terça-feira, 29 de setembro de 2009

Uma crónica de Tróia

Dares Frígio é um cronista de uma guerra que conhecemos bem de textos míticos.
A sua narrativa é sóbria e cheia de informações que a tornam numa fonte de enorme relevância e credibilidade histórica.
Literariamente o texto não é particularmente rico ou relevante, mas é eficaz ao tornar mais palpáveis e reais as personagens que sempre me pareceram ter nascido de uma imaginação genial.
Aqui ausentam-se os deuses e surgem as fraquezas humanas. Sem a influência dos deuses, Heitor, Aquiles e Hércules estão mais expostos às suas próprias falhas e motivações.
Os heróis são aqui mais humanos do que nos lembramos deles, levados à guerra pelas suas fixações com mulheres. São, afinal, personagens com que podemos finalmente relacionar-nos e não só admirar.

O estudo introdutório de Reina Pereira é muito rico em informação, mas serve mais os propósitos dos estudiosos.
Não tanto pelas citações que invocam os textos clássicos mais conhecidos, mas porque envolve uma pesquisa que não serve como introdução ao leitor comum.
A quantidade de citações em grego original ou a avaliação das qualidades sintáticas exigem conhecimentos mais vastos.


















Da História da Destruição de Tróia (Dares Frígio)
Publicações Europa-América
1ª Edição - Setembro de 2009
138 páginas

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Da vida cruel

Veneno é um pequeno texto de uma enorme crueldade.
A luta de uma criança estropiada contra uma cobra é o retrato da crueldade da própria vida.
O rapaz e a cobra começam a luta pelas suas próprias vidas, ele apertando-lhe a cabeça com o único braço que tem bom e ela esmagando-o com o seu aperto.
Ele busca ajuda na aldeia mas os seus pais fogem do que lhes parece um monstro.
Ele busca ajuda na aldeia mas o feiticeiro local anuncia aquilo como um castigo divino.
Ele busca ajuda na aldeia mas os homens temem aproximar-se dele mesmo podendo salvá-lo facilmente.
O rapaz está sozinho, mas mesmo contra todas as adversidades luta e defende a vida que mais ninguém parece apreciar.
Não se trata apenas do combate contra a cobra, trata-se do combate pelo significado da sua vida, ele que só com um braço sonhava ser fantocheiro. Não só sonhava como conseguia e encantava as restantes crianças, mesmo que os adultos não lhe dessem valor algum, mesmo tendo sido o barulho do seu último espectáculo de fantoches a atrair a raiva da cobra.
E o rapaz luta sem desistir, é a sua vida mesmo que ninguém de entre os que observam a cena pareça apreciá-la.
Até que ele se deixa convencer totalmente, ele que já evitara pedir ajuda ao sacerdote para não lhe interromper as orações, finalmente deixa que a cobra o morda.
Então percebemos... Não é a morte que derrota alguém, é a descrença, a desistência.
Quando se consente que não há mais propósito em lutar, então uma pessoa derrotou-se a si mesma, ainda que tenha vencido a luta pela sobrevivência.


















Veneno (Saneh Sangsuk)
Ambar
1ª Edição - Abril de 2002
64 páginas

sábado, 26 de setembro de 2009

Meticuloso

Não são infundadas as afirmações de "viciante" para o livro de Stieg Larsson, embora seja pelos motivos menos óbvios se olharmos para a actual vaga de bem sucedidos thrillers.
Larsson não tem de recorrer a twists quase mirabolantes para compôr o seu policial.
Pelo contrário, quem tem o hábito de ler este género encontrará diversos pontos em que as suas próprias deduções coincidirão com aquilo que o autor acaba por resolver na sua trama.
Mas é na própria construção meticulosa dos eventos, na preparação sistemática da investigação e na composição cuidada da expectativa - e sua posterior resolução - que Stieg Larsson torna este livro numa obra a que não se consegue fugir.
A construção de Os homens que odeiam as mulheres é demorada e cuidada, clássica mesmo.
A complexidade e extensão das relações e eventos obrigam à atenção do leitor, obrigam a que este se embrenhe no livro. O livro é, ele próprio, um desafio.
E, claro, a maior aposta é, como todos os grandes romances, independentemente do seu género, na composição das suas personagens e das relações entre elas.
Independentemente dos eventos em torno deles, são Lisbeth Salander - uma memorável personagem da literatura - e Mikael Blomkvist, as suas vidas e a sua aproximação tão singela quanto perturbada, que importam. A importância deles é maior do que a simples resolução do mistério e de todos os seus graus e interstícios, embora isso mesmo não seja negligenciável.
Talvez por isto mesmo se justifique o sucesso do livro, porque exige dos leitores não habituados a este tipo de narrativa bastante mais do que o habitual, não chegando a nenhum ponto onde simplesmente corta com toda a lógica anterior. O leitor tem de estar empenhado até ao final.
O leitor precisa disso, precisa de voltar a sentir que o romance que lê investe tanto nele como o leitor no romance.
À conta de ser tão meticuloso com aquilo que proporciona ao leitor é que o livro é tão viciante.


















Os homens que odeiam as mulheres (Stieg Larsson)
Oceanos
2ª Edição - Novembro de 2008
544 páginas

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Uma experiência

[The+Little+Men,+Reality+Shoe,+2004,+videoinstallation.jpg]
Cena da instalação vídeo "The Little Men" (The Blue Noses Group)


Este romance de Lydie Salvayre é uma experiência que se torna imensamente difícil de classificar, de resumir de forma perfeitamente explícita.
Isso mesmo torna este romance tão interessante de seguir, ainda que agora me debata perante aquilo que direi para tentar passar essa mesma percepção.
Este é o relato de uma viagem turística pelos lugares mais pobres da Europa, pontos exóticos para a classe burguesa.
Só que a autora não está aqui para falar dos guetos nem dos eventos exteriores que se podem visualizar.
Aqui o que interessa são as dinâmicas do grupo que se forma, ele próprio uma mistura complexa de personalidades e formas de estar.
Do escritor intelectualmente superior à analfabeta mulata de quem decidem tomar conta, passando pelo condutor do autocarro que provém dos bairros que eles se propõem visitar, o grupo parece fazer o retrato mais abrangente da sociedade, capaz de discutir a precisão de Nietzsche enquanto usa o exotismo da viagem como catalisador sexual, capaz de discutir teoricamente as razões de toda a pobreza que se espraia do lado de fora e sem ver, mesmo à sua frente, a capacidade que todas as pessoas têm de sentir e de se encantar, independentemente da sua condição.

http://images.telerama.fr/medias/2009/08/media_46181/les-secrets-d-ecriture-de-marie-helene-lafon-et-lydie-salvayre,M25610.jpg
Lydie Salvayre, por Léa Crespi

O que Lydie depois faz é escrever uma espécie de confissão permanente da sua consciência de escritora, falando com ternura ou ironia das suas criações. Fazendo reparos de quem sabe as regras de como montar um programa televisivo – é disso que estamos próximos, um reality show em que os voyeurs-leitores estão vidrados nos voyeurs-personagens - e apesar de ter de as cumprir consegue escapar à sua opressão.
Lydie vai desmontando a própria lógica da construção ficcional, como que dando conta ao leitor das falhas que são, afinal, intencionais e que levam o leitor a desafiar as ideias fáceis de formar sobre aquilo que vai lendo.
Este livro é uma verdadeira experiência em todos os seus níveis. Uma experiência que, a ter de ser comparada, apenas poderia ser com aquilo que Michael Haneke faz nos seus filmes. Uma experiência social, escrita para a geração que tem a televisão como motor mais comum.
E ao fim de dois livros, devo dizer que, mesmo não vendo Lydie Salvayre como uma grande escritora – não confundir com ver como má escritora - é certamente uma desafiante experimentalista a ter em conta.


















As boas consciências (Lydie Salvayre)
Terramar
1ª Edição - Janeiro de 2002
132 páginas

domingo, 13 de setembro de 2009

Demasiado hype faz mal

O O Caso das Mangas Explosivas chegou-me às mãos com alguma sorte e quando, finalmente, chegou a sua vez de ser lido, suponho que estava pronto para uma revelação de dimensão considerável embora, confesse, o livro tivesse falhado em despertar-me o interesse.
Mas não havendo crítica que não desse conta do magnífico que o livro é e tomando nota dos comentários tão ilustres e elogioso que alguém como Le Carré fez, haveriam de anunciar algo inesquecível.
Mas o hype faz mal a tudo, como aqueles que viram o filme com esse nome exacto bem saberão.
Aquilo que acabei por ler foi um curioso romance, inteligente na sua sátira aos medos e desejos dos ditadores que se munem do fanatismo religioso (mas de todos os ditadores em geral) para melhor controlar o seu país.
Há algo de perfeitamente burlesco na paranóia que esse ditador consegue impôr a si mesmo, baseando-se em todos os factores errados quando na verdade todos aqueles que o rodeiam realmente o tentam matar.
Há algo de perfeitamente nonsense na forma como um país vai lidando com os seus prisioneiros e os seus heróis, ao ritmo das vontades de cada novo líder e das suas pretensões (ou falta delas).
São boas ideias, onde a crítica velada tem os seus efeitos certeiros, com pormenores que extravasam a crítica da ideologia ditatorial para falar da de todos, como na crendice que rege o nosso General Zia, que abre o Corão à sorte para encontrar uma passagem que lhe sirva de "horóscopo para o dia" (é assim, aliás, que ele deduz que o querem matar).
Mas além dessa sátira há uma nuance dramática sobre a herança de um pai - militar que se suicidou - e o comportamento pessoal - amoroso, por exemplo - contra a conduta militar que parece um pouco fora de tom.
Hanif não joga as suas peças com igual desenvoltura e o romance parece perdido entre duas possibilidades.
É uma boa leitura mas insuficiente, seja culpa do hype ou não. Mas parece-me que foi a vontade de dar ao mundo uma visão caricatural das ditaduras e um conhecimento de uma literatura praticamente desconhecida que levou a que se gerasse tanto burburinho.


















O caso das mangas explosivas (Mohammed Hanif)
Porto Editora
1ª Edição - Julho de 2009
336 páginas

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Há momentos em que convém

Alguns amigos meus têm estranhado por me verem a ler esta saga, num misto de perplexidade de me encontrarem com um género que me é pouco habitual e julgamento crítico de superioridade intelectual.
Há mais do que um motivo para que tal aconteça, mas deixarei aquele que se possa apresentar de forma concludente.
Esta saga aglutina características tão diversas de uma forma coerente e capaz, talvez não perfeita em si mesma, mas perfeita perante o objectivo que a rege.
É uma obra despretensiosa, que se propõe a cativar um leitor pelo divertimento que lhe proporciona.
Com uma parcela de novela - capaz de irritar o leitor masculino a páginas tantas - , outra de mitologia inserida no mundo moderno, outra de aventura e mistério, outra de puro humor negro e ainda outra de comentário social, a saga de Sangue Fresco consegue engajar o leitor no seu universo peculiar de forma simples e eficaz.
Melhor ainda, consegue manter o leitor por lá, abstraído e confortável, desejoso de mais um regresso, de mais uma peripécia, de mais um reencontro com as personagens.
Por estes motivos, esta saga conseguiu gerar uma igualmente interessante série televisiva e consegue agregar um público diversificado.
Em somatório, Dívida de Sangue é uma viagem de dois dias por um pedaço de entretenimento sólido e cativante.
E isso, mais do que nos bastar, por vezes convém realmente.


















Dívida de Sangue (Charlaine Harris)
Saída de Emergência
1ª Edição - Julho de 2009
256 páginas

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Para rir

Esta obra terá sido, ao tempo da sua publicação, um objecto de crítica às Forças Armadas nacionais.
Mas não sabendo disso - ou não querendo saber disso - a obra não perde sentido, importância ou potencial.
Se esta reunião de pequenos contos foi um objecto crítico localizado no tempo que agora faz ainda sentido ler, não há mal em dizer que é uma obra intemporal.
Pelo contrário, estes pedaços de humor, profundamente originais, versam sobre o pequeno ridículo das falhas das divindades, do destino e do próprio homem.
Nós humanos, rivalizamos em banalidade com os anjos, intriguistas de vão de escada.
Nós humanos, tomamos como prenúncios os erros dos deuses, tão falíveis como nós.
Somos, afinal, pequenos. E os deuses são tão pequenos como os fazemos.
E se não pudermos rir dos nossos deuses - e também dos dos outros, sem ofensa mas com ironia - então não poderemos rir de nós próprios.
Com a ajuda certeira de Mário de Carvalho, ambos os risos são fáceis e deliciosos.


















A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho (Mário de Carvalho)
LeYa/Bis
1ª Edição - Maio de 2009
96 páginas

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Um bom "velho" policial

Morto por pecar é um bom "velho" policial, daqueles em que se pode ter plena confiança na boa condução da trama, daqueles com que se pode contar para que nos submetam ao exercício de descoberta sem impossíveis saltos de lógica.
Sólido, complexo sem truques, assente numa realidade perfeitamente credível e actual.
Um policial que consegue, além de nos manter a jogar às adivinhas - quem não quer ser mais esperto do que o próprio autor? - falar da realidade social à sua volta.
Um policial que fala do drama dos agricultores. Que traz à cena o degladiar entre os velhos e os novos costumes, entre as ciências e as crenças, entre o campo e a cidade.
Mas, acima de tudo, por ser uma das facetas que acaba por ser determinante, evidencia a distância que separa a velha e a nova forma de se ser polícia.
Ainda que os resultados possam ser os mesmos, a forma de se chegar a eles eram bem distintos, mas acima de tudo, é a confiança que se altera.
O polícia de antigamente era como um companheiro que lembrava a existência da ordem. O polícia de agora tem de impôr essa ordem.
A balança da confiança alterou-se de um para o outro caso de forma acentuada, mas como se poderá ver, nem a placidez que parece gerar o velho policiamento de aldeia deixa de esconder a tendência aproveitadora - e criminosa - das pessoas. Pelo contrário, até a reforça com um enorme sentido de impunidade.
Esse é que é o cerne desta trama, que a gerará e a resolverá, abraçando a discussão moral e comportamental que sobra da transformação da definição de polícia.


















Morto por Pecar (Stephen Booth)
Publicações Europa-América
1ª Edição - Agosto de 2009
364 páginas

sábado, 5 de setembro de 2009

À luz de um escritor

San Gerolamo scrivente de Michelangelo Merisi da Caravaggio

Gosto demasiado de Camilleri para que quando, neste Verão, dou com um exemplar de um livro dele perdido numa livraria não me martirize por não ter notado que o livro tinha sido publicado.
E com razão pois esta pequena pérola, que se afasta rapidamente do rumo (expectável) de policial, tem a força da visão particular de um artista sobre outro e, por isso mesmo, de trazer à discussão novas percepções que nos escapariam.
Camilleri coloca-se como personagem perante um diário nunca visto de Caravaggio, com um tempo limitado para transcrever tudo o que quiser.
Com esta táctica, Camilleri fica à vontade para construir um pequeno relato críptico da degenerescência de um génio, da luz negra que recai sobre ele à medida que Caravaggio pinta algumas das suas obras mais fabulosas
A invenção do chiaroscuro pode ter sido, afinal de contas, apenas uma expressão da forma como Caravaggio via o mundo, escurecendo em torno da luz do sol que o feria.
Uma paranóia crescente e uma alucinação doentia podem não ter sido o preço do seu brilhantismo, mas antes o combustível que o alimentou.
Olhando para algumas destas obras - reproduzidas no livro - de uma forma tão peculiar e distinta por via das palavras de Camilleri não pode deixa de contribuir para que as olhemos com renovada atenção, querendo descobrir o que nos indicia.

Mas há um outro olhar que vale a pena destacar, não o do escritor sobre a obra do pintor, mas o do escritor sobre a personagem do pintor.
Ao colocar a sua personagem a falar das suas opções na escolha dos pedaços de texto a transcrever, vamos percebendo o que verdadeiramente distingue um escritor dos restantes.
Saltando sobre os dados importantes, sobre as confissões bombásticas, sobre os podres suculentos, o escritor vai directamente aos pequenos pedaços de confissão que revelam a queda da personagem que o escritor ali encontrou.
Caravaggio, naquele diário, não é um famoso pintor com uma obra de interesse global. Ali, a sós com o escritor, Caravaggio é uma personagem descoberta, é um pedaço de história a precisar de ser contada.
À luz de Camilleri, Caravaggio e a sua obra são agora novidades para nós, mesmo que já as conhecessemos bem.


















A cor do sol - Os mistérios do Caravaggio (Andrea Camilleri)
Bertrand
Sem indicação da Edição - Setembro de 2008

112 páginas