domingo, 30 de janeiro de 2011

Super-heróis mundanos

Seven Soldiers of Victory é um conjunto de mini-séries compiladas numa ordem que torna mais evidentes os pontos de contacto entre elas e que adensa os significados da reconstrução das Mitologias próprias a cada um dos protagonistas.
Trata-se de olhar o processo de criação de possibilidades apontadas a um futuro que não necessita do seu (re)criador para fazer valer as melhores ideias.
Claro que se pode ler somente estes quatro livros sem haver expectativa que daqui a algum tempo haja uma continuação relativa às suas personagens já que a excelência do trabalho de Grant Morrison promove novas formas de narrar histórias bem imaginadas, repletas de traços novos e que vão retomando o que de melhor e mais maduro a banda desenhada americana proporcionou desde meados da década de 1980.
Tudo isto para terminar numa reinvenção da própria arte de contar uma história como banda desenhada, uma reinvenção das possibilidades de traçar o que está na página e de jogar com a imagem e o texto sugerindo novos códigos, alguns deles remetendo para outros meios de expressão que se aglutinam com as características da própria história sem causarem quebras na forma de conjunto do trabalho.
Tudo isto servido por excelentes desenhadores, cada um capaz de se adaptar às necessidades da história que tem a seu cargo.

Mas histórias de Fantasia são muitas as que se lêem hoje em dia e mesmo com a quantidade de referências literárias e de traços de simbologia que obrigam a uma leitura cuidada é necessário encontrar algo que trace a obra como uma leitura que se perpetua.
Nesse aspecto, Seven Soldiers of Victory é um verdadeiro épico que confronta a individualidade com o traço do destino.
A partir do mundano - problemas quotidianos e humanos - procura chegar aos motivos para um confronto com forças superiores ao entendimento comum.
Os personagens super-humanos são normalmente considerados como obrigados a usarem os seus poderes em benefício do mundo.
Pelo contrário, aqui cada um se confronta com problemas reais que os afastam dessa crença.
Na prática confrontam-se todos com a ideia de Deus, um criador que lhes proporciona um dom no seio da mais completa privação.
Os problemas que tal dom lhes traz são superiores aos benefícios. Obrigações atrás de obrigações intercaladas por revoltas internas, acabam por os encaminhar inevitavelmente para o destino traçado. Mas esse destino tem agora a influência directa das suas personalidades e das suas escolhas.
Um épico de super-heróis com muito a dizer, como as obras que se dizem ter revolucionado a relação entre os letrados e a Nona Arte.



















Seven Soldiers of Victory: Volume 1 (Grant Morrison, J.H. Williams III, Simone Bianchi, Cameron Stewart, Ryan Sook, Mick Gray e Frazer Irving)
DC Comics
Sem indicação da edição - 2006
224 páginas


















Seven Soldiers of Victory: Volume 2 (Grant Morrison, Simone Bianchi, Cameron Stewart, Ryan Sook, Mick Gray e Frazer Irving)
DC Comics
Sem indicação da edição - 2006
176 páginas


















Seven Soldiers of Victory: Volume 3 (Grant Morrison, Pasqual Ferry, Ryan Sook, Frazer Irving, Yanick Paquette, Doug Mahnke, Billy Dallas Patton, Mick Gray e Michael Bair)
DC Comics
Sem indicação da edição - 2006
176 páginas


















Seven Soldiers of Victory: Volume 4 (Grant Morrison, Doug Mahnke, Freddie Williams III, Yanick Paquette e Michael Bair)
DC Comics
Sem indicação da edição - 2006
224 páginas

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Contemporâneo

Numa crítica a este livro li que as descrições detalhadas do mundo financeiro se tornavam aborrecidas.
Esse pormenor é mais indicativo dos (des)interesses daquele leitor do que deste livro.
Todas as descrições do livro são, na verdade, aborrecidas. Sejam do mundo da finança, do mundo dos jogos virtuais ou do mundo da crítica literária, todas elas têm detalhes de uma minúcia que incomoda os leitores não interessados no tema.
A menos, claro, que o leitor se deixe levar por eles como por portas de entrada para o mundo actual do qual ainda compreende apenas uma pequena parte.
Os muitos temas que o livro aborda são de uma actualidade que ainda não parou de acontecer, mas irá continuar a ocupar o mundo por mais alguns anos.
Aqueles que não lerem o livro agora ganharão entendimento sobre uma época que ocorreu, mas perderão o efeito esclarecedor e crítico que o livro tem.
A descrição clínica desses vários traços do mundo actual, sem qualquer tipo de juízos de valor, é pedagógica mas mais crítica do que pareceria à primeira vista.
Ao deixar o leitor enveredar tão longamente por temas que não lhe interessam - ou não lhe interessavam até aí - está a tornar evidente o tempo que é preciso dispender para estar actualizado com aquilo que ocorre (em demasia) no Presente.
A falta de qualquer crítica censória do longo discorrer sobre os temas permite-nos avaliá-los penetrando neles, olhando-os como se estivéssemos perante um relatório com a página das Conclusões reservada para nós.
O fanatismo de alguns dos seguidores do Corão ou a indiferença do mundo ocidental perante as imagens projectadas são frases extrapoladas pelo leitor quando lhe mostram os dados.
Não se conclua daqui que o livro é meramente funcional. Há personagens, há uma ficção-mosaico, há componentes mais e menos conseguidas.
Mas a informação que se lê à medida que existe é inexcedível, sobretudo para quem crê que o mundo se aprende nos livros.


















Uma semana em Dezembro (Sebastian Faulks)
Civilização Editora
1ª edição - Novembro de 2010
424 páginas

sábado, 22 de janeiro de 2011

Saga do que está por ver

O inacreditável está no que não se pode ver.
A frase não me pertence - nem a Rafael Sánchez Ferlosio, já agora - mas é um belo mote para este livro em que se valoriza a humanidade capaz de reencontrar o imaginário na simplicidade do real.
Extraindo cores de lagartos ou encontrando aventuras num poço, assim vai a vida de uma personagem que não tem direito a mais do que a curiosidade de olhar e experimentar o que está ao seu alcance.
Trata-se de uma saga humana, uma epopeia da individualidade.
A rara beleza de uma fábula assente na plausabilidade do que acontece a Alfanhuí. Aquilo que nós nomearíamos como Magia, Delírio ou Parvoíce, dependendo do grau de cinismo que tenhamos adquirido com os anos, é para tal personagem nada mais que a criação surgindo da insistência e da curiosidade.
A sua ciência, a sua arte e a sua odisseia nascem da vontade de ver o que acontece na pergunta, na execução e no passo seguintes.
O meu mundo é o imaginário. Esta frase, como a inicial, é de Jean-Luc Godard mas poderia pertencer ao personagem que completou estas andanças e façanhas.
Porque, como o realizador, ele acabou por concretizar o imaginário apenas por o abarcar e não o questionar (refutando quase sempre) à medida que ele se desenrolava à frente dos olhos.


















Andanças e Façanhas de Alfanhuí (Rafael Sánchez Ferlosio)
Livros Cotovia
Sem indicação da edição - Maio de 1991
160 páginas

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Amostra em fuga

A pessoa que me emprestou o livro disse-me que o tinha escolhida com a intenção de o usar como amostra para decidir se compraria a obra mais conhecida do autor, O Carteiro de Pablo Neruda.
Com base neste livro, dir-lhe-ia para optar por não comprar o outro livro com receio de que o resultado seja similar ao deste caso.
Verdade que esta novela - que, honestamente, julgo estar mais próxima do conto - tem belas ideias e uma apetecível escrita suave.
Tais ideias são as surpresas do próprio texto e que acabam por tornar o título mais evidente.
Em muitos outros aspectos esta narrativa vai buscar a inspiração ao livro mais conhecido do autor (ou pelo menos à ideia que faço dele a partir do filme) sobretudo no mistério silencioso do apadrinhamento masculino e relutante entre uma figura que quer uma ligação e outra que a pretende afastar.
Em oposição, livro tem também uma nítida sensação de incompletude e uma falta de horizontes sobre o que fazer com as tais ideias.
Isso deixa-nos mais expectantes do que satisfeitos com a leitura, pois da aldeia do texto há quem fuja para a cidade ao lado sem se preocupar em ser encontrado.
Uma cidade à distância de uma estação de comboio ou Paris servem da mesma forma para uma fuga de quem se quer perder das vidas dos que ficam na aldeia.
A aldeia é o fim do mundo, o fim das expectativas, o fim das interrogações.
Disto queria ler mais, desta aldeia em que não se passa nada, a não ser duas belas irmãs que são barris de pólvora à solta e que ligam pai e filho de forma mais evidente do que se esperaria, destas vidas que só sonham com a eventualidade da partida enquanto se resignam com ficar.
Resumindo, a história de amadurecimento do protagonista tem os seus momentos simpáticos, mas nada mais do que isso.
Sendo que a leitura do livro não leva mais do que meia hora não me parece mal passar os olhos por estas páginas. Já o outro, maior, exigiria um tempo desapontado.


















Um Pai de Filme (Antonio Skármeta)
Teorema
1ª edição - Setembro de 2010
88 páginas

domingo, 16 de janeiro de 2011

Mais qualidade do que interesse

Acho que é inútil abordar nesta crítica qualquer aspecto da história deste livro, uma luta entre o bem e o mal que tem como campo de batalha o corpo de uma menina.
O seu sucesso, a sua transposição ao Cinema e toda a descendência cultural que originou tornaram o tema - se nem sempre o conteúdo - tão popular que é redundante falar do livro nesse aspecto.
Felizmente que há outro aspecto, de facto, importante de abordar, a construção narrativa.
Começando logo pelo prólogo, um texto de transmissão do ambiente e das sensações que devem acompanhar a leitura do livro.
Não há ilusões - sobretudo para um leitor actual - do que se vai encontrar nestas páginas, mas ser-lhe vedado um acesso obrigatório a contextualizações ou construções rebuscadas de eventualidades futuras é mais sóbrio.
O prólogo é um pressentimento, uma forma de sugerir como o leitor deve abordar a expoectativa e, eventualmente, o efeito do que vai ler.
Depois disso, o texto é sempre uma parte dúvida e uma parte acção - eventos, aterrorizadores ou não.
Há muito diálogo interno, muita pesquisa, até mesmo muitas explicações à medida que a rapariga é levada a médico após médico para a sua condição ser explicada com uma de múltiplas perturbações psicológicas ou à medida que o padre estuda aquilo que terá de fazer.
A muita informação que o livro tem de dar aparece de forma massiva mas não de forma aborrecida, dispersa por diálogos ou reflexões, não como reproduções de parágrafos copiados de livros de estudo.
Será uma leitura exemplar para os escritores que, hoje em dia, enchem os seus livros de informação altamente detalhada mas não a conseguem articular com a simples necessidade de contar uma história.
Não acho que o livro seja de uma qualidade indiscutível quando comparada ao seu passado sucesso, nem acho o tema a leitura mais interessante para mim, seja qual for a ocasião.
Com esses constrangimentos, acho que o reconhecimento da qualidade do labor empregue dignifica bastante o resultado.


















O Exorcista (William Peter Blatty)
Gailivro
1ª edição - Setembro de 2010
344 páginas

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A Arte narrativa

As histórias de Essex County são fantasmagorias que traçam histórias de vidas, que mostram a solidão de um local que vive das suas pessoas desencontradas.
Um local abandonado e onde permanecem memórias cruéis, de onde emergem sonhos despropositados e de onde foge a realidade entendível.
São retratos cuja ressonância atravessa o Tempo e que descreve na perfeição um Canadá rural que se parece perder para as grandes cidades.
Vidas que se deixam incorporar, que deixam morrer os sonhos ou se amedontram de retornar ao lugar a que sempre pertencerão.
Os fantasmas de cada pessoa tecem uma rede frágil mas inescapável, ramificações complexas que se retorcem de volta ao seu centro nevrálgico, a terra onde sempre estiveram assentes, as suas vidas, mesmo de longe.
Dizer que é um fresco histórico sobre famílias em dissociação e assombradas talvez não seja um exagero, mas sim um acto de justiça que coloca o livro lado a lado com um número de livros que se inscrevem num cânone, de onde só o medo da combinação da imagem com a palavra excluiria este Essex County.


O desenho de Lemire tem uma imperfeição extremamente expressiva, capaz de nos deixar de coração em suspenso em certas páginas.
Páginas magníficas, de construção exímia, que brotam no momento exacto para emergir o leitor numa onda de terna admiração.
Aliás, o domínio narrativo de Lemire é de um mestre, para lá de etiquetas de género.
As suas transições de períodos narrativos são subtis mas intensas, equiparando-se a grandes escritores e incorporando o desenho para valorizar o que faz.
Por vezes a sua passagem do Passado para o Presente faz-se com um detalhe no desenho, quase imperceptível mas determinante.
Sabemos sempre em que fase da história estamos, sabemos sempre de onde surgimos e para onde vamos, conduzidos com maestria.
Lemire é um autor de mérito próprio, brilhante a todos os níveis, extraindo todas as potencialidades da banda desenhada para criar uma obra que está a par de qualquer obra literária.


















Collected Essex County (Jeff Lemire)
Top Shelf Productions
1ª edição - Agosto de 2009
512 páginas

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Combinação enganadora

Este livro tem algo em comum com o que li imediatamente antes. Como O rapaz que falava com o Diabo, sobretudo a combinação de um título (melhor que o original) sedutor com uma ilustração de capa inusitada.
Uma combinação que fez a parte da minha imaginação que se mantém juvenil partir para caminhos de excentricidade altamente divertida.
Se O rapaz que falava com o Diabo não cumpriu as possiblidades que imaginei mas me deu algo de valor, neste caso a excentricidade surgiu na forma da sua personagem central mas foi-se dissipando à medida que a narrativa e as suas peripécias se deixavam ir em fórmulas já vistas.
Neste início de ano fiquei com a sensação clara de que a minha imaginação me leva de encontro a livros que não me são dirigidos ou que não merecem o meu tempo.
Há uma reflexão a fazer sobre o grau de acidentalidade das editoras no desencontro entre o livro e os elementos que acabam por ser, hoje em dia, um importante anzol lançado ao leitor ou sobre a culpa da expectativa que o leitor coloca nesses mesmos elementos.


















O Coleccionador de Chuva (Julia Stuart)
Publicações Europa-América
1ª edição - Fevereiro de 2010
244 páginas

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Diferente do esperado

Uma singular ilustração de capa, tão diabólica quanto infantil, a par de um título chamativo e capaz de sugerir perigos sérios para diversões inocentes com amigos imaginários.
O livro não me deu exactamente aquilo que esperava, mas deu-me algo apreciável que o título em português revela em demasia (se nada se imaginar com ele) mesmo que nunca na totalidade.
A história de uma criança atormentada por um demónio. Uma criança que entretanto se tornou pai para ver a sua obsessão de novo a pairar no horizonte.
O demónio, real ou não, é o tema que preenche os cadernos terapêuticos em que reconta a sua infância.
Culpas próprias ou sobrenatural? Doença ou praga? Alucinação ou criação subconsciente?
Estes são os elementos de uma história discreta na implementação de um horror psicológico onde não há terrenos firmes para pisar, onde se tem de optar por uma explicação ou deixar-nos oprimir pela dúvida.
O rapaz que falava com o Diabo trouxe-me à memória Angelica e, embora não seja tão poderoso quanto este livro, acabou por me encaminhar a um final inteligente, que mantém a dúvida e cria uma ânsia quase desesperante para o que possa, afinal, acontecer.
Esse final compensa a superação que algumas das páginas foram exigindo, nem sempre com as palavras polidas para terem a melhor dinâmica, efeito ou ritmo, dependendo do momento.


















O rapaz que falava com o Diabo (Justin Evans)
Editorial Presença
1ª edição - Fevereiro de 2010
336 páginas