domingo, 31 de agosto de 2014

Como uma dupla deve ser

Os motivos para que o público se mantenha fiel aos policiais nórdicos fica bem patente com a diferença - positiva - que estes marcam para outros exemplos do género.
A manutenção de um apego a um realismo funcional que permite falar da realidade local enquanto melhor serve o estabelecimento das personagens, da trama e do cenário envolvente.
Facilmente se explica o que isso significa de forma prática, comparando duas leituras pouco espaçadas.
Para James Patterson a formação de uma dupla de investigadores serve para "apimentar" os momentos menos agitados do thriller.
Para Jussi Adler-Olsen a formação de uma dupla de investigadores serve para nos falar de uma realidade semi-silenciada de discriminação racista - e religiosa - na Dinamarca, ao mesmo tempo que estabelece a desconsideração a que está submetido o protagonista - por lhe ser atribuído um assistente Sírio sem formação policial - e a relevância que a ingerência desse "corpo estranho" terá no Departamento Q.
A criação da relação entre a dupla é o motor que faz avançar a investigação, com Assad a obrigar Carl a romper com a sua apatia para com o trabalho gerada por uma experiência debilitante em que viu morrer um colega mas, igualmente, por um desprezo geral pelo mundo à sua volta.
Tanto pela curiosidade leiga - mas muito inteligente - com que aborda o trabalho policial  e que terá uma influência directa no caso, como pelo desconforto social e pessoal que cria num polícia que se dedica a queimar tempo até poder ir para casa.
A aparição de Assad dará mesmo um contributo indirecto a outras investigações, dos casos actuais para os quais Carl já não é chamado, mas a que não resiste a evidenciar alguns detalhes. No fundo a fazer a extrapolação que os "colegas" não conseguem e que condenou os casos para o arquivo que ele agora tem de gerir.
São duas óptimas personagens que se tornam complementares sem nunca perderem o antagonismo de personalidade que soma interesse à sua relação.
Uma relação que é mesmo uma personagem (colectiva) por si própria, criada com superação em relação à soma das suas partes.
Por eles este é um Departamento que tem de ser seguido com enorme atenção, com a relação entre os seus efectivos ainda em processo de consolidação.
Estes (três) personagens são, para já, melhores do que a trama policial. Essa é interessante, tem potencial para atingir outros patamares, mas não é gerida com a necessária precisão.
O facto de acontecer simultaneamente em dois pontos temporais (um avançando em direcção ao outro) leva a uma gestão menos interessante da informação disponibilizada ao leitor.
O leitor avança mais depressa do que os protagonistas, o que leva a que a resolução da trama compense isso com um exagero mais ao estilo do thriller do que do género de policial cerebral que o livro vinha sendo até aí.
O truque que o autor usa aqui para o tipo de resolução que lhe deu jeito não pode ser reproduzido constantemente pois seria já uma certeza - e não apenas um risco - a perda da ligação aos seus leitores pela perda de plausibilidade.
Com os casos arquivados - em definitivo, digamos assim - o autor terá mesmo de abdicar da conveniência com que provas antigas e esquecidas surgem para fazer avançar a nova investigação.
Por mais que isso seja interessante como prova de um superior intelecto de Carl e uma demonstração de que apenas uma dedicação a tempo inteiro a um único caso pode produzir resultados de topo - novamente, o realismo funcional a ajudar a caracterizar um personagem e a criticar a realidade do país natal do autor.
Só que com estes personagens que já descobrimos, não há forma de não darmos uma (e talvez ainda outra vez, se for necessário) o benefício da dúvida a Jussi Adler-Olsen e continuar lendo os seus esforços.


O Guardião das Causas Perdidas (Jussi Adler-Olsen)
Editorial Presença
1ª edição - Junho de 2014
424 páginas

domingo, 24 de agosto de 2014

O Absurdo como forma de arte

Os acasos proporcionam várias vezes casos de sucesso. Ter escolhido As Aves do Paraíso também são falsas logo após o livro de Woody Allen foi mais um desses.
Porque este livro me fala da filiação que se pode ver nos relatos de Woody Allen - também no seu stand-up e em alguns dos seus argumentos - e que no caso deste livro já havia sido levada se não ao seu extremo, bem lá perto: o espírito do Teatro do Absurdo.
Retrocedendo no tempo de um autor para o outro, o espírito das palavras é partilhado entre ambos e exacerbado pelo Germânico.
A forma como uma qualquer peculiaridade da vida quotidiana é encarada por si pela via de uma impossibilidade bem sucedida transforma o mundo numa aventura permanente.
Ao encarar a tristeza das vidas monótonas com respeito e dando-lhes, pela ficção, a permissão para transformar todos os sonhos, todos os devaneios ou todos os lamentos em realidade, Hildesheimer torna cada uma dos seus personagens num catálogo de apaixonantes absurdos.
Nenhuma das suas personagens está sujeita à necessidade de cumprir com a função de ser um elemento produtivo da sociedade, o que lhes permite ir à conquista.
Uma conquista que fica anónima ou que se mede numa escala que ninguém, além do próprio personagem, saberá interpretar.
Dentro do mundo da Arte isso significa ser o inventor de uma grande pintor nacional - de uma nação que nem ainda se colocou no mapa.
Ao fim e ao cabo, um falsificador de quadros nunca imaginados pertencentes ao espólio de um pintor que nunca existiu.
Sucesso esse potenciado pelo insucesso de ver a obra desse Mestre ser falsificada por outros que relegam as pinturas do pintor original para o campo das falsificações.
Pior, ser tão bem sucedido em criar um falso artista que ao criar os seus próprios quadros acabará por ser considerado apenas um descendente desinspirado desse outro.
Se isto não é um absurdo não sei o que seja. Mas é, também, o mais brilhante conjunto de vitórias e derrotas que alguém pode ter na vida - sobretudo se esse alguém preferir vivê-las em profunda solidão.
Ganhar uma identidade que nunca se poderá revelar e perdê-la para aqueles que não a desejam, apenas dela desejam lucrar. E viver feliz com esse apagamento que dá liberdade ao mundo de criar e acreditar no pintor que quiser ter.
O humor - da história, das situações, dos comportamentos - não apaga a derrota que o mundo guarda para os personagens.
O riso vem com uma melancolia que não perdoa e faz-nos crer que, fôssemos capazes de nos ver tal como o autor vê os seus personagens, e seríamos todos obtusos casos de promissor insucesso.
Absurdos cada um de nós por crermos que deixamos marcas mais significativas do que aquelas que anonimamente já são legada ao mundo.
A elegância do desaparecimento, da escolha das hipóteses menores - durante uma viagem onde pode ir parar aos locais mais belos o protagonista decide-se a ficar no mais longínquo desconhecido - que vão levando a vida adiante até a píncaros inimaginados, é sátira feita a custas do leitor que não se ressente pois a sua recompensa imediata é essa beleza austera da prosa de Hildesheimer.
Toda a loucura se torna comum ao longo do livro e, mais do que isso, desejável como modelo de uma realidade melhor.
Um mundo onde a aplicação de todo o oposto da lógica dá valor aos homens, singulares pelas suas "derrotas" - se as quiserem continuar a ler assim - como ninguém o é pelas suas vitórias.

Outro absurdo - este desagrável - vem do desconhimento completo de Wolfgang Hildesheimer até me deparar com o seu promissor título numa daquelas "Feira do Livro" que se parece dedicar a tornar os livros em refugo.
Agora que li este seu livro sinto-me irado de que não seja um autor publicado, lido e admirado entre nós!
Ao contrário dos seus personagens, o apagamento não lhe assenta bem!


As Aves do Paraíso também são falsas (Wolfgang Hildesheimer)
Difusão Cultural
Sem indicação da edição - Junho de 1992
128 páginas

sábado, 23 de agosto de 2014

Lições sobre bem escrever

Uma preciosidade de que nunca vou abrir mão. Isto é a minha opinião sobre este resumida a uma única frase, mas uma frase precisa.
Cada um dos textos aqui inseridos podem ser de uma forma simplista classificados como humorísticos, mas ainda antes de tal são pequenas peças de ficção.
Cada uma delas, em pouquíssimas páginas, capaz de criar um mundo próprio pela simples descoberta de uma nova forma de encarar o mundo tal como já o conhecemos.
Em tais textos reconhece-se o génio de um escritor que beneficia da prática da brevidade enquanto comediante e para o qual contribui decisivamente essa perturbação na leitura do mundo que faz de Woody Allen um excelente humorista mas, igualmente, dramaturgo.
Nos seus textos descobrimos o mais conturbado e perturbador jogos de Xadrez de todos os tempos. Um jogo de Xadrez que ao mesmo tempo é a mais deliciosa e esquizofrénica troca de correspondência de sempre.
Descobrimos variações sobre Ingmar Bergman (que já sabíamos ser o ídolo do realizador) em que a Morte perde ao gin rummy.
Ou que há detectives privados encarregados de encontrar tipos que deveriam estar em toda a parte: Deus.
E ainda a extraordinária história do que poderá ser a mais importante invenção da humanidade, o borrão de tinta falso.
Cada uma destas pequenas obras está carregada de tiradas irónicas sobre o mundo da edição de livros e de referências prazerosas sobre a melhor Literatura.
Seja um cão chamado Josef K ou um personagem que despachou sem dificuldades o Finnegans Wake enquanto andava numa montanha russa, este é um livro não apenas lúcido, mas devidamente didáctico.
Quem não tiver vontade de ir reler Kafka, Sartre, Joyce ou Freud com novos olhos após terminar este livro é porque ainda os vai ler pela primeira vez!
Ao contrário do que diz o seu título, é bem provável que este livro contribua para fazer perdurar a Cultura - pelo menos entre os seus leitores.
Ainda para lá disso, o elemento mais importante - e literariamente importante, digamos assim - destes texto é um outro.
A cada ideia que tem para um texto Woody Allen encontra-lhe um estilo de escrita diferente.
Diria que Woody Allen se mostra, enquanto escritor, um autor. Não porque se apresente com um estilo próprio vincado mas porque se apresenta com a capacidade de adaptação de estilo que a cada momento melhor lhe permite servir as funcionalidade do texto e as suas múltiplas ideias.
Na sua pequenez este livro é uma Bíblia - ou uma Torá, para homenagear as raízes de Allen - sobre como bem escrever.
Com lições sobre economia de palavras, sobre colocar o estilo ao serviço das ideias e sobre o controle do ritmo.
Por isso ou até apenas porque é um livro de releitura fácil e obrigatória, esta é uma preciosidade de que nunca vou abrir mão. Já o tinha escrito, mas o livro merece que se repita.


Para Acabar de Vez com a Cultura (Woody Allen)
Livraria Bertrand
5ª edição - Sem indicação da data
148 páginas

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A progressão que tarda

O segundo livro desta saga permite uma análise menos "séria" do que o primeiro, que levantava dúvidas pertinentes acerca do negócio dos livros.
Sabendo que essas não serão respondidas tão cedo e que, provavelmente, ninguém mais se preocupará com elas, passo a ler um policial escapista como já deveria ter conseguido fazer com o primeiro.
A colagem aos cenários de filmes continua, desta vez com a máfia e um justiceiro envolvidos numa trama em que o Passado vai apanhar e complicar o Presente.
Uma história com uma grande dose de "espectáculo" mas que se pode permitir ser menos espampanante que a do primeiro tomo, agora que o público está conquistado - na medida do possível e sempre condicionado pela opinião a cada novo livro.
Uma história, igualmente, melhor escrita. Não só com uma melhoria no que toca aos diálogos, que eram um dos problemas que mais ficavam na memória no livro anterior, mas sobretudo no domínio da trama.
Bem estruturado, o livro dá mais informação ao leitor do que aos seus protagonistas, permitindo que se acompanhe o progresso da investigação a partir de uma posição de avaliação.
No entanto a antecipação não é total e o livro guarda ainda surpresas apontadas tanto aos seus protagonistas como ao leitor antes de passar da investigação ao thriller propriamente dito - com perseguições, com cenas de confronto, com tiroteios.
Mesmo assim há que assinalar o grande defeito deste livro: a sua componente romântica que continua a arrastar-se e a tomar demasiado tempo aos protagonistas, sobretudo o masculino.
O seu interesse pela parceira continua no que é um quadrado amoroso em que ela está casada - mas o marido está à beira de a perder para um vício de analgésicos - e ele próprio tem uma namorada - psicóloga da polícia e o par ideal para ele.
O comportamento adolescente dele na sua vida privada impede que a sua personagem seja levada tão a sério quanto deveria.
Deixar sempre em suspenso a hipótese dele romper com o comportamento profissional para reacender uma velha paixão nunca permitirá que ele se transforme num memorável polícia ficcional.
Da maneira como as relações pessoais lhes ocupam tanto a mente, pelo menos seria interessante ver isso começar a tornar-se num empecilho ao trabalho, levantando riscos que tornassem a investigação mais periclitante.
Por enquanto - e suspeito que indefinidamente - é apenas um (quase) romance com algo de patético.
Não é por esse "romancezito de escritório" que continuaremos a seguir estas personagens. Terá de ser por elas próprias, pelas suas personalidades, pelo seu profissionalismo e pela sua eficácia.
Como a relação dos dois detectives principais está inquinada deste o primeiro dos volumes e seria necessário anular a parte romântica ou ousar avançar com ela o mais depressa possível para que depois eles pudessem progredir como personagens e como dupla.
Pois se os casos já começam a avançar em qualidade, esta grilhete impedirá que a qualidade geral do livro progrida até onde promete poder chegar.


NYPD Red 2: À Margem da Lei (James Patterson e Marshall Karp)
Topseller
1ª edição - Abril de 2013
336 páginas

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Perfeito quando é humano

Por falar em regressos, no extremo oposto do de Hitler, temos Jesus Cristo. As mensagens de cada um podem colidir mas o método que eles encontram para a divulgar é a mesma: projecção televisiva.
O Jesus de Niven faz-se entertainer, tal como o Hitler de Vermes. Em vez de passar por um comediante com ascendente político candidata-se a um daqueles concursos para descobrir o melhor cantor da América.
Foi a oportunidade que encontrou para cumprir a sua missão depois do seu pai, ao regressar de umas breves férias (uma semana no Céu, dois milénios na Terra), o reenviar à Terra.
O plano é, com as diferenças naturais de tantos anos de distância, sensivelmente o mesmo que havia da primeira vez: transmitir o seu único e verdadeiro mandamento, "Sejam simpáticos".
Ao que parece Moisés achava que um mandamento era pouco e tratou de aperfeiçoar a coisa...
A partir da sua inconformidade para com as regras do programa, Jesus torna-se numa estrela rebelde capaz de transmitir a sua mensagem.
Através das acções. Em vez de capitalizar a sua fama, ele trata de usar o adiantamento do dinheiro de um disco para criar uma comuna terrena capaz de imitar o céu: as armas são proibidas, a energia é "verde", todos são admitidos e a erva flui livremente.
Isso será a ruína que levará a uma nova condenação à morte, confundido com um chefe-de-culto-e-terrorista.
A crítica aos males da Humanidade feita a partir desta história não deixa de ser pertinente - quem dera que o pudesse ser - mas também não vem acrescentar nada de novo.
Esse não é o interesse do romance, nem mesmo o é o humor que o autor lhe imprime e que é uma das poucas constantes de um livro muito oscilante em tom e qualidade.
John Niven consegue despertar verdadeiro envolvimento com o livro no momento em que descrever as deambulações de um Jesus profundamente humano.
Uma espécie de hippie consciencioso e determinado, capaz dos sacrifícios mais simples aos mais tenebrosos.
Essa parte do livro é cativante e quase imaculada, conseguindo criar uma personagem com a qual queremos conviver longamente.
Com esta personagem, que ao sair de casa deixa o seu pouco dinheiro aos amigos para eles tomarem o pequeno-almoço ou que ao ser preso cede a ser sodomizado para evitar a violência no interior da cela sobrelotada, John Niven pode ter conseguido criar um texto que concretiza aquilo a que este Jesus vem.
Este Jesus é capaz de nos persuadir do prazer de ser Bom pela forte sensação de alegria que nos transmite.
O talento de Niven é muito e está todo presente aí, como também o está nas passagens em que descreve as sensações que a música tocada pelo seu personagem causa nos outros. Verdadeira música sem ser preciso utilizar a audição.
Niven tem um domínio das palavras carregadas de emoção que tem de ser descrito como genial, sem qualquer hesitação.
Pudesse ser todo o livro assim e estaria apenas a enumerar elogios mas esse pedaço de brilhantismo está emparedado entre componentes bem menos interessantes.
Antes vem aquela descrição humorada mas não profundamente original dos meandos do Céu e, sobretudo, do Inferno. O choque pelo exagero não deixa de fazer rir, mas não mais do que, por exemplo, a representação do Inferno em South Park: Bigger Longer & Uncut.
Depois vem a descrição da América Profunda amedontrada em jeito de aviso catastrofista. É uma solução quase óbvia para a trama e não faz mais do que repisar uma certa paranóia já gritada em muitos media.
Em termos de radicalismo do humor tinha ficado muito mais interessado em que Niven explorasse as contradições que Jesus vem apontar aos que mexeram nos números dos textos Bíblicos inventando milagres onde havia pão e peixe suficiente para as apenas cinquenta pessoas que seguiam Jesus.
Algo que poderia ter feito para cumprir com a sua intenção de integrar o seu livro na tradição da melhor comédia acerca da religião.
Parece a marca de uma certa arrogância fazer uma referência a Life of Brian logo no início do livro, como parece pouco mais que pilhagem concluí-lo com uma reformulação da frase de Lenny Bruce acerca do que os crentes usariam ao pescoço no caso de Jesus ter sido morto num dos estados americanos que ainda aplicam a pena de morte, apenas colocando uma seringa no lugar da cadeira eléctrica!


A segunda vinda de Cristo (John Niven)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Julho de 2013
448 páginas

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Humor sem pertinência



Hitler como ideia cómica tem sido mais comum como forma de superar prolongados traumas e receios - e as pouco saudáveis obsessões, por vezes acusatórias, que os acompanham.
Depois de servir para que os países europeus superassem o trauma da Segunda Guerra Mundial, ressurgiu para que esses mesmos países lidassem com o crescendo económico Alemão.
(A sua utilização parecia quase extinta neste século XXI, mas parece que isso já não é verdade em alguns países do centro da Europa.)
Como figura de crítica social corrente parece-me um recurso menos habitual, sujeito à dificuldade de saber até que ponto resulta como transmissor de humor transversal.
Ressurgindo na Alemanha actual, Adolf Hitler é tomado como um comediante obsessivo que nunca deixa a sua personagem - não ao contrário de Sacha Baron Cohen que sofreu ataques físicos ao interpretar o seu Borat fora do período de filmagens.
O conceito não é novo, sendo que Big Train já tinha reinventado Hitler como um entertainer na sua própria época, tornando a sua vida privada numa contradição do seu discurso.
Aqui ele vai servindo para que Timur Vermes ridicularize a dependência do mediatismo que a sociedade tem, e a dois traços em particular.
A transformação de qualquer pessoa exposta num ecrã num fenómeno massivo sem qualquer tipo de ponderação da realidade por detrás dela.
A falta de memória da sociedade actual que a parece encaminhar para o ponto em que os erros do Passado estão prestes a repetir-se.
Se o primeiro desses traços funciona transversalmente para os leitores, o segundo está obviamente muito focalizado na Alemanha.
A (justa) recusa de viver com o estigma de uma culpa de gerações passadas parece ter vindo a causar algum ressentimento para o qual a resposta tem sido uma indiferença para com o peso da História.
O livro não deixa de funcionar por essa falta de transferência fácil do tema para fora do seu país de origem, mas exige uma associação que poderá ser relativamente simples em Portugal - graças ao seu próprio ditador - mas nunca exacta - não há comparação possível com Hitler.
O verdadeiro problema do livro está no facto de lhe faltar tema sobre o qual ironizar a partir do ponto de vista que estabelece.
Vermes continua por três centenas de páginas a debitar o mesmo género de piadas. Piadas que funcionam, mas que não apresentam qualquer progressão no género de humor - pouco subtil - nem no objectivo do mesmo.
Pode, em alguns momentos, fazer algum humor político ligeiramente mais contundente mas isso não passa de uma inspiração temporária.
Sendo a sua intenção o humor permanente, o autor nem sequer tenta fazer evoluir o seu personagem, mantendo-o como uma figura determinada mas um pouco tosca por incapacidade de compreender o mundo moderno.
Infelizmente para o resultado final essa evolução acontece por si mesma e de forma acidental, ao longo - e ao serviço pouco criterioso - da trama.
Hitler caminha para a compreensão dos meandros da política actual e da exposição mediática de forma a impôr-se como candidato às eleições.
Isso parece mais natural para uma personagem que elogia a sua própria rápida compreensão do mundo do que a contraditória redoma em que o autor o mantém e em que até o conceito de ficção televisiva lhe continua a ser estranha, apesar dele emergir nesse mesmo meio.
Fica-se com a sensação de que o livro apenas é capaz de falar - com contundência! - da relação da Alemanha com a memória de uma das suas figuras mais perturbadoras.
A leitura não é desagradável mas para isso vale mais ver a campanha da Folha de São Paulo que deixo no início deste post, com a sua a economia de tempo e a sua brilhante precisão.


Ele Está de Volta (Timur Vermes)
Lua de Papel
1ª edição - Setembro de 2013
304 páginas

terça-feira, 5 de agosto de 2014

A realidade restringe o escritor

Paolo Giordano continua a retratar personagens merecedoras de ternura através de conjuntos de episódios soltos, certamente enigmáticos.
Personagens falhadas e, por isso, mais humanas. Mais humanas do que admitiríamos que personagens criadas com palavras pudessem ser.
Personagens que, tal como em A solidão dos números primos, estão desconfortáveis no seu corpo. Porque é ele que as limita a um mundo que nunca se adaptará às suas necessidades.
Eternos desajustados, Paolo Giordano vai encontrá-los numa situação onde o alinhamento é tudo.
O exército. Mais do que isso, um exército em local de guerra, sujeito a situações que exigem uma atenção permanente que não se coaduna com a interrogação pessoal.
As unidades militares pensam como um todo, a individualidade é apagada atrás de uma noção de "corpo único" que se deve apoiar e defender sem que um dos seus membros vacile.
Os comportamentos de um indivíduo que seriam aceitáveis em qualquer momento tornam-se impossíveis de entender naquele tempo e naquele espaço.
Este é o traço mais interessante do segundo livro de Paolo Giordano, que ele tenha encontrado um submundo onde as restrições sobre o ser - e o corpo - humano sejam ainda maiores e onde a estranheza (diferença, se estranheza for motivo de repulsa) de cada um esteja ainda mais ameaçada do que sociedade quotidiana - que era, afinal, o tema do seu primeiro livro.
Infelizmente, as histórias com origem no contexto militar - em que o escritor esteve inserido para uma reportagem que acabaria por se transformar neste livro - não parecem propícias ao género que manipulação que ele quer fazer com as suas personagens.
No seu livro anterior a força do que estava em torno dos seus personagens vinha de uma consciência da realidade social que mantinha algo de indefinido. Um mistério completado pelo próprio leitor.
Neste caso os pequenos eventos são por demais realistas para que as personagens tenham uma parte indefinida. São várias as vezes em que o comportamento das personagens parece um absurdo naquela realidade restrita.
Pior do que serem realistas, parecem falhos de novidade ou de imaginação, derivações menores em torno de outras ficções militares onde as personagens cediam ao contexto.
Julgo que a culpa (maior) nem sequer é de Paolo Giordano, mas da vida militar que nada tem de novo após tantas décadas.
Está por transformar o contexto em que vivem estes homens - e, entretanto, mulheres - que de arma na mão respondem à tensão de deixarem de ser eles próprios para serem uma ferramenta na mão de decisores de maior patente.
Se experimentada in loco a vida dos militares no conflito Afegão é fascinante, esse fascínio parece menos óbvio ao tentar ser moldado às características do trabalho do autor. Tanto que as qualidades que o distinguiram não estão aqui patentes, elas próprias manietadas.
O verdadeiro conflito do livro é entre a expressão do autor e o ambiente em que ele quis trabalhar.


O Corpo Humano (Paolo Giordano)
Bertrand Editora
1ª edição - Abril de 2013
320 páginas

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Nenhum homem é uma ilha... paradisíaca

O detective Fin Macleod é arrastado de volta à sua terra natal para a investigação de um crime que se relaciona com um outro que lhe coubera investigar em Edimburgo.
Arrastado em vez de atraído ou chamado, porque esta ilha de Lewis é uma grilheta que pesará para sempre, mesmo em quem a abandonou há décadas.
A própria ilha parece rejeitá-lo, primeiro na forma dos polícias locais que dispensam a sua ajuda, para depois o parecer fazer também com o seu clima agreste.
Será verdade que Fin vai recuperando algumas memórias com pequenos laivos de alegria da sua infância, só que estas acabam sempre por se transformar num sacrifício de retorno ao passado.
Afinal falamos de uma ilha onde ainda se realiza um rito de passagem à idade adulta:  a matança dos gugas. Um acto sangrento num ponto ainda mais isolado e inóspito do que a própria ilha.
O rochedo onde vão para a caçada ameça com a morte. A morte rápida pois a morte lenta já é vivida pelos habitantes da ilha.
As memórias de Fin mostram ainda alguma vida, vinda da juventude que lhe assistia, um contraponto mais intenso às deambulações actuais do detective.
Cada pessoa que ele interroga e cada cenário que ele visita adicionam uma camada mais à noção de que aquela ilha se vem tornando num túmulo da comunidade que outrora lá existiu.
Um túmulo coberto por uma atmosfera - magnificamente descrita por Peter May - que torna tudo ainda mais desolado e sombrio.
Aquele que deveria ser um lugar inabitável mantem cativos todos os que a partir de lá sonharam com outra vida.
Conhecendo aquela ilha vamos compreendendo a personalidade de Fin, sempre capaz de destruir as poucas bençãos que recebeu.
Demasiados são os fantasmas que continuam a caminhar lado a lado com as pessoas de Lewis, carregando a culpa dolorosa que eles deveriam deixar de sentir.
Alguns desses fantasmas estão, evidentemente, iludidos de que têm vidas a viver quando esta lhes foi sugada pela própria ilha que em troca lhes ofereceu o peso do Passado e o vazio do Futuro.
O caso que obrigou Fin a colocar de novo os pés naquele território revela ainda mais o quanto a ilha - e, sobretudo, o seu rochedo onde pela violência se julga criar homens - estripou por completo cada um dos que ali foi.
O caso que orienta a trama é intenso e tão inclemente quanto a própria ilha, capaz de ferir de morte qualquer réstea de esperança no humanismo dos que deveriam constituir uma comunidade isolada e, por isso, reforçada em torno de si mesma.
Não se podendo deixar de notar que o autor encerra o caso com alguma brusquidão, aceita-se que o faça para manter o foco como até aí em Fin Macleod.
Se o livro já era, até ao seu desenlace, um poderoso retrato da sua personagem principal, com o final que não poupa sequer Fin torna-se numa das mais desabridas exposições do interior de um homem que já foi escrito em livro.
Em A Casa Negra não há expiação possível. Não há maneira de acabar com uma ilha que instalou o seu próprio negrume no coração dos locais.
Fin recupera algo mais do que a memória do seu passado em Lewis, recupera o conhecimento das suas próprias falhas. Elas são o cordão umbilical que nunca conseguirá cortar para escapar àquele rochedo.


A Casa Negra (Peter May)
Marcador
1ª edição - Março de 2014
448 páginas