Um humorista é um criativo a tempo inteiro, que tem de olhar para a realidade - Presente e Passado - para lá encontrar matéria que remolda aos efeitos que pretende alcançar.
Normalmente, efeitos de espanto por uma visão nova de absurdas conjugações entre as muitas hipóteses que o mundo contém em si.
Jô Soares não se poupou na pesquisa nem nos muitos tons de matéria que juntou: Sherlock Holmes, Dom Pedro, Josephine Baker e Jack, o Estripador (além das muitas personagens da vida pública brasileira).
Sendo personagens culturalmente instituídas, têm de se lhe encontrar momentos dignos de ficção - ou nova ficção no caso de Holmes - nos interstícios dos registos oficiais. E de humor.
Parodiar figuras admiradas sem as ultrajar enquanto foge aos cânones e torna detalhes da História brasileira acessíveis e interessantes a todos, essa é a grande conquista de Jô.
Quem pega no livro tem de aceitar que é tanto leitor de uma obra como é público de uma performance de humor.
A narrativa, entendida como uma estrutura cerrada de eventos, não chega a ser o objectivo central de Jô Soares, que prefere manter a liberade de escolher e moldar os episódios que melhor servem os seus dotes de humorista.
Só depois vem a missão de escritor que ele assume, inevitavelmente ou não tivessem sido alguns dos grandes escritores brasileiros os primeiros revisores e críticos da obra que estava a ser escrita.
Por isso, o livro nunca se torna pouco "sólido". A história é concluída sem deixar pontas soltas - excepto as que o autor quer, mas já lá vamos - e as várias personagens permanecem intactas em direcção às suas vidas ou aos seus cânones.
Concluir a história é a função última - mas cuidada - do escritor, que prefere primeiro colocar em posição os muitos elementos de humor.
Os jogos de palavras, as associações de situações casuais a protagonistas ficcionais/ficcionados, a comédia de costumes ou a afectação e vulgarização do grande detective.
(Sobre a comédia de costumes vale a pena destacar em como, usando um género próprio do seu país, Jô Soares revela todo o prazer que tem em criticar o seu país, de então e de agora, mas revelando nessa crítica quanto afecto lhe tem.)
A estrutura em torno das muitas piadas pode ser um pouco frágil, mas aguenta-se contra análises pessimistas, pedindo que se aceite aqui um ligeiro grau de implausabilidade que melhora o percurso pelo livro.
Até porque só acelerando livro fora, se descobre essa piada maior, a do "falhanço" do policial. A investigação não progride bem, Holmes distrai-se com uma bela mulata, Watson mal consegue dar conta do seu estômago e, no final, o criminoso escapa impune.
Esta é uma aventura que nunca poderia entrar no cânone de Sherlock Holmes, até porque os seus brilhantes poderes dedutivos são afectados pelo contexto que é o errado para as suas conclusões estarem certas.
Pelo contrário, é uma deliciosa história de origem para o vilão Londrino, feita de cartas marcadas que Holmes, jogando em campo alheio, nunca teve realmente hipótese de descobrir.
A tirada final da piada é apontada ao leitor, que se ilude com o título e vai atrás da personagem errada. Mas não tem mal, pois é uma piada da qual não há como não rir!
O Xangô de Baker Street (Jô Soares)
Editorial Presença
6ª edição - Março de 2013
280 páginas
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