terça-feira, 28 de julho de 2009

Indesejavelmente familiar

Ninguém está imune a sentir-se compelido à leitura de um livro por uma qualquer campanha de marketing ou evento especial.
Neste caso, tratou-se da adaptação ao Cinema da obra O Solista.
No entanto, ao inciar a leitura, deparei-me logo com um irritante sentimento de familiaridade que o próprio autor trata de confirmar ao fim de 40 páginas.
Essa familiaridade vem da génese desta obra, uma extensão de uma coluna jornalística sobre uma "figura caricata" encontrada nas ruas da cidade, algo que Joseph Mitchell fez de forma inovadora nas décadas de 1940 e 1960 com O Segredo de Joe Gould (cuja capa da edição portuguesa podem ver ao lad).
Esse sentimento prejudicou o apreço que poderia sentir por esta obra, já que tornou a comparação inevitável. E, como podem imaginar, essa comparação foi sempre desfavorável a esta mais recente leitura.
Não tanto pela qualidade do trabalho em si, mas pela direcção que ele leva.
O Solista fala de Nathaniel - o génio musical perdido na sua loucura - e torna-o no centro de uma narrativa que é, em muito, o relato das tribulações do próprio jornalista ao lidar com Nathaniel e com o tratamento que a cidade de Los Angeles tem para a doença mental e para os desalojados.
Pelo contrário, O Segredo de Joe Gould, era quase um romance centrado nas singularidades e nas vivências da sua personagem central, uma personagem tão intensa e curiosa que enchia páginas sobre si mesmo sem dificuldade, que interagiava e era apreciado por diversos dos artistas da sua época à conta da sua obra monumental que pretendia contar a história oral do mundo.
Além disso, tinha uma qualidade narrativa plena de inventividade que aproximava a disciplina jornalística (ou colunística, se preferirem) da ficção. Já O Solista está demasiado perto da simples reportagem, longa - e de prestígio, talvez - aberta a muitos temas mas que por ser tão abrangente perde o leitor que pretende desvendar o que sucede com o Solista do título e tem de receber uma miríade de informações a mais.


















O solista (Steve Lopez)
Estrela Polar
1ª Edição - Novembro de 2008
250 páginas

domingo, 26 de julho de 2009

Continuar no rumo certo

Parece-me um pouco difícil falar de um volume intermediário de uma saga - neste caso, precisamente, uma trilogia - sem me referir directamente ao volume que o precede.
Por isso mesmo vou ter de dizer que O Punhal do Soberano é uma continuação à altura de Aprendiz de Assassino.
Agora que o protagonista teve de se tornar, pela força das circunstâncias, muito mais do que um simples rapaz, a história consegue colocá-lo, e às suas singularidades, no seio de um enorme alvoroço, cujos eventos não parecem poder facilmente serem desligados da sua própria existência. Uma existência que, por essa mesma razão, está ameaçada.
Não se trata apenas da sua vida ameaçada pelas intrigas palacianas. Trata-se da sua vida pessoal e das suas opções, ameaçadas que estão pelo facto de ele se ter juramentado ao seu rei e, assim, nunca ser verdadeiramente livre para escolher ou viver a menos que o consentimento do rei corresponda aos seus desejos.
Mais ainda, trata-se da ameaça à sua vida com os outros, culpa das consequências das decisões que toma sem considerar as circunstâncias que o envolvem. Essas consequências afectarão todos aqueles a quem ele devia maior gratidão - ou, pelo menos, obediência - e deixá-lo-ão envergonhado e isolado.
A sua vida condicionada, a par da sua secreta condição de assassino, obriga-o a viver numa solidão constante. Mesmo quando alguém se tenta aproximar-se dele, são os seus segredos a constituir a barreira que nunca poderá desaparecer por completo, com risco de colocar em perigo mais vidas além da sua.
A Saga do Assassino é um retrato cada vez mais intenso e brilhante da solidão humana. A desolação da personagem principal merece-nos compaixão e admiração, desolação essa vivida em sofrimento resiliente.
É um tal retrato sem deixar de ser uma obra plena de imaginação e ritmo, uma obra de fantasia cuja intriga é feita de contornos heróicos mas também políticos, uma obra moderna e inteligente.
Cruel é saber que a próxima parte desta obra só chegará em Outubro à nossa mão. Mas certamente que a espera valerá a pena.


















O punhal do soberano (Robin Hobb)
Saída de Emergência
1ª Edição - Maio de 2009
384 páginas

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Beber desta vida

A Seco é uma conversa entre amigos a mesa de um bar com uma bebida pairando desconfortavelmente entre os dois.
Uma confissão sem receios que Augusten Burroughs nos faz, desabrigada e profundamente honesta, como se nós fossemos seus amigos profundos.
Se não nos chocar esta impúdica violação de uma luta privada, se não nos chocar aceitar escutar este relato, então seremos capazes de nos enternecer e de nos rir, de ficarmos subitamente desconfortáveis e de sentir orgulho.
Porque há momentos em que a história de Burroughs é risível, outros em que é de uma crueldade que não julgaríamos possível alguém empregar contra si próprio.
E se de facto o tivéssemos à nossa frente, se nos pudéssemos debruçar sobre a mesa para lhe tocar, não saberíamos se o haveríamos de abraçar ou esbofetear!
Conhecer tão por dentro a vida deste homem e a luta deste homem com a bebida - com vitórias, derrotas e novamente vitórias, uma montanha russa de constante rendição, esporádica auto-comiseração, súbita coragem e recuperada determinação - é um aviso tanto como é um prazer de ler.
A confissão, verdadeiramente "a seco", sem ser rude nem brutal mas desarmante na sua frontalidade tranquila, não mais envergonhada mas de uma compreensão interior que receamos só poder ter origem numa destruição prévia, é um tour de force quer para quem a faz (e assim a purga em definitivo) e para quem a ouve, pois agora partilha uma verdade longe de ser facilmente pacificada.
Depois de A Seco, nenhuma bebida será somente uma bebida, será toda uma reflexão, breve talvez, mas nem por isso menos significativa.


















A seco (Augusten Burroughs)
Bico de Pena
1ª edição - Julho de 2008
264 páginas

terça-feira, 14 de julho de 2009

Conhecer e gostar dos livros

Fotografia respeitavelmente copiada do blog Pó dos Livros
por falta de máquina própria
.

Este sim é um caso para afirmar que "No meu tempo não havia livros assim!".
E por "livros assim" entenda-se um livro infantil que expressa ao mais infímo detalhe a relação que se deve ter com um livro, não apenas com o seu conteúdo, mas também com a sua existência física como objecto.
O Incrível Rapaz que comia livros trata de forma grandiosamente sugestiva e imaginativa da relação que se estabelece com um livro, do prazer que ele nos dá, a par do conhecimento. Trata também da forma como encaramos o livro, o respeito e o cuidado que lhe prestamos.
Um livro que ensina o prazer de lidar com o que se lê mas também com a forma como se lê.
Afinal de contas, devorar - no seu sentido figurado - pode ser tão nocivo quanto devorar - no seu sentido literal - um livro. Antes é preciso saber estabelecer uma relação com cada um destes objectos singulares, descobrir-lhe o exterior para lhe desvendar o interior.
Um livro sobre a boa prática do livro, não para ensinar "maneiras", mas antes para cultivar o prazer de fechar este livro e procurar outro para continuar a crescer literariamente (e não só, claro).
Um livro singularmente escrito, tao repleto de uma surpreendente imaginação que não deixará de encantar os leitores adultos; e admiravelmente ilustrado, encantatório e original, impossível de ser descrito mas obrigatório de ser olhado.
Um livro pensado para o prazer do livro até ao mais ínfimo detalhe - repito-me, é verdade, mas a razão para tal é indesmentível - com aquela divertida dentada que vem na contracapa da edição e que podem ver na foto.

Já agora, aconselha-se que vão descobrindo o livro aqui, numa iniciativa igualmente divertida e original que dá um renovado prazer ao livro com uma leitura alheia que se funde com a nossa própria.


















O incrível rapaz que comia livros (Oliver Jeffers)Orfeu Mini/Orfeu Negro
1ª edição - Março de 2008
36 páginas

sábado, 11 de julho de 2009

Mais ou menos inspirado

http://www.leninimports.com/gustav_klimt_kiss_shop_sculpture_1.jpg
Escultura desenvolvida pelos estúdios Parastone
baseada na obra Der Kuss de Gustav Klimt

Acho que poucos ficariam indiferentes à capa deste livro, uma reprodução do magnífico quadro de Gustav Klimt. Poucos deixariam de se interrogar sobre o que se escondia para lá dela.
Foi assim comigo, ainda que refreado por aquilo que era a minha anterior percepção da vida de Gustav Klimt, uma constante alucinação comportamental, desvairada e incoerente, num registo excessivamente ridículo de John Malkovich (dir-lhes-ia para verificarem por vocês mesmos, não fosse Klimt de Raoul Ruiz uma das mais penosas experiência cinematográficas que tive em tempos recentes).
Começando a ler, torna-se rapidamente óbvio que a obra tratará com admiração o pintor, pois foca-se na vida de uma sua discípula e, evidentemente, futura amante - e digo-o apesar de não ter chegado a essa parte do livro, mas sendo evidenciado pelo subtítulo e pela sinopse do livro.
Além disso, a autora escreve para destacar o ambiente glamouroso e sedutor da Viena dos finais do século XIX e início do seguinte.
Sem desprimor algum no que digo, trata-se de um livro que procura exponenciar a beleza dos ambientes de forma a exponenciar a beleza de um romance que assim será mais apontado ao público feminino.
É natural que Der Kuss continue a inspirar muitas obras.
E, como sempre, umas merecerão mais atenção que outras.
Mas, acima de tudo, é a admiração do próprio quadro que vale todo o nosso tempo.
Não seja por mais nada, esperemos que este livro consiga isso mesmo.


















O Beijo - A paixão de Gustav Klimt (Elizabeth Hickey)
Editorial Presença
1ª edição - Maio de 2009
274 páginas

terça-feira, 7 de julho de 2009

Uma viagem pela reflexão

Menschenfresserin de Leonhard Kern

Não sou um leitor habitual de livros de viagens mas quem me conhece sabe que convivo há muito com uma obsessão - saudável e distanciada, descanso-vos desde já - pela prática do canibalismo, sobretudo com as suas implicações morais contemporâneas.
Por isso não pude resistir a ler este livro onde o aventureiro australiano, Paul Raffaele, procurava os últimos praticantes de tal rito.
Ao encontrar motivações tão distintas para o canibalismo, da manutenção das práticas tradicionais à sua utilização como forma de domínio pelo medo ou da superação das regras morais da sociedade à simples delícia gastronómica, o que Raffaele consegue é um retrato da complexidade das próprias crenças e valores que regem culturas (ou mesmo sub-culturas) bastante diferentes daquela em que vivemos.
Raffaele acaba por reflectir ele próprio sobre como tal acto se reflecte nele, mostrando alguma abertura de espírito à razão de alguns povos mantêm a prática do canibalismo, enquanto condena a barbárie cometida no Uganda contra as crianças.
É possível, a um ponto, discordar dele, não nestes dois casos inescapáveis, um perfeitamente injustificável, outro impossível de condenar, mas quando ele opina sobre os Santos canibais do Ganges. Mas, no geral, o que ele manifesta é uma concepção muito certeira da forma como a sociedade ocidental se confronta com estes diversos actos de canibalismo.
Além da discussão da formatação e diferenciação do pensamento, o prazer deste livro está, em grande parte, na forma como Raffaele consegue enriquecer o seu relato com informações histórias, geográficas ou sócio-políticas, sem deixar de vincar o relato de uma forma pessoal, quer opinativa, quer do relato das situações mais pessoais que viveu.


















Entre os canibais (Paul Raffaele)
Publicações Europa-América
1ª edição - Abril de 2009
282 páginas

domingo, 5 de julho de 2009

Um negócio como outro qualquer

Peguei com deleite neste A Loja dos Suicídios que tem um título - e um trabalho gráfico - delicioso.
Mas com igual confiança pois era já o segundo livro de Jean Teulé que me preparava para ler e perante o primeiro, esperava tudo menos desapontamento.
E confirma-se que se trata de mais um livro indispensável a quem pretende rir-se do mundo que o rodeia, tanto graças a um humor negro certeiro como a uma ironia que se revela discretamente em subtexto.

Assim que se entra neste negócio de família que garante o sucesso da morte aos que falharam na vida, deliciamo-nos sem parar - literalmente, pois é impossível pousar o livro antes de lhe atravessar as suas 160 páginas - com esta história mórbida ao ponto do gargalhar.
As ideias um pouco tresloucadas, histriónicas de forma provocatória e radicais para a moral vigente, são um compêndio de humor "de morrer a rir".
Por detrás de tudo isto encontra-se, pois, uma crítica à sociedade actual, à nossa percepção da felicidade e da maneira como a buscamos ou como, pelo contrário, no rendemos ao conforto da sua falta.
Não é por acaso que há muito mais sinónimos para tristeza do que para felicidade. Este é um sentimento cultivado com ênfase - e prestigío, será? - nas Artes como no Mundo.
De certa forma caminhamos para a capitalização do infortúnio alheio até que atinjamos este ponto, da venda do suicídio.
Claro que estamos ainda um pouco longe de termos um parque temático onde se paga para ser o alvo em vez de alvejar patos, mas a partir das oito da noite vê-se facilmente que a desgraça dá audiência, a desgraça vende, a desgraça é um negócio.
Torná-lo num negócio como outro qualquer é, pois, o burlesco e o génio deste livro.

O livro está, entretanto, em fase de passagem ao cinema de animação.
Prevê-se mais uma delícia para os que leram este livro, para os que gostam da imaginação de Tim Burton ou para quem guarda na memória as histórias d'A Família Addams.
Eu, culpado em todas as três acusações anteriores, cá esperarei ansiosamente o meu lugar n'A Loja dos Suicídios!


















A Loja dos Suicídios (Jean Teulé)
Guerra e Paz
1ª edição - Março de 2008
160 páginas