percebeu que o mundo da alta finança é material de primeira para um romance irónico. Sobretudo quando esse mundo se cruza com o mundo das paixões tresloucadas que dá cabeçalhos sangrentos que vendem abundantemente.
Colocar os dois ao mesmo nível é uma forma de ridicularizar o mundo financeiro, mostrando que também este é feito de casos de promiscuidade (entre a banca e empresas), de adultério (entre directores e oportunidades de conseguir dinheiro em negócios paralelos) e de sangramentos (dos seres humanos pelas corporações anónimas).
Uma forma de mostrar, também, o quão sedentos de podridão andam tanto os que lêem ambos os tipos de jornalismo.
Isso é comum ao mundo inteiro, mas certamente é mais acentuado num país que teve Berlusconi como primeiro-ministro que misturou o abuso do poder com os escândalos sexuais. Dele para baixo, a mistura só podia ir tornando-se mais promíscua e é o próprio Camilleri a reconhecer que as personagens que criou foram facilmente inspiradas pelas crónicas judiciais italianas.
A Intermitência não é só isso, nem se esgota numa visão crítica do nosso vizinho europeu. Trata-se de um romance de acasos e reviravoltas, onde todos usam golpes baixos contra quem querem como parceiros de cama.
O calculismo é uma arma sempre à mão, mas as tolices da paixão são os grandes móbiles para que em vários momentos tal arma tenha de ser usada.
Camilleri nunca é um deus simpático com as suas criaturas, por isso não lhes permite que sejam somente elas a dominarem sobre as outras.
Aquele que julga ter vencido - e não vale a pena acreditar na experiência acumulada, pois há surpresas para lá da expectativa do lugar-comum de histórias como esta - não tem direito a continuar a sorrir quando lançou todos os outros para um mar de lágrimas onde acabarão afogados.
A economia italiana é uma questão vexante pela qual a sociedade quer um castigo severo. E Camilleri serve-lhes esta apetitosa vingança literária.
Esta é, no fundo, a forma substancial de contar a história em que uma mamma saída de uma igreja e sentindo-se abençoada por Deus despeja um prato de pasta na cabeça de Berlusconi. O que nunca aconteceu e constitui um enredo ridículo admito.
Já a forma como Camilleri imagina a vingança do destino sobre a canalhada é de uma admirável elevação que faz mais danos às reputações das figuras que aqui são representadas do que os reais ataques a tais protagonistas.
Aos leitores dará, também, mais prazer, embora admita que para os que expressam mais activamente a indignação com tais situações tal prazer não chegue a dar consolo.



A Intermitência (Andrea Camilleri)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Julho de 2011
184 páginas

domingo, 19 de fevereiro de 2012

A dignidade da submissão

Os limites da condição amorosa, tanto masculina como feminina, podem ser definidos, inesperadamente, na história de um bancário que se reforma e da sua traidora mulher.
Por mais que os papéis que desempenham pareçam evidentes, as ambiguidades de ambos são fontes de extraordinárias descobertas da forma como cada um tolera as mais ferozes situações em que o compromisso do casamento os coloca.
A resistência dele vem ao de cima quando a traição dela é vivida mais abertamente. A dignidade dela vem ao de cima quando a dele está a esgotar-se.
Claro que, na maior parte do tempo, o leitor achará que ele é um velho e entristecido frouxo e que ela é uma maníaca insensível e detestável.
Mas em momentos diferentes, para lá de qualquer obrigação que o casamento imponha, ambos revelarão o amor que têm dentro de si e que tiveram de esconder do mundo por motivos que só a dureza deste explica.
Ele resistirá a todas as traições para que lhe seja concedido o privilégio de observar o ritual de limpeza em que ela se dedicava ao corpo mais do que qualquer amante. Esse ritual representa uma entrega pessoal excepcional, muito superior à do sexo.
Com isso ela recompensa o homem que compreende que as necessidades físicas da sua mulher estão para lá da sua capacidade de lhes responder, não porque ele seja insuficiente como amante, mas porque ela é insaciável.
Ela só revelará o grau do seu compromisso sentimental quando ele estiver demasiado doente para se valer a si mesmo. Em vez de contratar uma enfermeira é ela que responde a todas as necessidades do marido.
A partir daí deixa de sair da beira do marido e acaba mesmo por perder a compostura que mantinha atentamente com o seu ritual.
Só então percebemos que esta mulher guardava ainda amor ao seu marido e que, muito provavelmente, a cedência que fazia para que ele presenciasse o ritual era a única forma que encontrava para expressar esse sentimento porque sabia que, por via do sexo, tudo o que tentasse expressar pareceria insuficiente.
Só falta entender, pois, o tal fato cinzento. O fato que ela usou na primeira vez que viu o seu marido e o fato que usa na última vez em que ele a conseguirá ver a ela. O fato que é o de pré e pós-luto, aquele que lhe dá uma dignidade e que contém (sem disfarçar) a sua feminilidade.
O fato serve de teste para ela encontrar homens que respeitem o seu momento de perda, que não se ofereçam para a consolar quando o corpo do marido ainda mal arrefeceu.
Sim, porque este é o segundo marido de Adele mas não será o último. E por mais que ela o tenha amado, ela não poderá viver sozinha ou deixar de satisfazer os prazeres do corpo.
Ela tem de encontrar um homem sério e decente para lhe entregar o seu respeito e, depois, o seu amor. Mesmo se também o acabará por trair por imperativos biológicos.
"Cornos" e lágrimas são os elementos essenciais desta história que se ergue pelo talento de um escritor que tem a inteligência de saber que toda a grande literatura precisa de histórias que são fonte inesgotável de boatos e maus romances. Mas que servem também a que um bom escritor as use para olhar a psicologia humana em alguns dos seus momentos mais reles e, por isso, extraordinários.


O Fato Cinzento (Andrea Camilleri)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Abril de 2009
128 páginas

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Cada vez melhor

Sequelas e prequelas são tácticas mais propícias ao Cinema e que, mesmo assim, geram desconfiança. Mas se a sequela de O Perito já tinha sido melhor que o original, esta prequela é o melhor dos três livros e um sinal da inteligência e adaptabilidade do seu autor.
Este seu thriller é intenso e imparável, precisando apenas de três personagens e uma selada carruagem de metro para levar a sua trama adiante.
Uma aventura mais solta, menos constrangida com o lento construir de personagens ao serviço de uma trama que acaba por chegar.
Aqueles que ainda estão por iniciar a sua viagem com o autor farão bem em começar por aqui, encontrando um conjunto de sugestões que prometem mistérios à espera de serem resolvido nos livros que se seguem.
As capacidades dos adeptos entrevêem-se e o leitor mais atento saberá orientar a sua desconfiança para detalhes que surgem, enquanto o leitor já iniciado limitar-se-á a entender as origens do que se passa.
O livro é curto porque se baseia em acção e não em explicação. Os acontecimentos estão em movimento e logo nos preocupamos com as personagens e não com a plausabilidade da construção das linhas mais importantes do universo fantástico que suporta os seus livros.
A dedicação aos personagens já estava nos livros anteriores mas aqui o equilíbrio entre elas e a trama maior do universo que crious está muito mais bem urdido.
São detalhes e não ponderações psicológicas que definem os personagens e isso move a própria acção.
No entanto, a maneira como Robert Finn lida com o seu universo é a mesma. Ele está mais interessado em preservar a rica ideia que teve do que fidelizar os leitores a uma personagem.
A ideia está para lá da sobrevivência de uma personagem ou outra e essa é uma liberdade que todos os escritores devem preferir numa série como esta.
Ao preservar a ideia e ao aplicá-la a vários cenários inventivos que não se tornem repetitivos, ele aproveita para mudar a sua escrita a cada cenário e, muito sinceramente, sente-se que a sua abordagem melhora passo a passo.
Esta prequela, como a sequela, parecerão menos volumes em continuidade do que aventuras paralelas dentro das hipóteses do seu universo.
Esse carácter pleno de adaptação, progressão e inovação que Robert Finn aplica à sua série têm-na tornado mais interessante.


Submundo (Robert Finn)
Publicações Europa-América
1ª edição - Dezembro de 2011
144 páginas