terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A investigação da sociedade

Cada vez mais a classificação de policial se torna numa forma fácil de colocar os livros à venda e de atrair público.
As limitações da etiqueta tornam-se evidentes quando se lê um livro como Ninguém Quise Saber em que o retrato da investigação policial é apenas mais um elemento de uma composição maior.
A psicologia de um grupo particularmente interessante como a polícia por estar sujeito às dificuldades stressantes e excessivas de investigações decorrendo ao mesmo tempo de homicídios particularmente violentos ajuda a melhor traças as linhas do romance acerca da sociedade enclausurada na ilha.
Uma sociedade fechada sob a falta de preparação para a mais negra realidade possível, embora não esteja inconsciente da mesma.
Aceitar que estamos perante um romance e não um polícial puro torna, igualmente, mais fácil aceitar a relevância que tem o romance entre Johan e Emma.
O que pareceria uma intromissão - da condição feminina da autora, arrisco-me a dizer - na solidez do seu trabalho, revela-se uma estrutura útil para ela usar em paralelo ao mistério em causa e, com ela, atravessar de um livro para o seguinte.
E usar isso para reforçar a ligação problemática que se cria entre esta sociedade fechada e o resto da Suécia sempre que a segunda - mais aberta, mais complexa, mais moderna - se intromete na vivência dos que ainda estão remetidos a um certo passado aldeão.
A forma como este meio relega à invisibilidade os males que no resto da Suécia podem ser encarados de frente é a causa da trama e continua a ser o seu resultado.
A falta de esperança para as vítimas que continuarão sem serem ajudadas - porque têm de viver com os eventos desvendados na vida da rapariga morta - parece fácil de aceitar depois da violência que não pode ser escondida desaparecer.
Importa regressar à normalidade de assombro silenciado, num local onde o clima obriga as pessoas a resguardarem-se ao máximo do frio e serve de desculpa perfeita para que se resguardem umas das outras e da realidade que deveria tocar a todos.
Do seu primeiro livro para este, Mari Jungstedt conseguiu tornar a investigação mais interessante, sublinhando e fazendo evoluir a anterior abordagem onde as pistas eram raras. Agora continuam escassas e têm uma existência muito mais subtil.
Este mecanismo leva o leitor a estar no mesmo ponto em que os próprios investigadores, não para haver uma identificação com as personagens mas para compreender a realidade do trabalho tal como é executado.
Um trabalho que ajuda a caracterizar as personagens e permite à autora fazer descrições negríssimas do mundo em que as coloca.
Mas que não é o motivo para um policial, antes uma maneira de trazer à tona deste romance o que o quotidiano raramente permite ver.
O realismo nórdico do policial pode ser, na verdade, uma inverosímil realidade. Nenhuma sociedade é perfeita mas, para o mostrar, os autores tiveram de lhe inventar terrores impossíveis.

Os livros de Mari Jungstedt em Portugal parecem vítimas continuadas de maus tratos linguísticos. Se com Ninguém Viu era a revisão, aqui a culpa fica mesmo com a tradutora, Irene Guimarães.
Tendo trabalhado a partir da versão inglesa do texto, a tradutora deixa à mostra uma de duas situações: a tradução foi feita apressadamente ou a tradutora tem muito pouco sentido prático da Língua Inglesa.
Qual das duas seja, as traduções literais sucedem-se com o sentido a ficar enviesado e a leitura em português a tornar-se bizarra.
Apetece-me citar alguns exemplos claros de tais problemas identificando - como qualquer leitor consegue - as origens da expressão.
"Perfil baixo" é a tradução de low profile. "Carro de corrida" é a tradução de cart, a charrete de corrida puxada por um cavalo. "Contudo, outro Natal sozinha com a mãe" é a tradução de Yet another Christmas alone with mother.
São alguns dos exemplos em que os erros se tornam demasiado evidentes, mas outras opções, mesmo certas, poderiam ter sido melhor pensadas para a língua portuguesa. A expressão "todos concordaram num murmúrio" soaria melhor do que "todos acordaram num murmúrio" quando a autora se refere a uma reunião.
Perante esses aspectos a falta de uma nota que referisse o valor em Euros de 80 mil Coroas, que desse noção real de quanto esta pequena fortuna significava, parece insignificante. Mas é um sintoma mais do bom trabalho que ficou por fazer.


Ninguém Quis Saber (Mari Jungstedt)
Contraponto
1ª edição - Junho de 2012
240 páginas

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Um bom compromisso

A Topseller começou a publicar a série já para lá do meio - este é o livro 12, a série vai em 20 - o que causa um problema na abordagem ao livro.
Fez-me começar a suspeitar de tal o facto de uma das informações que me parecem essenciais para definir o personagem tal como ele é em 2006 - a morte da mulher - surgir como pouco mais que um incidente no final do prólogo dedicado a uma outra personagem, o Carniceiro de Sligo.
Ora, tão grande trauma deveria motivar um livro por direito próprio, embora tal não fosse essencial - quantas personagens conhecemos já com a "vida" em andamento?
Mas a carta de um psicopata que nunca saberemos quem é e os doze anos de intervalo em que Alex Cross fez a transição de agente de agente de polícia para o FBI e agora para mero psiquiatra a servir de consultor à polícia são prova mais do que suficiente que estamos perante uma versão secundária do momento que definiu o personagem.
Já antes me referi, a propósito dos thrillers de David Baldacci, que sinto haver um erro em não arriscar com o primeiro volume de uma série e ter de vir a fazer avanços e recuos numa história contínua. Talvez seja um problema de falta de habituação a sagas deste género no nosso país, o que se poderá resolver se continuar o trabalho de edição agora começado.
Porque é quase certo que a série Alex Cross vai continuar ou não acabasse o livro com um cliffhanger que é um gancho comercial do autor para vender o próximo livro - e que não permite a Cross sequer um dia de paz antes de voltar ao que acabou de fazer por quase 400 páginas.
Mesmo assim creio que há um certo acerto no que a Topseller fez, uma forma de compromisso com os leitores. Temos direito a conhecer um pouco do passado e da psicologia do personagem em que estamos prestes a investir e podemos contar com alguns livros pela frente até que o livro mais recente esteja publicado e seja preciso acertar a cronologia.
Isso dará tempo suficiente para muitos leitores se familiarizarem ou incompatibilizarem em definitivo com Alex Cross antes que seja preciso pensar realmente sobre como a decisão presente definirá a publicação futura dos livros passados.
Ficamos com os traços essenciais de Alex Cross num livro que funciona como um volume independente, tornando-o num bom começo embora deixando as personagens permanentes da série - o próprio Alex Cross, a família deste e os vários elementos de forças policiais que a ele estão ligados - caracterizadas de forma deficitária.
A compensação vem da existência de uma segunda personagem central neste livro, o próprio Carniceiro, que se revela uma personagem perversa até demais.
No entanto, o caso do Carniceiro é o oposto do de Alex Cross, tem características a mais. Se é plausível que ele seja um assassino para a Máfia que é um psicopata e violador em série nos tempos vagos, já é mais difícil de sustentar a crença na plausabilidade dele manter uma família secreta em total ignorância da sua verdadeira ocupação como fachada para uma vida mais segura.
Três ocupações a tempo inteiro haveriam de causar algum tipo de quebra na rede de subterfúgios que o Carniceiro mantem, o que torna a presença da família numa desculpa insatisfatória para um conjunto de cenas de acção finais de grande exagero.
Até lá chegarmos, a divisão do livro entre a investigação de Cross e as actividades do Carniceiro tornam a leitura num assomo de vontade acelerada de descoberta. Reforçado, claro, pelos capítulos curtos e escrita que aponta à eficácia e à desenvoltura acima de tudo o resto.
A investigação de Cross é mais atabalhoada do que a consideração que a polícia tem por ele deixaria antever, o que se torna no traço mais interessante da personagem pelo grau de imperfeição que acrescenta ao retrato.
Mas a estrutura está de tal forma montada que os protagonistas não chegam a tornar-se antagonistas directos, ainda que Cross suspeite do envolvimento do Carniceiro na morte da sua mulher. E se a qualidade de um inimigo é a melhor medida de um detective, a ideia de vingança que é a motivação maior de Cross acaba por deixar algo a desejar.
Sobretudo quando o final se desenrola e as acções de Cross - como as do polícia que o acompanha, já agora - passam sem grande consideração moral quer do autor quer do próprio personagem.
Não sei se enveredar pelas margens da Lei é um hábito de Alex Cross, mas de supetão essa atitude marginal deveria servir para colocar em causa a aura de herói e adensar o núcleo da personagem.
O resultado, no que toca à questão de quem matou a mulher de Cross, não é conclusivo - nem satisfatório na maneira como é apresentado, acrescento - o que pode deixar mais marcas para o futuro comportamento dele.
Estamos perante várias hipóteses e questões em aberto que poderão ser respondidas no futuro, justificando que a mesma personagem protagonize vários livros em série. Já quanto ao fulcro da história, que se inicia e encerra neste único volume, é uma agradável leitura que se concretiza com curiosidade e rapidez, pontos essenciais a um thriller apontado ao mais vasto público possível.
Se a leitura deste thriller não é ainda mais vertiginosa para quem entra nas suas páginas, é pelo acumular de erros de revisão que o livro tem.
Nota-se que a tradução é muito fiel à Língua Inglesa corriqueiramente usada pelos norte-americanos - em alguns momentos talvez fiel demais, podendo haver algumas expressões passadas para uma correspondência portuguesa - e, não sobram por isso dúvidas, que parte do revisor a transformação de algumas frases em texto erróneo.
O revisor tratou ou de emendar - raramente bem - as palavras ou a ordem das mesmas no seio de algumas frases. Essas emendas levam a que as frases - aquelas que seriam possível salvar - mostrem carecer de alguns acrescentos para continuar a fazer sentido.
Para dar dois exemplos próximos que demonstrem o que digo, recorro às páginas 288 e 289. Na primeira lê-se "Embora a localização do condomínio a bem conhecida..." onde deveria estar "Embora a localização do condomínio fosse bem conhecida...". Na segunda lê-se "Porque supostamente sou eu que doido?" onde estaria "Porque eu sou supostamente doido?".
Estou em crer que não pode haver um trabalho de revisão da tradução sem haver um passo atrás para compreender como a expressão existe no original, coisa que muitos dos leitores do livro poderão fazer por si próprios à conta do contacto com o cinema (se mais nada) americano.
Mesmo se desconfie que, muitos desses mesmos leitores, nem darão por este estrago significativo!


Alex Cross (James Patterson)
Topseller
1ª edição - Novembro de 2012
384 páginas

domingo, 6 de janeiro de 2013

Chef literário

A primeira vez que tomei conhecimento do nome de Anthony Bourdain ainda ele não era conhecido como por estes dias mas ainda era um verdadeiro enfant terrible da cozinha.
Foi através do livro Cozinha Confidencial, que por si só ilustra a maneira como o autor foi transformado pela "indústria" de provocador imoderado em provocador mediatizado.
Na época em que o li, o livro tinha uma ilustração naive que parecia vir de uma certa desconsideração nacional pelo aspecto criminoso daquela equipa de cozinheiros (é comparar com esta imagem) mas que, ainda assim, deixava antever uma certa gandulagem ligada ao acto de cozinhar. Isso em vez da estilização em torno da reconhecível cara do chef que ocupa a capa quase por inteiro na mais recente edição a chegar às livrarias.
E quando o li, não havia sequer vislumbre de que as confissões irónicas e incontroláveis de Bourdain viessem a transformar-se numa sitcom romantizada com Bradley Cooper como protagonista!
Definitivamente, o tempo e as possibilidades de negócio tornam tudo aceitável e apetecível, até a descoberta de que as refeições dos melhores restaurantes (americanos, claro…) eram temperadas – e quem sabe se melhoradas – com sangue humano, drogas pesadas e, até, fluídos corporais dos mais variados!


Passaram-se anos até deparar com dois outros volumes com o nome de Bourdain impressos na capa. Que me despertaram ainda mais curiosidade por serem policiais.
Mas perdi-lhes o rasto, como causam tantos adiamentos em nome de outros livros mais importantes que havia a comprar, até há alguns meses atrás em que resgatei os dois últimos exemplares desses livros editados pela Ambar numa daquelas feiras que agora ocupam espaços de estações de metropolitano. (Feiras que são tema forte para uma abordagem própria aqui no blogue.)
O primeiro desses livros está lido e o segundo está guardado para ser saboreado quando este já estiver totalmente varrido da memória.
Começarei por dizer que não há assim tanto de policial aqui. Antes uma estratégia de cenarista de Bourdain que é colocar a acção a decorrer no coração da máfia de Manhattan.
Um ambiente que, pela verdade ou pelo mito, se tornou propício a combinar o gosto pela culinária – ou a ânsia pela comida italiana, dependendo do grau de sofisticação dos mafiosos envolvidos – com a criminalidade e a sua violência mais desproporcionada.
Mais ou menos o mesmo ambiente que Bourdain já tinha revelado que se gerava nos bastidores dos restaurantes por onde passou.
Tendo montado este cenário Bourdain delicia-se a promover o seu prazer pela comida e a sua ironia perante o negócio da restauração.
O romance é uma excêntrica diversão que não leva a máfia demasiado a sério. Não leva mesmo nada demasiado a sério a não ser a paixão de Tommy pelo seu ofício de chef adjunto.
Digamos que a choradeira do chef pela destruição da sua melhor faca, objecto intocável, é apenas um dos grande momentos a ocorrerem no livro. Sobretudo quando se sabe que as acusações dele nunca se aproximam da verdadeira causa da deformação da faca que ocorreu em plena cozinha – mas fora de horas – para desmembrar um “pedaço de carne” que colocava a máfia em risco perante o FBI.
O nível maior de diversão e ironia está, no entanto, reservado a quem já tiver lido as confissões de Bourdain.
É que a história do Dreadnaught Grill é a história da ascensão e do declínio (mais do declínio e o leitor assim prefere) dos verdadeiros restaurantes. Levado ao extremo e a roçar o absurdo, mas honesto como as várias histórias do género em Cozinha Confidencial.
Afinal de contas, o restaurante é uma fachada que o FBI pagou a um dos seus informadores. Mas este gosta tanto do negócio que pede empréstimos à máfia para se expandir… sem nenhuma noção do negócio!
O restaurante acaba nas mãos de um “gestor” (mafioso, claro) que faz tudo, excepto dar festa de anos com palhaços no interior do restaurante, para recuperar algum dinheiro. O pior é que o informador julga que, mesmo depois disso, o restaurante é o seu futuro e que pode ficar lá a trabalhar tendo denunciado os seus melhores clientes.
Por detrás deste cenário, o chef gasta o dinheiro em drogas e revende os melhores produtos para continuar com o vício (e recupera-se, sinal que isto é Bourdain a ironizar consigo próprio e a celebrar a sua recuperação). E Tommy, que arranjou o emprego porque o tio tinha ligações à máfia, dedica-se como o último idealista do mundo da restauração a trabalhar na cozinha de onde teve de limpar o sangue e conviver com o facto de estar um tipo desfeito em bocados à espera de ser despejado com o resto do lixo da semana.
Peripécias bastantes que só melhoram com os detalhes com que Bourdain se dedica a criar personagens que conseguem ir além da mera representação de papéis. E são elas que levam a sátira adiante com surpresas suficientes para não haver leitores descontentes.
Claro que Bourdain não é um escritor que se conte entre os melhores – apetecia dizer que não é tão bom escritor quanto é chef, mas não me foi dado a provar o seu trabalho nessa área – mas não se arrisca para além do que sabe. E isso é apanágio de quem tem, além de ideias e de vontade, inteligência para fazer um bom livro. Ou, se preferirem, de quem tem mão para mais este "prato".
Para os seus fãs actuais, que o viram em visita a Lisboa, podem contar com bons momentos de leitura do tempo em que Bourdain era um grande provocador sem perderem a admiração pelo actual mestre de cerimónias televisivo.


Um osso na garganta (Anthony Bourdain)
Ambar
1ª edição - Outubro de 2002
344 páginas