domingo, 29 de abril de 2012

A teia da identidade

Muitos fios se entrelaçam quando o noir é o formato de execução literária de uma avaliação da inesperada moldagem que a passagem do tempo opera sobre as relações humanas.
Fios com que o escritor ousa trair o quadro temporal que traçamos na nossa cabeça para que se instale a dúvida sobre como é possível que os protagonistas se mantenham firmes ou se rendam subitamente a comportamentos que parecem já inapropriados para a situação que estão a viver.
Acabarão por criar um nó que tem de se desfazer pela força. Esse momento, um confronto onde todos os personagens perecem de uma maneira ou outra, deixá-las-á sem hipótese de catarse, como ao próprio leitor.
O leitor deverá ficar sozinho sobre os escombros dos pedaços de vidas que foi dissecando voluntariamente página após página e olhar na direcção contrária para entender o tamanho da perversidade de que até aí fora apenas um voyeur deliciado.
Com isso descobrirá a verdadeira dimensão dos mistérios que estão no livro. Mistérios de identidade interna e não apenas dependentes de uma revelação de nomes.
O mistério que coloca em movimento os acontecimentos lidos é apenas um. Sabemos desde o início que os vários fios do livro terão de constituir uma teia no final.
Inevitavelmente queremos saber qual foi o caso que esteve na origem de tudo, mas esta história torna isso em algo secundário, ainda que o revele num momento de fascínio exaltado.
São as transformações dos protagonistas os verdadeiros mistérios, rendidos a sentimentos benévolos - próximos já do amor - por aqueles que os tornaram vítima, mesmo se para tal todos tiveram de ser também carrascos, como é próprioda natureza humana mal controlada.
A proximidade do cativeiro físico e o isolamento do cativeiro emocional levam a que as personagens se rendam aos sentimentos humanos que os seus actos parecem tão eloquentemente negar.
Ninguém evita ser humano e, com tal, necessitar dos outros. Mas todos agem, num momento ou noutro, como se tivessem purgado de si toda a compaixão.
Basta que as condições sejam extremas para que se quebre, para o bem ou para o mal que é sempre a dicotomia a que se quer assistir neste género, a existência anestesiada com que cada personagem tenta viver com prazer individual e sem sofrimento.
Jonquet controla-nos nesta viagem de forma sublime. Não se trata apenas de sustentar uma estrutura complexa para contar uma história cuja linearidade seria quase simplista - basta ver que o livro mal ultrapassa as cem páginas de texto corrido.
Trata-se de utilizar a linguagem para nos dominar mas, também, para desvendar mistérios transformadores com a subtileza que confia na inteligência do leitor.
Reinventando o noir com a excelência de excitar o leitor e usar esse estado para abalar as crenças apaziguadas em que o leitor pretende sustentar o seu mundo. Brilhante, portanto.


Tarântula (Thierry Jonquet)
Suma / Editora Objectiva
1ª edição - Novembro de 2011
144 páginas

domingo, 22 de abril de 2012

Há filmes que vêm por bem


Ler este livro é reencontrar a juventude literária e rever os motivos pelos quais se entrou pela primeira vez neste mundo e aqueles pelos quais nele se continuou e se evoluiu.
A aventura e a imaginação são os motivos que fascinam qualquer jovem leitor, que lhe fazem perceber o poder e o fascínio da palavra escrita.
A descoberta dos temas fortes e dos recursos intencionais que o autor coloca logo debaixo do sentido mais simples da narrativa.
Para mim a passagem - a conjugação, mais precisamente - do divertimento ao entendimento deu-se com o sentido crítico d'As Viagens de Gulliver e parece-me que a proximidade dos dois livros é grande - e isto sem entrar na hipótese que pessoas mais capacitadas adiantaram de que o livro de Jonathan Swift seja embrionário da Ficção Científica.
Um inventava a Terra que ainda estava por descobrir, o outro inventava o planeta que, logo aqui ao lado, era ainda um mistério pleno de hipóteses. Fizeram isso imaginando para lá do que era então possível e para lá do que poderia ser esquecido depois.
E ambos usavam a aventura entre civilizações distantes e impossíveis para julgarem os padrões de comportamento da sua época (e alguns deles pemanentes à existência humana).
Neste trabalho de Edgar Rice Burroughs, ao falar do comportamento dos seus pares, parece ter antecipado todo o século que havia de se seguir. Mas contrariando, igualmente, as negativas expectativas com uma elevação heróica individual.
Claro que John Carter é tanto um interveniente directo nos acontecimentos como um guia involuntário por um mundo de encantos.
Edgar Rice Burroughs tinha o trabalho de seduzir os leitores e através da sua personagem percorre os espaços da sua imaginação que merecem ser partilhados pelos que, fechando os olhos, apenas conseguem ver negro.
John Carter traz de volta ao leitor o prazer de ler uma aventura onde o investimento na criação de cenários é tão grande quanto os acontecimentos narrados.
Uma aventura que deixa espaço ao exercício de completação do leitor em vez de, como os modernaços, tentar equiparar-se à imagem em movimento e descrever detalhadamente cada pequeno movimento de cada acção maior.
Esta aventura de John Carter é clássica e se nunca vai caber no cânone, como João Seixas sublinha num prefácio essencial e iluminante, tem mais do que lugar naquela lista de títulos que devem ser do conhecimento de todos, para espevitar os que começam a ler e para que os que há muito lêem entendam a base de alguns elementos essenciais da ficção do século XX - afinal, e aproveito a referência feita por João Seixas, John Carter inspirou os poderes de um dos mitos da nossa era, o Super-Homem.
Esta oportunidade que agora têm os leitores portugueses só pode ser encarada com a alegria de ver que um filme, mesmo um que fracassa nas bilheteiras, pode ser uma boa oportunidade para o mercado editorial português.
Ao mesmo tempo, Mesmo se não se possa apagar uma nota de cepticismo e pena pois dificilmente este livro conseguirá fazer o sucesso indispensável a que as suas sequelas acabem traduzidas. Basta olhar para o título, John Carter, para perceber que traz a condenação da edição definitiva do herói, sem nenhum subtítulo a prometer o retorno a outras aventuras!


John Carter (Edgar Rice Burroughs)
Saída de Emergência
1ª edição - Março de 2012
224 páginas

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Nem sequer um capítulo

Há muito tempo que não me acontecia isto, recusar liminarmente um livro por culpa directa e exclusiva da escrita do seu autor, em igual medida ridícula e trágica.
Desta vez, antes que o primeiro capítulo do livro terminasse, por três vezes inspirei fundo para superar a raiva com que o livro me motivava a atirá-lo contra uma parede, o que só não podia fazer por estar em local público.
E antes que o primeio capítulo do livro terminasse fechei-o para não mais o abrir, ficando-me apenas um resquício de raiva por ter sido este o livro que escolhi para transportar comigo nessa manhã e, à conta disso, ter desperdiçado os períodos que habitualmente devotaria à leitura.
Falarei então desses três momentos que me fizeram duvidar da justeza do cuidado que devoto aos livros.
O primeiro ocorreu logo à segunda página onde li Estou habituada a ver-lhe o rosto espalmado em 2D num ecrã plasma, na privacidade do meu apartamento em Nova Iorque, mas aqui está ele em tamanho real e em carne e osso a 3D... .
Se continuei após esta linha foi por acreditar que num primeiro romance, sobretudo no seu início, alguns escritores podem ainda estar à procura de uma voz e, assim, cometer alguns erros. Por isso superei a estupidez do uso da terminologia referente à percepção de profundidade associada, mais correntemente, ao cinema e a redundância das mesmas que repetiam a ideia melhor expressa imediatamente antes.
O segundo apareceu à página doze, quando começava a crer que a minha ideia anterior se confirmava e que a autora merecia que se deixasse passar aquele pedaço de má escrita: Olhei para ela, vislumbrando-lhe o rosto pálido e ansioso para lá da marca da maquilhagem, uma gueixa de meia-idade com base bisque da Clinique.
Sem nenhum entendimento de questões relativas a este produto de maquilhagem, não consegui - e continuo sem conseguir, visto que para mim bisque é um prato culinário - entender o significado final da comparação. E gostei ainda menos de ver a publicidade a uma marca que tive de deduzir dedicar-se aos cosméticos. Continuei, já perto do desespero, apenas porque não tinha comigo mais nada para ler.
O terceiro e decisivo momento, na página vinte e um, que obriga a uma transcrição um pouco mais longa mas, também, mais traiçoeira:
- E a cor?
"Pantone número PMS 167", pensei imediatamente, mas as outras pessoas não sabem as cores do mundo pelos respectivos números de pantone, por isso respondi:
- Cor de caramelo. - Os teus cabelos faziam mesmo lembrar caramelo. A parte de dentro de um bombom Allegro, para ser mais precisa. Puro líquido reluzente.
Quando parecia que a autora tinha conseguido dar a volta ao seu mais recente defeito - que raio é pantone, perguntava-me eu - atribuíndo-o à sua narradora e transformando-lhe a linguagem, logo volta ao mesmo, usando como referência uma outra marca que nem sabia existir.
Não sei se este uso de marcas é um acto de preguiça que poupa uma dúzia de palavras a quem escreve ou um acto de modernismo que insere o livro no reconhecível quotidiano corrente e atrai mais compradores, mas muitos dos livros que subsistem para lá do seu tempo valem-se de descrições compreensíveis a qualquer leitor e em qualquer período.
Este, pelo contrário, se for lido quando as marcas já não existirem ou quando estas tiverem alterado as suas características será um anacronismo sem interesse e (ainda mais) sem sentido.
O uso de tais referências é um logro que parece até funcionar melhor para vender os produtos do que para dar substância à imagética que se faz do livro. Digo isto porque, entretanto, vivi o afortunado acaso de experimentar um desses bombons, sendo que o interior dos mesmos não se parece nada com o "puro líquido reluzente" descrito (mas logo esperado enquanto o colocava à boca).
Depois deste terceiro momento de má literatura só havia mais página e meia até que o capítulo terminasse e ainda ousei pensar em percorrê-las só por descargo de consciência. Mas não, ali parei e não mais pensei no assunto até me poder vingar do livro publicando esta breve memória de um ressentimento que se apagou, imediata e felizmente, com o livro seguinte.
Tenho de admitir que, por comparação com o livro que, neste mesmo mês mas em 2009, abandonei (sigam o link do primeiro parágrafo, se quiserem saber qual foi), este constituiu um desapontamento maior. Mas a culpa tem de me ser imputada neste caso mais do que no anterior.
A diferença está no facto de, há três anos atrás, ter pegado no livro na ânsia de ler tudo aquilo a que tivesse acesso rápido e demonstrasse alguma actualidade literária, e agora ter sido atraído pelo conjunto constituído pelo design da capa, pela atenção internética e pelas críticas positivas (com destaque para a do The New York Times Book Review
Na medida contrária a estas razões estava, na altura, mais avisado para a hipótese de vir a não gostar do livro do que mais recentemente.
Na altura queria insuflar alguma vida ao blogue, agora deixo passar o tempo sem preocupações de maior (passam-se agora semanas desde que peguei neste livro) mas nem num caso nem no outro tive dúvidas em descrever sem piedade o desprezo que me causou o que li.
Claro que fica em aberto a hipótese de ambos os livros terem um enredo brilhante que no final surpreende o leitor. Mas não tenho vontade de me flagelar com má escrita só para ter uma surpresa cujo mérito e a memória desaparecem no segundo a seguir a fechar o livro.


Irmã (Rosamund Lupton)
Civilização Editora
1ª edição - Janeiro de 2012
368 páginas

terça-feira, 10 de abril de 2012

A propósito da Páscoa

Que altura mais indicada do que a Páscoa para ler o relato do que ocorreu até à e para lá da crucificação do "Homem que era Deus"?
Muitas das palavras que Max Gallo usa para tal são retiradas ipsis verbis dos Evangelhos, mas o efeito que ele virá a alcançar é muito diferente do que esses quatro textos canónicos têm tido desde a sua origem.
Isso começa desde logo pela inversão do relato que se dedica primeiro a Flávio, o centurião que supervisionou as crucificações de Jesus e dos dois ladrões, e que após esse momento se vai convertendo à visão do homem que conduziu a um derradeiro calvário.
Flávio é a concretização do legado que Jesus esperava ter deixado ao mundo, uma obra feita de palavras e actos que convertesse até o mais resiliente dos homens.
Só depois de tal viragem na vida do soldado o relato foca-se na vida de Jesus. Parece então que nada mais é a segunda parte do livro do que uma versão mais talentosa - porque reescrita pela mão de um romancista - e criteriosa - porque  - da mesma velha história.
Não é porque nos espaços em branco entre actos de Jesus vem Max Gallo a retrabalhar o relato conhecido.
As sugestões que o autor faz são discretas e, por isso, pouco alarmantes para os crentes que leiam o livro sem vontade de perceberem devidamente a forma como Gallo persegue o lado humano de Deus-Filho.
A subtileza de Max Gallo é o seu mais forte recurso para fazer do homem uma figura mais intrigante do que o deus.
Não sei se tal poderá ser considerado uma tradição da ficção do mundo de influência católica, mas não é totalmente nova essa visão de como o lado humano pode ser tão influente na visão que subsiste do lado divino desta mesma personagem.
O que distingue a visão de Max Gallo é que, além de humano, o seu Jesus sublinha a referência que se encontra na frase da cultura popular usada no século XX para muitos dos seus influentes artistas, "Foi o maior entertainer desde Jesus".
Este Jesus é, de facto, um entertainer que precisa do público. Tem ferramentas de político e de ilusionista, combina a retórica com o encantamento.
Pensando em dois dos seus milagres, equiparáveis no tema, o das Bodas de Caná (água tornada vinho) e o da Multiplicação do Pão (a comida de cinco que saceia cinco mil), vemos as duas atitudes contrastantes de Jesus.
No primeiro tenta rejeitar a intervenção que lhe pede a mãe porque "não chegou a sua hora", porque não está ainda no caminho da sua campanha para conquistar o povo e porque o número dos que verão aquele milagre será reduzido.
No segundo, já não precisando de dar provas aos que o adoram, rejeita a ideia dos discípulos de mandar embora a multidão e sedu-la ainda mais uma vez em nome do elogio que quer manter à sua volta e em nome da memória de si mesmo que lança ao futuro.
Este Jesus é humano e vive os nossos vícios (e os da nossa moderna classe política), tal como os deuses de outras mitologias já os viviam, dando "o exemplo" e dando "mau exemplo".
Este homem usa o cinismo e tenta vencer o receio. Maquina sobre as figuras de estilo a usar para que a população do campo o entenda e o veja como um deles. Tenta fugir à sua morte porque ainda prefere vencer a contenda política de outra maneira.
Mas cumpre com tudo, rejeitando até o vinho que o anestesiaria no momento da crucificação para melhor e mais ardentemente sofrer as dores que estão por vir.
Tudo para deixar um legado inapagável. Tudo por convicção de que aquelas acções serão as que verdadeiramente farão dele imortal na memória da Humanidade.
Por isso devia o livro chamar-se "O Deus que era Homem" pois é da sua manha humana que se vale para se fazer divino aos olhos dos que lêem os relatos de Mateus, Marcos, Lucas e João.


 Jesus O Homem que era Deus (Max Gallo)
Edições Asa
1ª edição - Novembro de 2011
304 páginas