terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Não há paciência

Há muito tempo atrás, ainda este blogue era imberbe, confessei que concedia a cada livro trinta páginas para provar que merecia ser lido - ou, pelo menos, para mostrar que haveria "Vida" nas que se seguiriam - antes de o rejeitar por completo.
No entanto tenho cada vez menos paciência para os livros que não conseguem sequer esconder a sua mediocridade. As trinta páginas estão agora reduzidas a uma dúzia e suspeito que este tipo de julgamentos comece a ser feito com um par de páginas apenas.
Já têm sido vários os livros que nem chego a abordar neste espaço porque a falta de vontade continua de os ler para deles escrever.
No caso deste livro de Teresa Lopes Vieira, pelo contrário, escrever sobre ele deve ser feito como levantamento de algumas hipóteses acerca d(est)a literatura.
O que se passa com O Albatroz é similar ao que se passava com Irmã, com as referências a marcas a virem tentar dar um sinal de ligação do mundo do livro ao mundo do leitor.
É também diferente, porque se nesse outro livro as marcas serviam como referências de descrição, aqui são mesmo matéria de actualidade com que os protagonistas interagem.
Ao fim de algumas páginas, Jesus vai ao YouTube (e não Youtube como a autora escreveu, mas não se perca tempo com isso) ouvir uns relaxing piano tunes (assim mesmo, em itálico, embora YouTube não surja da mesma forma).
Na página seguinte já abriu o site do Sapo Empregos só por descargo de consciência pois já não procura lá nada.
Finalmente (até onde fui capaz de ler, claro) confessa a estranheza de ver a sua irmã seminua na capa das revistas expostas nas bancas do Pingo Doce.
Preocupa, desde logo, que esta achega à actualidade no livro coloque em causa o seu entendimento futuro quando todas estas marcas não forem sequer uma memória.
No entanto a pergunta que tem de ser feita perante esta pequena recolha (e mais situações do género haveriam para incluir) é o porquê destas escolhas em particular.
Será que ser o Sapo Empregos o site escolhido em vez do Net Empregos ou do Expresso Emprego tem algum significado que contribui para o entendimento da personagem?
Será que Jesus ir ao Pingo Doce e não ao Jumbo ou à mercearia da sua rua nos diz das escolhas pessoais que este desempregado fez ao longo da sua vida?
Sem ser pela frase "O pequeno anfíbio verde na parte superior do ecrã propunha-lhe um mundo de oportunidades, nenhuma delas aliciante." não se encontram usos específicos das escolhas da autora.
A ideia que ela deixa - não importa que seja a verdade exacta - é a de que só sabe escrever com a imaginação que vai até onde a sua vida alcança; de que é a própria escritora que vai ao Pingo Doce e corre os olhos pelas capas das revistas sobre vidas alheias e que fica desapontada com as ofertas de trabalho disponíveis no site de emprego do Sapo.
Isso afecta todo o livro, dizendo dele que nasce apenas da experiência que a escritora é capaz de reproduzir por palavras e, por isso, não é nada além de um registo mais ou menos preciso - afinal, espera-se que haja, pelo menos, um toque de criação envolvido - da realidade.
Sobre essa criação levanta-se a dúvida quando se atenta à linguagem usada, sempre resvalando para o calão actual.
Essa espécie de realismo perseguido pela autora parece colocar de parte um dos fenómenos essenciais da Literatura, a de retrabalhar a Língua mesmo que seja para reforçar a percepção de que o que está escrito nasceu da coloquialidade.
Sintomático disso é o fragmento final de texto lido antes da recusa do livro: "mas já se estava a cagar.".
Sendo, pelo menos, a segunda vez que a expressão era usada nas páginas que ficaram para trás, fica como uma sentença definitiva para este leitor em particular no momento em que havia cerca de trezentas páginas para diante.


O Albatroz (Teresa Lopes Vieira)
Bertrand Editora
1ª edição - Julho de 2013
304 páginas

domingo, 29 de dezembro de 2013

Livros em série

Há mais justiça - e lógica, estou em crer - em falar de livros como este a partir de uma ideia de entretenimento que se associa a uma larga maioria de séries televisivas.
O Golpe torna-o mais óbvio dado que a sua premissa se assemelha em muito a dois exemplos ainda activos, White Collar (sobretudo este) e The Blacklist.
Também ele é um episódio de uma série - intitulada Fox and O'Hare - que funciona durante o tempo que demora, se afasta da mente pouco depois de terminar e voltar a vir à tona pela noção de continuidade que vem com o episódio seguinte.
Este é, portanto, o livro para quem gosta de ter direito às suas séries e tem apreço pela leitura - ou gosta da portabilidade de uma história com acção que só os efeitos especiais costumam permitir criar e exotismo que só os cenários feitos com bastante dinheiro permitem concretizar.
Obviamente que com a palavra escrita tudo isso é mais simples de conseguir e este livro leva isso ao limite, com lançamentos de pára-quedas em ilhas gregas onde as mulheres não estão autorizadas a entrar ou viagens de iate interrompidas por piratas por entre os milhares de ilhas indonésias.
As qualidades que o livro precisava de ter cumprem-se, tendo o ritmo que não o deixa chegar a ser aborrecido em momento algum e tendo a duração certa para que não se lhe exija algo mais do que a diversão que proporciona.
Os autores são económicos na construção do cenário que terá de permitir que dure em vários outros, porque confiam que terão páginas suficientes para moldar melhor os personagens.
Obrigatório neste livro era "agarrar" os leitores, tal como um episódio-piloto tem de conseguir. A abordagem explosiva vem primeiro e, se a audiência for em número suficiente, espera-se que dê lugar (mas não por completo...) à substância que faz os leitores continuarem a ler.
Nesse aspecto julgo que é essencial a cooperação de Lee Goldberg perante o cenário montado para uma relação amorosa entre o criminoso e a agente por ele responsável.
O estilo flamboyant - para dizer o mínimo - com que a escritora trata as suas heroínas quando chegam às suas cenas românticas, costuma levar a exageros perfeitamente ridículo que humilham as personagens.
Por isso a conclusão é que foi Lee Goldberg a amenizar esse tipo de exploração reduzindo a uma única cena de "beijo na eminência da morte" (não há quem ainda acredite nessa tensão da possibilidade dos protagonistas morrerem, mas finge-se que sim).
Mesmo quando a protagonista é sujeita a condições que não lhe agradam - exibir-se num fato de banho reduzido - parece que é Lee Goldberg a devolver-lhe uma certa independência com uma dose de testosterona - passando-lhe um lança-granadas para as mãos.
Suponho que o nome de Lee Goldberg - como a capa deixa patente - estará sempre secundarizado contra o d'a autora de policiais mais vendida em todo o mundo. Não sei se tal será justo, mas acredito que a pequena visibilidade que, apesar de tudo, a situação lhe proporciona lhe seja benéfica.
Não tinha qualquer intenção de pegar neste livro depois da mais recente leitura de um livro de Janet Evanovich, mas um inesperado envio por parte da editora acabou por ditar que fizesse o exacto oposto.
Graças a Lee Goldberg posso dizer que fiquei satisfeito com o par de horas esquecidas à conta deste livro. Não ficarei à espera do próximo volume, mas quando sair terei um pequeno alerta no fundo da memória para que lhe dê uma vista de olhos.
Tal como o novo episódio de uma série que só de semana a semana volta a entrar na minha memória, mas a que vou assistindo relaxado. Apenas o intervalo entre eles é maior aqui.


O Golpe (Janet Evanovich e Lee Goldberg)
Topseller
1ª edição - Outubro de 2013
320 páginas

sábado, 28 de dezembro de 2013

O todo é menor que a soma das partes

São duas as ideias de livro que Markus Zusak tenta fazer funcionar em conjunto, mas que se enfraquecem uma à outra.
De um lado está a possibilidade de os livros serem a salvação do espírito durante os tempos mais terríveis da História que colocam em causa o conceito de Humanidade.
Do outro está a Morte como funcionária de recolha de corpos com visão priveligiada para as vidas dos vivos.
A primeira é aquela ideia que é mais sólida, preenchida de pequenos episódios que reforçam o corpo da ideia no romance. A utilização conjunta da outra ideia prejudica-a, enfraquecendo a atenção isolada que ela merecia ter.
Essa outra ideia surge como um truque de realismo mágico para chamar atenção para o livro com uma "dose extra" de extravagância criativa.
O uso da Ceifadora como uma funcionária ora contente com a função, ora sobrecarregada pela Guerra - e atrocidades cometidas para além dela - e que possa revelar um lado humano com algo como um sentimentalismo invejoso por algumas vidas que preferia ter no lugar da sua surge como uma ideia cheia de potencial. A ter de ser explorado como mote único, tornando a Morte numa personagem e não numa narradora conveniente para ser omnisciente e opinativa.
A sensação definitiva acerca do papel da narração por parte de uma Morte sentimentalmente amenizada é a de vir tornar num conceito inócuo as mortes de milhões de pessoas às mãos dos Nazis, permitindo uma leitura suave para um público jovem.
Se há algo que a ideia principal do livro não necessita é de ser transformada numa história de sensibilidade juvenil.
A força da história d'a rapariga que roubava livros é o apelo que tem para todos os leitores, não importando quão longa a relação afectiva que criaram com os livros e a leitura.
A relação de Liesel com os livros não poderia ser iniciada de maneira mais estranha - com um manual para coveiros - nem ter uma continuação menos ortodoxa - um livro ilustrado, de meras treze páginas, pintado por cima das páginas de outro - de tal maneira que os roubos que faz são o elemento mais normal da sua relação.
Rouba o primeiro livro a quem lhe enterra o irmão morto por um comboio. Rouba o segundo a uma fogueira desatendida. Mesmo aqueles que lhe são dados foram roubados à dureza humana ou à austeridade da vida.
Bastaria isso para falar de forma intensa sobre as vidas no tempo da maior barbárie humana.
Afinal, os livros foram os primeiros inimigos que o Partido Nazi tentou purificar, queimando os que não se enquadravam com a sua visão do mundo.
Os livros não são uma metáfora para o que aconteceria aos judeus, são um seu paralelo menos cruel mas não menos dramático.
Que os livros surjam como objecto de salvação de vidas é uma combinação natural que deveria estar mais explorada, ao invés da história se desmultiplicar - muito por culpa da escolha da narradora - em personagens e eventos que favorecem o charme do livro mas prejudicam a fortaleza narrativa.
Os episódios relacionados com os livros e a leitura demonstram bem isso por parecerem demasiado raros num livro de mais de quatrocentas páginas.
A salvação de jornais velhos demonstra que as palavras nunca perdem a força para um espírito a necessitar de consolo e para um corpo a necessitar de saber do mundo depois de tanto tempo fechado numa cave.
A utilização de um exemplar de Mein Kampf para um judeu se esconder à vista de todos fala do poder transformador de um livro e de como este escuda do mundo quem o segura.
A criação de um novo livro - sobre amizade - por cima das páginas desse mesmo manifesto faz prova de que a imaginação ainda é capaz de recorrer à criação para vencer qualquer adversidade.
Esta é a ideia que sobressai do livro ainda que esteja enfraquecida pela adição mal ponderada da restante.


A Rapariga que Roubava Livros (Markus Zusak)
Editorial Presença
1ª edição - Fevereiro de 2008
468 páginas

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Consistente imaginção

A caricatura é o tributo que a mediocridade oferece à genialidade.
Oscar Wilde
(em Oscar Wilde e os Crimes à Luz das Velas)


Pode muito bem ser que Oscar Wilde tivesse razão, ele que foi tão assolado pela praga da caricatura que se julgava mordaz.
Creio que ele teria algo mais positivo a dizer sobre uma representação que, em sentido inverso, carrega as características mais interessantes de alguém.
Esse é o caso dos livros de Gyles Brandreth em que Oscar Wilde é um detective de imenso poder de dedução mas ainda é mais o Oscar Wilde espirituoso que o torna um ícone eterno.
Antes mesmo dos seus dotes dedutivos, gostamos de acompanhar este Oscar Wilde-personagem pelos seus ditos acontecendo em situações correntes.
A aplicação apropriada de cada um deles a um momento de diálogo ou de avaliação da realidade, o que as torna ainda mais apreciáveis do que já são quando lidas sem contexto envolvente.
Até é pena que Oscar Wilde as tenha dito de facto, pois se as boutades provocatórias tivessem sido inventadas por Gyles Brandreth o seu génio criador seria ainda maior.
Ainda assim nada se pode apontar à forma como o autor integra Wilde e os seus pares - Arthur Conan Doyle e Bram Stoker - em tramas policiais rebuscadas e fascinantes, mas plausíveis na vida que Wilde levava.
Tal como o dissera acerca do primeiro livro desta saga que lera, Oscar Wilde continua a ser a origem e o fim dos mistérios em que se envolve.
Ele atrai esse género de situações à sua vida pública pelo tipo de pessoas que consegue agregar à volta da sua vida privada.
O que é maravilhoso nos casos que toma para resolver é que eles gravitam sempre em torno das suas presenças e decisões.
As investigações pertencem-lhe e é inevitável que ele tome controlo delas e dos restantes parceiros que parecem seus subordinados: Watsons mais ou menos servis ou opinativos.
Até porque, tal como eu dissera antes, este Oscar Wilde é um detective superior a Sherlock Holmes. Mas a sua existência como o absoluto dândi diletante não lhe permite ser tão eficaz quanto a criação do seu amigo, pelo que acaba por ser a inspiração para Mycroft Holmes.
Uma possibilidade divertidíssima e naturalíssima na perspectiva do que é a combinação de realidade e criação feita por Brandreth.
Se todas essas características dos livros os tornam altamente aprazíveis, é na forma como Gyles Brandreth se apropria dos estilos dos escritores que convoca como inspiração e personagens para os emular num resultado final que é seu, que os livros atingem um ponto de excelência.
Tal como fizera com Robert Louis Stevenson, faz agora com Bram Stoker e fará sempre com Arthur Conan Doyle.
A sua forma de escrever é a síntese da remissão da memória para esses escritores e o seu tempo e do lançamento da imaginação para as possibilidade que pouco arriscariam ver hoje.
O trabalho de Gyles Brandreth está entre o melhor que temos tido o privilégio de ler (dentro do género, se for estritamente necessário evitar discussões sobre o grau literário a que eles pertencem).
A cada história, o autor tem sido consistente na sua reinvenção da forma de a contar, o que o torna inconsistente tal como Oscar Wilde haveria de gostar e nós, leitores, temos o prazer de já o fazer.


A consistência, como bem sabe, é o último refúgio de todos aqueles que não têm imaginação.
Oscar Wilde
(em Oscar Wilde e os Crimes do Vampiro)


Oscar Wilde e os Crimes à Luz das Velas (Gyles Brandreth)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Junho de 2008
272 páginas


Oscar Wilde e os Crimes do Vampiro (Gyles Brandreth)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Março de 2011
336 páginas

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A defesa de si mesmo

Um crime envolvendo crianças, como vítimas e perpetradores, torna-se num exame profundo à comunidade a quem perteciam.
Os jovens são sempre a ponta de esperança e inocência que a comunidade tem para protegere. Que possam matar ou ser mortos coloca em causa a essência da comunidade e as noções com que esta faz frente ao seu mundo - que julga terminar ao fundo do quarteirão.
Não importa que "as crianças possam ser muito cruéis", as pessoas confiam sempre na nobreza inocente da geração dos seus filhos para a qual trabalharam de forma a proporcionar-lhe um ambiente recluso mas dentro do qual há a ilusão de liberdade.
A vida é um vaguear seguro porque acontece dentro de limites, desde que estes sejam mantidos a uma distância que os torne invisíveis.
O anseio dessas comunidades em tornarem-se condomínios amplos onde os muros mantém os perigos do lado de fora fá-las esquecer que são uma reprodução miniatural do mundo e que o perigo estará sempre - mesmo se apenas em potencial - lá instalado desde o momento da sua criação.
Esse perigo intrínseco, que a comunidade adulta tentou esquecer, volta a assombrá-la assim que aqueles a quem chamava "os nossos jovens" estão postos em causa.
Esse é mesmo o caso central do narrador, pai do acusado, que testemunha em tribunal a história complexa que viveu e em que o seu papel é, igualmente, o de acusado pela opinião pública que precisa de um bode expiatório da culpa geral.
Ele é, também, filho e neto de assassinos e o procurador-geral que ficou com o caso encaminhando-o numa direcção que não era a do seu filho. Portanto, culpado por genética e cúmplice por profissionalismo.
Está no tribunal a testemunhar tanto a favor do seu filho como de si mesmo.
Defende-se do falhanço como pai que deixou passar em claro as tendências violentas do seu filho.
Defende-se da inevitabilidade de ceder ao gene guerreiro que lhe corre nas veias e transmitiu ao acusado.
Defende-se do crime de se ter aproveitado de um posto de confiança que até aí cumprira irrepreensivelmente.
Resta saber, com o decorrer da história, se isso é possível quando cada rua, cada cidade e cada estado americano - e os próprios Estados Unidos da América - (se não o eram) se transformam numa comunidade unida contra aqueles que a atacam.
Este homem, Andy Barber, que relata a sua história no tribunal nunca estará perante doze dos seus pares, mas perante doze dos seus múltiplos acusadores.
A sua batalha não é judicial, é de pertença pessoal no seio daquilo que se pode considerar a forma moderna de conselhos tribais.
Andy Barber tem de argumentar contra opiniões já estabelecidas, mudar a visão que fazem de si e dos seus, contra as conversas tidas em surdina onde a sua situação passou a ser entendimento comum.
Mas o seu relato tem duas camadas. A de composição de uma imagem controlada para os restantes membros da sua comunidade e a de alívio pessoal da consciência com um relato mais completo.
Ainda que Andy se defenda, até pela sua profissão não consegue deixar de ter dúvidas no momento de uma análise mais fria da situação fazendo uso de todos os elementos que conhece.
Esse relato, pelo qual William Landay torna o leitor cúmplice imediato da consciência do personagem que criou, não pretende esclarecer sobre culpa(bilidade) e inocência.
Pretende obrigar o leitor a vaguear nas lamas da "dúvida razoável" até que faça um julgamento quando é o único par possível para aquele personagem: o único que com ele partilha todo o conhecimento.
O leitor não ficará livre de duvidar, tal como ninguém o deixa de fazer até ao final do livro, momento para o qual o autor reserva uma última e essencial revelação que vem alterar em definitivo - e para melhor efeito no leitor - o que até aí se tinha lido.
Com o benefício de não precisar de recorrer a qualquer mirabolante reviravolta, bastando ter sabido os momentos certos para cada informação.
Dando um lugar de interveniente essencial ao leitor, o autor conseguiu aguçar tanto o interesse como a ponderação de cada leitor.
Afinal, sob a capa de um thriller judicial, William Landay escreveu um relato muito inteligente de angústias individuais e colectiva.
Um relato dos limites da sordidez humana e da fidelidade familiar, simultâneo e deixando que esses limites se tornem difusos uns contra os outros.


Em Defesa de Jacob (William Landay)
A Esfera dos Livros
1ª edição - Julho de 2013
388 páginas

domingo, 22 de dezembro de 2013

O prazer de estar (e ir resolvendo um mistério)

A Praia dos Afogados é um policial com uma trama muito bem estruturada que leva o leitor do Presente ao Passado e de volta através de um conjunto de mistérios que se relacionam sem falhas.
Para quem não tem o policial entre os seus favoritos, vale a pena indicar que A Praia dos Afogados é, ainda antes do que acima escrevi, um romance de ritmo pausado que proporciona ao leitor um convívio de grande intimidade com uma personagem fascinante como é o inspector Leo Caldas e que faz uma descrição perspicaz da comunidade pesqueira da Galiza.
No equilíbrio entre as duas faces do livro, aparentemente antagónicas, descobre-se o quão bom foi o trabalho do seu autor, com recurso a toda a versatilidade para as equilibrar.
Os capítulos breves e com recurso ao diálogo como ferramenta primordial da investigação policial sabem guardar espaço para momentos de apreço pela paisagem em redor ou de reflexão nas tradições locais.
O humor das trocas de palavras com as testemunhas de vontade cerrada faz sentido lado a lado com os humores menos animados de um tio de Leo Caldas gravemente doente que este não tem tempo de visitar.
A dupla cómica de contrastes que o inspector forma com o seu adjunto Aragonês e temperamental - um  sidekick fora-de-água perante o calmo Galego - não permite que se perca o tom de tragédia simultaneamente perdida e prolongada no tempo.
Trata-se de um romance cheio de vidas realistas, começando na das costas galegas - descritas até à palpabilidade - e terminando nas de maiores dificuldades dos pescadores de uma década atrás.
Um romance que, sendo igualmente um policial, se aproxima daquele cariz clássico que os melhores têm: não depende apenas do mistério para agarrar o leitor, garante tal efeito pelo carácter da sua personagem.
Leo Caldas está entre os polícias capazes de protagonizar livro atrás de livro sem se tornarem personagem esgotadas, antes atingindo o estatuto de inesquecíveis.
Isso vem de elementos tão inusitados quanto fascinantes que moldam uma personalidade única em que o polícia e o homem se confundem.
O seu relacionamento com o pai que lhe serve de mestre sem filtro e com quem se dedica a completar (de memória) um caderno de idiotas que foi sendo compilado por este.
O seu voluntarismo para um programa de rádio onde recebe - e se propõe a resolver, sem sucesso aparente - as queixas dos cidadãos.
O seu modo melancólico de se colocar na posição dos outros - suspeitos ou testemunhas - que o torna um polícia mais capaz mas também o deixa propenso a um ou outro erro por compaixão excessiva.
As características que fazem dele um bom polícia são as mesmas que fazem dele um homem bom demais: memória, atenção e entendimento.
O leitor só pode ter apreço por Caldas, por tudo isto e também por ter uma relação gastronómica com a comida mais simples da sua região - como tantos outros maravilhosos detectives ao longa da História do género.
Este caso a que tem de se dedicar não acaba resolvido de forma perfeita, mas acaba com justiça e com a garantia da fidelidade de Caldas a si próprio.
O resultado é uma excelente leitura, que não precisa de ser encaixada num género, para poder agradar a todos os leitores.


A Praia dos Afogados (Domingo Villar)
Sextante Editora
1ª edição - Fevereiro de 2013
424 páginas

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O vício de voltar

O segredo com a série Alex Cross é o de deixar passar tempo suficiente para que os defeitos de um volume estejam esquecidos e sobre apenas o interesse pelo personagem.
Apesar de alguns momentos de má exploração, há que reconhecer que Cross é uma sólida criação de James Patterson.
Psicólogo e polícia, pronto para ser herói de acção ou enfrentar investigações no domínio do noir, Alex Cross está a pouco de ser um super-herói de superação humana e o certo é que oferece a todos os leitores a abordagem aos casos que lhes interessa pessoalmente.
Dito isto, não se pode deixar de admitir que este volume é superior ao anterior, mais sólido e bem estruturado, e mesmo melhor para cativar leitores.
Trata-se de uma história cheia, com várias etapas e complicações a intrometerem-se entre Cross e um seu arqui-inimigo de volta ao activo depois de uma fuga da prisão.
(Aqui gera-se um problema, dado que o retorno deste vilão significa uma falta de contacto com os seus "feitos" anteriores. Apesar de Patterson integrar na narrativa parágrafos que contextualizam o passado que cross tem em comum com os outros personagens - e que funcionam como resumos dos seus livros anteriores - só uma imersão nos encontros anteriores permitira captar toda a essência que torna o adverário num arqui-inimigo.)
Se nestes livros há sempre uma necessidade de ter um arco narrativo fechado mesmo que personagens de outros volumes surjam, este volume permite-se jogar com vários arcos narrativos que se fecharão no momento em que também se fecha o arco narrativo mais longo.
A multiplicação do efeito de adversidade causado pelo arqui-inimigo de Cross - por imitação ou discipulado - permite complicar o papel que ambos têm de jogar na trama.
Melhor ainda, permite dar muitas expressões diferentes ao que seriam cenas de assassinato mais ou menos semelhantes.
A inovação e a extravagância dessas cenas são as metas de Patterson para manter o interesse do livro, o que ele consegue alcançar, acrescentando aos muitos assassinos uma utilização da sociedade do espectáculo voyeurista dos dias correntes.
Um excitante malabarismo que Patterson termina com um pouco de vertigem a mais, deixando em aberto o retorno deste personagem vilanesca promissora - que tem menos tempo de antena do que o desejável mas voltará para outros confrontos.
(Novamente enfrentamos o problema da "bagagem" que o personagem carrega e que nos falta conhecer, o que torna o arco narrativo simples mais satisfatório do que o arco narrativo que terá, pelo menos, mais um volume ao longo da série.)
Um passo mais numa série que tem essa virtude maior de ir levando consigo os leitores numa lógica de fiabilidade do personagem no seio de situações cujo grau de satisfação variam.
Se o sucesso de Cross em cada uma delas é garantido, o seu comportamento continua a ter traços humanos credíveis.
Sobretudo incongruências que se esperava que um psicólogo criminalista de excepção soubesse reconhecer e eliminar em si, mas ainda mais o misto de arrogância por despreocupação e inconsciência por habituação face aos perigos que são uma constante.
Ainda que perto do tal estatuto de super-herói, é a sua parte humana que traz os leitores de volta a cada nova aventura.
Com mais alguns meses e um esquecimento leve, de certeza que me dedicarei ao vício de entretenimento que Patterson criou com esta série em particular. Nem que seja para me indignar um pouco...


Alex Cross: Perigo Duplo (James Patterson)
Topseller
1ª edição - Maio de 2013
384 páginas

domingo, 15 de dezembro de 2013

Nesta nossa aldeia

Se há um traço de Britanidade tornado tradição nos policiais é a exploração do crime no seio de um pequeno meio como retrato da personalidade comunitária do país.
Caroline Graham usufrui desse mesmo ambiente para o seu policial, criando uma aldeia para cenário do seu crime, mas indo mais longe com ela - ou levando a uma forma de modernidade o conceito de aldeia.
Se um crime numa aldeia provoca sempre uma revelação dos maus sentimentos calados entre vizinhos, a investigação deste crime revela uma realidade ainda mais tenebrosa.
Em Badger's Drift o crime maior, o de homicídio, revela quantos crimes acontecem quotidianamente com um consentimento social que não se esperaria de uma sociedade desenvolvida e conhecida pela sua etiqueta.
Voyeurismo, adultério ou maus tratos (psicológicos sobretudo) acontecem todos os dias nesta aldeia e a investigação policial tratará de os trazer ao de cima.
Além de os trazer ao de cima, beneficiará da vigilância perpretada entre vizinhos, o que apaga as linhas que deveriam separar a Lei do Crime.
De forma discreta, quase podendo ser vista de forma inocente - se uma senhora espia os vizinhos e isso permite resolver um crime, não é algo assim tão mau -, esse crime em particular define a polícia como uma extensão da própria comunidade.
Parte da inovação do livro está no tratamento da comunidade policial como outra aldeia em que os seus elementos cooperam, por vezes até se admiram, mas têm ainda assim uma relação plena de nuances e de opiniões mútuas pouco benevolentes no que respeita a aspectos de carácter
Desmistifica-se a fiabilidade de grupo da polícia britânica, que se tem um crédito de charme quanto à inteligência investigativa da Scotland Yard também teve de recorrer à força (como o governo de Margaret Thatcher tornou evidente).
Ao contrário das figuras geniais e solitárias - de certa forma, autistas funcionais - dos romances de Agatha Christie, aqui temos um (anti-)herói grupal como protagonista.
Apesar da investigação ser liderada pelo inspector-chefe Barnaby, o seu adjunto - o sargento Troy - tem um papel importante a desempenhar.
São duas personagens com personalidades próprias e bastante afectuosas em muitos aspectos, ao mesmo tempo que desvirtuam o perfil "clássico" do detective: Barnaby adora a mulher e aguenta-lhe os péssimos cozinhados enquanto espera pela oportunidade de comer na cantina, o que claramente faz dele um bom marido mas nunca um gastrónomo.
Já aquilo que Barnaby e Troy pensam um do outro fica longe de estar ao serviço de uma camaradagem e, uma vez por outra, de estar ao serviço do trabalho.
Fazem a parceria resultar, chegam mesmo a criar laços, mas há um clima de desconfiança pessoal instalada que nunca se apagará.
Talvez seja isso que ajude a parceria de trabalho a funcionar, como é a desconfiança privada que permite aos vizinhos darem-se uns com os outros em público. A polícia é um grupo de indivíduos que funciona como uma aldeia à sua própria escala.
Caroline Graham tratou de usar a tradição do policial para a trazer a um futuro onde a moralidade estava menos bem definida, mas sobretudo para fazer de Badger's Drift uma visão da aldeia chamada Reino Unido - e, se quisermos pensar assim, da aldeia global - onde as aparências sempre esconderam e sempre esconderão razões diárias para chamar a polícia.
O homicídio é apenas a razão que não se pode deixar escondida num sótão, num jardim ou numa sacristia...


Morte na Aldeia (Caroline Graham)
Edições Asa
1ª edição - Abril de 2013
312 páginas

domingo, 8 de dezembro de 2013

As imagens da memória


São vários os exemplos de obras que tratam a História de um lugar através de uma sequência de datas e nomes assentes narrativas quebrantadas.
Este é o exemplo contrário, das possibilidades que se apresentam a quem saiba encontrar o nicho de relação pessoal com qualquer tema.
Assim faz João Paulo Cotrim, escrevendo uma história que aproveita esses "maus" exemplos como matéria de reflexão da própria percepção da História a partir de uma relação pessoal com ela.
Uma história pensante mas também poética, capaz de integrar os detalhes históricos e as figuras de relevo sem abdicar de uma identidade vincada. Pessoalíssima mas dada aos outros - com predominância para os próprios habitantes de Portimão.
Entramos nesta história pelos olhos - e pela mente - de um fotógrafo, personagem que se torna na figuração da memória perseguida.
A sua visão da cidade é uma que combina registo e sonho, algo que o fotógrafo materializa em recriações populares de outras Eras que respondam à sua vontade de guardar em foto momentos que nunca poderia ter presenciado.
O devir da cidade concentra-se num único momento e a passagem entre o Passado e o Presente torna-se perpétuo através do fotógrafo.
A História de Portimão é um conjunto de estórias, o que pela mão do fotógrafo se faz por via de uma série de acasos captados na rua, uma história popular feita de visões deste homem em particular.
A captação da essência eterna do instante que é feita pela câmara reforça toda essa sensação e as representações de Miguel Rocha aproximam-se de uma representação fotográfica.
Acrescentam-lhe algo de substancial, um leque riquíssimo de cores, sempre acolhedoras numa intimidade alheia que pode ser, afinal de todos.
O acompanhamento gráfico mais interessante que ele proporciona às intenções de João Paulo Cotrim vem de algo distinto: a exploração de uma estrutura de traços adensada pela sobreposição.
É um trabalho de textura, quase um tecido, que distingue cada elemento enquanto os equaliza: vento, nuvens ou luz.
Na prancha desdobrável que uso para ilustrar esta recensão, a técnica atinge o máximo do pictórico, respresentando a rebentação das ondas mas, igualmente, o que resta do flash (que precedia esse quadro de quatro páginas) quando se dispersa.
Um resumo eloquente do momento em que a máquina tenta imobilizar a realidade e esta se move em direcção a mais uma transformação.
Estamos perante o facto da cidade ser movimento e confluência, não se resume nem a sua cronologia se sequencia de forma simplista. Tudo nela existe em simultâneo e reune-se naqueles detalhes que chamam a atenção do protagonista.
Por isso o fotógrafo, farto da história fabricada - casamentos, baptizados ou inaugurações em que todos posam para a lente -, tenta fabricar momentos históricos.
Momentos que respondam a memórias que ele não tem e que nascem em sonhos que o visitam. O fotógrafo tenta submeter às regras da sua profissão a imprevisibilidade da vida de uma cidade.
Ainda assim nada supera o acaso do encontro entre vida que passa e câmara que ali está, como o próprio texto frisa: O fotógrafo estava lá. CLIC!


A Noiva que o rio disputa ao mar (João Paulo Cotrim e Miguel Rocha)
Câmara Municipal de Portimão
Sem indicação da edição - Dezembro de 2009
128 páginas

sábado, 7 de dezembro de 2013

Autora de autores

Iniciando-se a leitura de Greve a ideia que logo temos é de que estamos perante uma brincadeira fácil, daquelas que todos seriam capazes de criar caso a isso se dedicassem.
Claro que antes de a tal se dedicarem seria preciso nela pensarem, o que é o grande momento de génio de qualquer obra admirável.
No caso deste livro o momento de génio não se restringe a alcançar a ideia deste livro, vem ainda mais da insistência cumulativa do jogo feito com as muitas aplicações da palavra "ponto".
Catarina Sobral vai buscar muitas referências que a memória não produz facilmente e trata-as na procura de superar as convenções óbvias.
O acumular de referências linguísticas é mais do que matéria da imaginação, é a matéria-prima de um labor de escritora em busca de encontrar novas possibilidades dentro da tradição da Língua Portuguesa.
O contacto popular e oral com a Língua é assumido como complemento de inovação para os usos escritos da mesma, como que querendo preservar e perpetuar a inventividade que pertence a todos e que, neste caso, tem a vantagem de se dar de forma mais simples e que todos reconhecem, com a perspectiva de o fazer tanto para um público mais novo que ainda se molda à Língua Portuguesa e para um público mais velho que aprecia as suas possibilidades.
Um trabalho técnico de escritora que Catarina Sobral complementa com um trabalho de artista, fazendo com que as imagens superem as barreiras que as palavras encontram no seu caminho.
Nesse campo, a ideia de uso dos recortes que dão forma às cenas assemelha-se à usada nas palavras: os novos significados das imagens acrescentam aos significados anteriores das suas partes.
A "tradição" aqui é tanto a origem do material, que permanece visível e inalterada e apenas moldada a novas formas, como as referências dessa tradição da colagem, daquela inevitável que são as obras de Georges Braque no início do século XX e até aquelas da animação seja Terry Gilliam ou Zbigniew Rybczynski.
A conjugação de escritora e ilustradora é perfeita neste livro, fazendo de Catarina Sobral uma autora de uma identidade só.
Isso é mais visível na maneira como trabalha o livro como um todo, objecto de expressão que supera as ideias estabelecidas sobre o mesmo (algo que é habitual nas edições Orfeu Mini que entretanto foram lidas por aqui).
Trabalha-o desde algo tão "simples" como a brincadeira consigo mesma feita na contracapa do livro a algo tão "complicado" como a inserção do frontespício e da ficha de refência nas próprias páginas ilustradas do livro.
Pode dizer-se que se trata do reconhecimento das páginas e espaços do livro normalmente reservados a informações técnicas ou informativas como matéria de uso para corte e colagem global da forma do próprio livro.
Catarina Sobral consegue-o e nunca aliena o leitor no processo. O leitor é acolhido e acarinhado no seio do livro e encontra mesmo um desafio no Post Scriptum.
Esse funciona como o lançamento de um outro livro, uma sequela autónoma que a autora (provavelmente) nunca pretende escrever.
Trata-se de um repto ao leitor, para que este invente agora o seu jogo de linguagem, que se torne um autor (à sua escala) e amante da Língua.
Assim ela poderá seguir adiantes criando outras obras, mas legando a cada leitor - e, novamente, aos mais novos primeiro - uma independência da imaginação.


Greve (Catarina Sobral)
Orfeu Mini / Orfeu Negro
1ª edição - Outubro de 2011
52 páginas

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Roma vista ao longe


O primeiro tomo de As Águias de Roma coloca-nos no rumo de uma passagem à idade adulta de dois rapazes que se antagonizam mas que acabarão como irmãos de sangue.
Dois rapazes educados em conjunto vindos de origens civilizacionais diferentes - embora com pontos de contacto - e cujo crescimento exemplificará como a dureza de Roma - sobre os seus "filhos" e sobre os povos conquistados - proporciona tanto as capacidades para o sucesso como uma continuada revolta muda contra a hierarquia.
Trata-se de um bom início de história, sem ideias originais, com uma boa abordagem aos detalhes que diferenciam dentro de uma mesma situação o amadurecimento precoce e a infância prolongada.
A distinção é feita pelos pequenos contrastes entre o bárbaro - proveniente de um mundo masculinizado e viril, até mesmo selvagem, a quem foi negada uma infância - e o civilizado - protegido pela mãe, ainda de volta dos brinquedos e largamente inexperiente (na violência e no sexo).
O interesse na reconstituição do século I a.C. vale mais pelos momentos de alguma intimidade e não pelo retrato da vida nos domínios de Roma.
Estamos longe de um Alix e aqui a acção toma precedência sobre a "descrição" (visual incluída).
Isso torna a história mais linear do que prometia ser, pelo menos até chegar o cliffhanger - inevitável para justificar a história e, por isso, não tão surpreendente quanto o autor julgaria.
Sente-se a falta de um maior equilíbrio entre as vidas a solo dos protagonistas contra aquela que têm em conjunto, algo que teria evitado uma ligeira sensação de estereótipo no esboço das motivações dos personagens.


Essas deveriam desenrolar os acontecimentos no segundo tomo com alguma rapidez, mas este demora-se numa relação amorosa cujas implicações serão importantes mas não essenciais à História de Roma e à relação entre Marco e Ermanamer.
Apenas o último quarto do livro se dedica aos aspectos da guerra que ajudarão a definir o carácter futuro destes dois actores do belicismo e da política e as bases do confronto que entre eles se estabelece.
Este tomo mostra-se muito desequilibrado, com a maioria do livro assemelhando-se a um melodrama novelesco cuja única função é permitir a Marini exibir corpos nús e cenas de sexo variadas.
Este seria um mal menor se o autor se apropriasse do estilo do peplum - a história bem que deles se aproxima - e quase se abstraísse da existência de cenários bem recriados em favor de representações reconhecíveis pela sua função e tradição ficcional.
Pelo contrário, o livro passa-se em plena Roma o que leva a que as imagens da cidade se aproximem de postais de cenas de rua falhados em dar noção da vida que ali houvesse.
O próprio desenho vacila, havendo grande investimento nas personagens centrais (que se desnudam) e legando às restantes a feiura, pelas características a elas atribuídas e acrescidas de um desenho pouco sólido (ou esforçado).
Mesmo com os protagonistas há vinhetas - que não grandes planos - que parecem ter sido despachados, criando inconcistências nas suas feições.
O resultado lê-se como uma intermitência na história da qual sai um resumo (as pranchas sobre a guerra estão carregadas de texto) que permite que esta continue para mais um volume.
O segundo tomo d'As Águias de Roma resulta num falhanço dramático em nome de uma compensação artística que não chega a acontecer.


O terceiro tomo volta a centrar o foco da história, mesmo se as ligações românticas (antigas e novas) continuam a ter ingerência sobre ele.
Um regresso à narrativa dos dois irmãos de sangue e de como a relação entre ambos - com (re)aproximações e (re)afastamentos - afectará o domínio romano sobre a Germânia.
As relações pessoais e as maquinações políticas começam a funcionar integradas e o interesse da história acompanhada está mais perto de se revelar.
Trata-se do livro melhor escrito de entre os três, mas afectado de males nascidos ainda dos problemas que se viram no tomo anterior.
A expectativa sobre o acompanhamento dos momentos mais significativos da formação dos personagens e dos acontecimentos que vivem quando afastados vê-se gorada pelo desperdício de folhas no tal caso amoroso.
A terceira parte da saga d'As Águias de Roma, quer por si só quer pela relação com o tomo precedente, revela até onde chega o mau domínio dos tempos narrativos por Enrico Marini.
Afinal ele termina este tomo com uma cena já meia decorrida, algo já muito distante do cliffhanger do primeiro tomo mas revelador de uma má composição da história em relação ao espaço disponível.
A própria capa sugere uma incompletude deste livro, sendo a única sem os dois protagonistas. Como se a outra metade desta porção de história estivesse guardada para o livro IV e, se assim for, tal deveria ser indicado pois o próximo livro terá de começar no seio da acção, retirando a dois tomos a sua autonomia narrativa - fechada mesmo que não concluída - que se esperaria garantida a cada tomo.
Se avaliarmos isso a par do desenho, que opta vezes demais por cenários pouco elaborados ou sujeitos a um artifício que permita compôr o fundo recorrendo apenas a uma cor, ficamos com a ideia de que passou a ser a urgência do tempo editorial a comandar a continuação desta história.
Neste ponto a avaliação é a de uma série incerta, vacilante no desenho e pouco cuidada na narrativa. O quarto volume está prestes a ser lançado no nosso mercado para confirmar ou desmentir essa sentença.


As Águias de Roma - Livro I (Enrico Marini)
Edições Asa
1ª edição - Maio de 2011
60 páginas


As Águias de Roma - Livro II (Enrico Marini)
Edições Asa
1ª edição - Junho de 2011
60 páginas


As Águias de Roma - Livro III (Enrico Marini)
Edições Asa
1ª edição - Novembro de 2011
60 páginas

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

despropósito

Este é um livro que se poderia dizer a sequela de Madrugada Suja. Nesse livro é relatado o Passado a partir das noções do Presente e neste é inventado o Futuro a partir das evidências do Presente.
Ambos o fazem recorrendo a uma ficção - personagens e situações - pouco credível, com falhas óbvias de coerência interna.
Falhas mais graves neste caso, também por serem mais evidentes no confronto com as muitas informações e opiniões que são veiculadas pelos meios de comunicação correntes.
Veja-se que estamos perante a invenção de um futuro em que a Bélgica se separou em duas regiões mas permitiu que Bruxelas continuasse sob o domínio da União Europeia.
O autor ignorou as evidências acerca dos muitos movimentos separatistas dormentes no seio dos países europeus que ganhariam força para as suas lutas ao menor sinal de cedência para um primeiro de entre eles.
Logo isso coloca em causa o cenário de despaís, pois mantem uma Europa funcional e não arrisca pensar na região mais ocupada - e pressionada pelos Estados Unidos da América ou pela China - a lutar contra e tentando gerir a sua desintegração. Desintegração com repercussões financeiras e até mesmo bélicas, além de políticas, o que torna improvável que "os 27" se continuassem a dedicar a planos de ajuda financeira a países em crise.
São sintomas de uma visão muito restrita do Futuro, onde não cabe o Mundo e onde mal cabe a Europa.
Uma visão centrada num país pequeno e periférico (para não dizer à margem) aos grandes pólos de decisão, mas que não deixa de ser inesperada num autor emigrado na Alemanha.
Esta acaba sendo uma repetição - exarcebada - da actualidade tal como é repescada de vários momentos: intervenção do Fundo Monetário Internacional, Primavera Árabe ou Occupy Wall Street são lidos no Futuro deste livro com diferentes graus de evidência e importância.
A improbabilidade de chegarmos ao ponto d' "o quinto" plano de ajustamento "numa década" vem tanto do período estabelecido para tal como da crença numa paciência complacente dos portugueses ou dos países credores perante um conjunto de políticos de um país capaz de levar os juros a atingirem os 63%.
Se uma década de má política nos manteria como um dos países a utilizarem a moeda única ou nos pouparia a uma revolução sangrenta nascida nas ruas nacionais são apenas duas das várias questões a responder pelo autor ainda antes deste ponderar que um país possa ser vendido por blocos de terreno.
Não basta dizer que este é um "romance-provocação", é necessário que a provocação funcione - coisa que não acontece, se neste ponto restarem dúvidas!
Para tal é necessário que a provocação nasça de um conhecimento profundo dos cenários levantados por quem os tem vindo a pensar e, a partir daí, remodelá-los, descontruí-los ou agigantá-los.
Fazendo-o como ficção é, tanto ou mais, necessário moldar esses cenários com originalidade e risco, mas também com uma dose de afecto pelas personagens que lhe servem para vocalizar a realidade do país.
Portugal é a personagem central do livro, mas as pequenas personagens que dele fazem parte - e que o caracterizam - devem ser merecedoras da nossa atenção.
Não se cumpre nenhuma dessas possibilidade pois se as personagens mostram estar ao serviço dos momentos políticos e quotidianos da nação, nunca chegam a fazer uma caracterização dos sentimentos populacionais e, por consequência, da personagem que é um país à beira do suicídio anunciado na capa do volume.
A velha, o miúdo, o ministro das Finanças ou o homem do lixo não passam de estereótipos colocados nos extremos etários e sociais do país na expectativa de assim criar o mais abrangente conjunto de personagens para que se julgasse ver um retrato transversal a todos os géneros de portugueses.
O próprio livro acaba por os definir, quando diz que o Primeiro Ministro era tratado por "boneco". Não passam disso, ideias gerais colocadas em pose para benefício do marioneteiro literário.
Não é possível acreditar na simplicidade mental de um apanhador de lixo que depois de ter emigrado e depois de ter vendido um rim para ter dinheiro para retornar, tem como único papel queixar-se de que lhe estão sempre a sujar o chão com sangue - vindo das cabeças de manifestantes atingidas por bastonadas policiais!
Essa inconsciência da personagem não é um traço de personalidade de uma faixa da população fechada no seu limitado universo pessoal. É apenas uma anedota, que não faz rir.
Todas estas pequenas personagens do livro existem em função de momentos breves de inspiração do autor, que consegue alcançar imagens ricas - que não vão além de um ou dois parágrafos - mas que mostram a intimidade dos personagens que está ausente no resto das páginas.
Perante tais parárafos, olha-se para os relatos de cada uma delas com a sensação clara de que o autor vai improvisando (apenas para não dizer remendando) cada personagem à medida que avança o plano geral da evolução de Portugal, por contraste com a necessidade de as definir desde o início e deixar que sejam os seus percursos a falar do país para venda.
Tal conclusão evidencia-se ainda com um outro problema do livro, um problema de estruturação da escrita e que nasce de mais uma personagem de entre as várias a que o livro recorre: um historiador que vai fazendo um relato aprofundado de momentos da vida dos nossos políticos no momento em que o país era colocado em causa.
Além de ser uma voz falando sobre o Passado num livro relatado no Presente, é um caso absurdo de alguém que relata - a partir de fontes áudio - detalhes de pensamentos durante conversas.
Mesmo com o recurso a diários, seria impossível a um historiador chegar ao detalhe de um pensamento sobre um peeling ao pénis a meio de uma conversa telefónica.
Olhando para o personagem e as suas fontes, é mais uma solução de recurso para a necessidade da descrição/invenção literária de que o escritor do livro depende; e um historiador - mesmo ficcional - não pode fazer, pelo menos da maneira aqui descrita.
Há uma ideia de personagem recorrente ao longo do livro, a do comentador que está limitado a proferir pedaços de retórica tiradas ao lugar-comum da televisão actual, mas sem chegar a qualquer ideia.
despaís é precisamente isso, uma composição mal elaborada mas vistosa em torno de uma ideia que não existe: o conceito pode ser ousado mas é intelectualmente deficitário.

(Perante este exemplo acabado do seu trabalho, o mínimo que se pode dizer é que não há confiança nos livros de escrita criativa que Pedro Sena-Lino também editou através da Porto Editora, sobretudo considerando que um deles é dedicado à criação de personagens.)


despaís (Pedro Sena-Lino)
Porto Editora
1ª edição - Julho de 2013
336 páginas

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Dilemas de sempre de um homem de hoje

Uma confissão prévia: a de que já há muito tempo que tenho apreço por Pedro Bidarra por conta da sua crónica - sempre inteligente e habitualmente literária - no Dinheiro Vivo.
Isso condicionou-me a leitura com um excesso de entusiasmo de que a crítica a Rolando Teixo poderia estar agora enferma, levando-me a ignorar os problemas do livro e a valorizar as suas froças contra quaisquer evidências.
Posso agradecer a Pedro Bidarra facilitar-me a vida tendo criado uma obra que merece elogios e que não tem fraquezas assinaláveis.
Assim, qualquer elogio despropositado no seu exagero passará desapercebido entre os justos elogios de grande medida.
Esta é uma história sobre o tempo presente, um tempo de crise. Mas é também uma obra sobre um tempo eterno, porque a crise interior não muda.
Essa outra crise que a económica tornou mais óbvia é a que tem de responder às perguntas "Quem sou eu afinal?", "Para que sirvo?", "A quem posso confiar-me?" ou "Que deixo eu ao mundo?".
O confronto de um homem com a sua própria insignificância só pode tornar-se mais radical quando o trabalho falha, porque essa tarefa que deve assegurar a sobrevivência foi transformada no elemento essencial para que alguém se define.
Ainda mais grave no caso de Rolando que o seu trabalho seja o de números sem materialização - e alheios! - o que significa que ele nunca terá nada para mostrar, nenhuma materialidade em que se refugiar.
Quando o trabalho falha Rolando encontra conforto apenas nas árvores do muitos jardins de Lisboa, porque as árvores se definem por se erguerem da Terra e dominarem placidamente sobre ela.
As árvores definem-se pelo que são sem mais nem porquê, sem precisarem de se justificar perante os outros.
As árvores não têm medo da pergunta "O que fazes agora?" porque as árvores fazem o mesmo de sempre. As árvores fazem aquilo que são desde o início: seres a caminharem para uma velhice que se confunde com a eternidade e que, assim, marcam pela sua presença gerações atrás de gerações em busca nem que seja apenas de uma sombra.
O mesmo que cada homem deveria estar a fazer, tornar-se uma alma preenchida. Desfrutar da vida e garantir que deixa o mínimo - boas memórias - a pelo menos uma geração: a dos seus filhos.
Rolando enfrenta essa divisão entre o homem que deve ser e o autómato que teve de ser até aí. No caso dele isso significa assumir-se como árvore ou continuar a dizer-se um assalariado quando não o é.
Transforma-se o seu dilema numa fábula. Uma história de renascimentos em jeito de monstruosidade, porque até nessa diferença se é mais humano do que fazendo parte da turba.
Por essa expressão do humano no extraordinário - aquilo que hoje talvez se adjective de surreal quando surge na literatura adulta - que vem desde o mais primitivo conto de fadas, o livro tem o poder de se instalar no coração do leitor, abafando aquela visão imediata de se tratar de uma leitura sobre a realidade lá fora.
Aqui a realidade quase não se faz sentir. O homem e os seus jardins vão fechando o círculo sobre a própria essência da existência.
O leitor envolve-se com Rolando nesse refúgio de interrogação pessoal e torna-se cúmplice do homem em conflito - se não se torna ou não é já esse homem!
Rolando Teixo não é um livro à procura de surpreender com um final radical. Não está dependente de truques para vincar espanto para permanecer na mente do leitor.
O seu final está evidente ao longo do livro, chamando o leitor a ver as pistas e a deixar que esta impossibilidade da realidade se instale antecipadamente como retrato dos dilemas de vida mais comuns e mais exigentes.
Resguardo-me, perante a confissão com que abri este texto e perante um afecto fácil que o livro criou usando como protagonista um bancário (profissão de sempre do meu pai), e evito ser eu a dizer que este é já o volume de "Grande Ficção" que a colecção nos promete.
Direi antes que estamos mesmo à porta do feito de encontrar a obra maior em formato breve que confirmará a realização desta colecção como um momento de genialidade no panorama editorial português.
Entretanto já coloquei o livro a passar de mão em mão, confiante do efeito poderoso que terá nos leitores neste preciso momento e ficando eu na expectativa de, quando o livro voltar a mim, poder já dizer com o distanciamento necessário que Rolando Teixo é um texto perdurável.


Rolando Teixo (Pedro Bidarra)
Guerra & Paz
1ª edição - Junho de 2013
152 páginas

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Fotos sem memória

Marginal, a linha que liga Cascais a Lisboa e que separa uma classe alta de uma classe trabalhadora, tornando uma mulher marginal entre a família do seu marido.
Uma mulher que encontra na Revolução dos Cravos a sua própria transformação pessoal, momento de libertação.
Se os relatos (ficcionais) nos dizem que o Maio de 1968 levou os Franceses a fazerem uma revolução sexual, aqui descobrimos que o Abril de 1974 exigiu na nossa terra - um país parado no tempo - uma revolução da sexualidade: a mulher a ter de encontrar o seu papel na sociedade e um espaço onde possa viver de forma independente.
Essa mulher recorda o seu universo circunscrito àquele  e àquele tempo transformador, comandado por uma série de fotos resgatadas ao seu extermínio.
O cenário inicial é uma ideia tão forte que poderia ser a premissa de um conto de Kafka ou de uma ficção de Borges.
Uma rapariga encontra no lixo uma quantidade imensa de negativos de fotografias da sua vida e da sua mãe que nenhuma das duas alguma vez viu.
Fotos que arrastam a mulher para uma viagem por dez fotos e décadas de vida, mais de sofrimento do que alegrias.
As fotos antes da era digital eram usadas com cautela e raramente. Registos de obrigação, de aparências, tiradas nos momentos em que as pessoas e as famílias deviam parecer felizes.
Algumas tiradas em momentos significativos, as outras tiradas em momentos de acontecimentos pouco habituais.
Todas elas dependentes de uma excepcionalidade que não fala do quotidiano. Não se faziam - e nem hoje se farão - fotos das tragédias verdadeiramente transformadoras.
Essas tragédias são, muitas vezes, momentos a solo: descobertas interiores que não permitem continuar a ver o mundo da mesma forma.
As fotografias contrariam essa mudança, preservando a memória de um mundo que deixou de existir, que nunca existiu senão para a foto: "Sorriam!"... mesmo que não o sintam!
Por isso é que os negativos são, de facto, lixo. São-no no início do relato e depois confirmam-se como tal no final.
Os negativos fixam o tempo e o local, o quem e o como. Por isso os negativos obrigam a sofrer a tristeza das transformações com que a pessoa lidou antes, transformando a realidade em memórias pessoais.
Essas, ao contrário das fotografias, é pessoal e intransmissível. Moldada por cada um como melhor lhe serve a vida.
A memória não deve ter registos, deve poder estar dependente da vida que cada um leva no Presente e não do que os outros nos dizem com os momentos fotografados que ficaram para trás - afinal, há sempre outro alguém atrás da câmara!


Marginal (Cristina Carvalho)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Janeiro de 2013
152 páginas

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Deliciosa descida aos infernos

No século XIX não havia necessidade destas etiquetas, mas este livro inserir-se-ia naquele que o cinema e a banda desenhada já tornaram numa tradição: a da dupla cómica.
Dois companheiros de viagem o mais antagónicos possível. Um é um bufão que usa todos os pretextos para levar o soldado a ceder à tentação. O outro é o justo que continua a acreditar numa bondade que lhe vão provando não existir (excepto em si mesmo).
A dupla eterna e clássica do humor, nascida logo quando se criou a divisão da consciência entre o diabo e o anjo cada um sentado no seu ombro.
Que a dupla percorra o caminho em conjunto aumenta a eficácia do texto, acentua a ironia dos versos contada de forma quase inocente.
E prova que já há séculos atrás haviam inventado as regras do humor que chega até aos dias de hoje, mas fazendo-o com qualidade para perdurar.
Sobretudo pela sapiência empregue nos versos, momentos cómicos de especial envergadura que nunca deixam de ser exactos no seu diagnóstico dos males particulares de cada tema.
A sua precisão é agora a mesma que era então, pois os seus alvos ou merecerão sempre a nossa desconfiança - advogados, políticos... - ou são mesmo eternos - os sete pecados capitais.
O texto é um aviso sobre o destino humano mas não deixaria de lado a hipótese que esta fosse uma invecção à rebeldia - afinal não importa quem se seja ou que se faça, no Inferno se acabará, portanto que se aproveitem as melhores hipóteses que a Terra tem.
Esta viagem pelas condenações do mundo poderia ser descrito como Gil Vicente servindo de guia ao Inferno de Dante.
Um delicioso livro, cujo humor é levado mais adiante pelas ilustrações de Lucy Pepper que acompanham o texto e têm um estilo que fazem lembrar o trabalho de Roland Fiddy.
Poderão bem ser a forma moderna que melhor acompanha o humor de António José da Silva, pois assim que surgem a abrir cada folheto do livro 
Tudo isto escrito, creio que a melhor maneira de dar consciência de como este livro merece ser lido é deixar um exemplo dos epigramas que António José da Silva escreveu.
Escolho aquele que versa sobre os advogados, por nenhuma razão em particular senão o facto de ser muito bom:

Folheai sem descansar
os textos com desprazeres
pois vossos maus procederes
vos fizeram condenar.

Padecei a infernal ira,
pois fazíeis com maldade
ou da mentira verdade,
ou da verdade mentira.


O Diabinho da Mão Furada (António José da Silva)
Guerra & Paz
1ª edição - Novembro de 2010
144 páginas

domingo, 10 de novembro de 2013

Correr para lá do fim

O livro começa com um Emil Zátopek sem qualquer gosto pela corrida, o mesmo que eu sinto sobre tal actividade.
Isso não se alterou, mas no fim do livro quase saí à rua para tentar descobrir por mim próprio as emoções de correr como Jean Echenoz as descreve para o mítico corredor.
Correr - simples mas preciso título - trata-se de um livro capaz de traduzir em palavras essa energia incessante de uma corrida competitiva.
Uma energia que, nos casos dos percursos longos de Zátopek, está em reserva mas sempre no ponto prestes a libertar-se, que é uma associação que se pode usar para falar do livro de Jean Echenoz.
Um livro breve este, que tem de usar os destaques de uma vida para a descrever na totalidade, sabendo mesmo assim deixar correr a prosa em momentos de uma inocência humana que deveria ser estranha à vida de um grande corredor.
A escrita de Jean Echenoz aprecia-se pela sua beleza económica, que galvaniza por moldar e aprofundar a figura de Zatópek sem se demorar em digressões intelectuais - e interiores.
Uma beleza nascida dessa tal simplicidade da qual emana algo de essencial, tal como a profundidade da personagem que o livro descreve nasce da simplicidade de um homem ao encarar a vida.
Um corredor define-se pelo movimento e o escritor sabe, em sintonia, definir o homem por detrás do equipamento de acordo com as suas acções.
Por mais corridas que o livro descreva, se há algo que não sai da cabeça do leitor é o momento em que Emil Zátopek chega ao Brasil para mais um grande evento mas logo se tranca na casa de banho de forma a confirmar que o movimento da água no ralo tem o sentido inverso ao que tem no hemisfério Norte. Um corredor de enorme sucesso rendido à curiosidade científica de uma criança define este homem e agarram o leitor por completo.
Se procurarmos as corridas de Zátopek, acabaremos comovidos ou arrepiados - pela montagem, pela música - mas estas palavras arrebatam e os feitos do corredor parecem ainda mais extraordinários assim, lidos.
Um homem meritório de ser tratado com o respeito que as suas vitórias lhe proporcionavam, pois se se tratava apenas de um bom homem que não conseguia deixar de correr, fazia-o com nobreza, mesmo no declínio físico - que sabia reconhecer e ao qual se sabia adaptar.
A sua grandeza nascia da inconsciência da mesma: Zátopek inventou o sprint final porque não gostava de correr olhando as costas alheias.
Por essa grandeza que andava de mão dada com a inocência é que a figura de Zátopek permite ao autor fazer um retrato do Bloco Leste durante a Guerra Fria em que se destaca a pequeneza assustada.
A História da URSS poderia dizer-se ter evoluído colada à individualidade de uma das suas figuras ímpares, mas no sentido inverso: quanto mais Zátopek era impedido de crescer, mais o governo soviético saía diminuído por não querer ser ofuscado.
A repercurssão nele, figura maior e figura útil ao regime, dão uma ideia clara das forças e fraquezas daquele mundo.
Vemos quão absurdas são as atitudes generalizadas, que apenas permitem começar a imaginar como seria a vida para aqueles que nada tinham que os distinguisse - e, portanto, uma opinião pública a seu favor, mesmo para lá dos países Comunistas.
O Emil Zátopek de Correr é, pelo esclarecimento da vida pessoal e pelo ensinamento da existência social, um homem maior do que deveria ter calhado à URSS ter entre os seus.
Alguém que treinava loucamente porque não sabia que deveria ter um treinador, uma estratégia, gerir o esforço.
Tinha sido mandado correr pelo exército - e tinha desde logo ganho - sem que lhe ensinassem nada. Mas depois haveriam de o querer dominar de novo.
Fez-se corredor sozinho, sem gostar de tal actividade, e depois tornou-se no homem que corria enquanto houvesse pista e enquanto houvesse fulgor em si.
Conquistas e feitos eram bons, mas ele aspirava somente a correr por correr: a pureza do movimento sem preocupações de beleza.
A cabeça torta, o esgar horrível e o estilo descompassado. Os elementos que lhe permitiam adaptar-se à corrida, o corpo moldado à actividade e aos muitos metros que tinha pela frente.
A pureza de quem foi correndo até gostar... e se tornar vencedor, apenas porque quem chega primeiro assim tem de ser declarado!
Para quem termine este livro, Zátopek nunca deixará de correr.


Correr (Jean Echenoz)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Março de 2011
128 páginas

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Aviso bom de ler

No posfácio do livro a autora diz que quis escrever como se libertada de todas as regras. Que a "escrita fosse como uma febre" e o resultado um "rock 'n' roll" literário.
Ler isto no posfácio proporciona uma clarividência sobre aquilo que se leu e que não se saberia desde logo enquandrar.
Um texto de uma energia ininterrupta que é um relato biográfico  bastante preciso - jornalístico até certo ponto - interrompido por momentos em que a objectividade sobre o passado dá lugar a um discurso directo e torrencial que penetra profundamente na realidade da depressão do qual o distanciamento não nos pode dar uma visão completa.
Pode-se dizer que é como a letra de uma canção funcionando como uma narrativa (poética, eventualmente) interrompida por refrões menos controlados mas emocionalmente mais ferozes.
Capítulo a capítulo, estrutura-se um álbum em movimento contínuo. Um estrutua de canções entre o êxtase e a dormência, mas sempre feitas de refrães que não dão descanso à alma.
Essa dimensão emocional pauta o livro como manifesto sobre a depressão e como ela se manifesta nas formas mais intensas.
Adiciona ao livro um sentido de interiorização que deve chegar a todos, acerca da consciência do que é a depressão e, não sei se como  dos limites que devem imperar sobre o uso de tal palavra por leigos.
Sobretudo aos jovens imersos numa cultura de glorificação da depressão.
Essa é, aliás, uma implicação importantíssima do livro - ainda que não explorada em demasiada - sobre a exploração comercial que se alimenta das fases depressivas dos jovens. E, portanto, as promove.
Não só pela parte da indústria farmacêutica mas também cultural, com o caso do rock (e, em particular à época a que a autora se refere, o grunge) a servir de exemplo liderante.
Não se trata, em qualquer dos dois casos, de uma exploração cínica em busca de polémica, pois a autora não despreza os muitos casos reais de depressão que exigem medicação ou que se exprimem pela criação.
A autora não despreza a necessidade das receitas prescristas ou a autenticidade das letras escritas, lança o aviso a todos os que acabarão por lidar com uma doença cada vez mais comum e que não necessita de exageros.
Chamada de atenção para a falta de ponderação nas implicações das decisões comerciais - cuja prioridade é colocada ao nível dos doentes/consumidores.
Um aviso escrito pela exposição total de quem viveu em depressão desde que, aos dozes anos, tentou concretizar uma primeira tentativa de suicídio e que experimentou todos os tipos de medicação.
Há que respeitá-lo pela coragem com que é feito mas creio que, sobretudo, há que lê-lo pela maneira como é conseguido.


Nação Prozac (Elizabeth Wurtzel)
Editorial Presença
2ª edição - Novembro de 2003
360 páginas

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A matéria dos vampiros

De novo vampiros, mas desta vez a abordagem tal como ele deve ser, em que o mito é o romance e não uma componente dele.
O livro debruça-se sobre o mito dos vampiros para se arriscar a reinventá-lo, fazendo da espécie mais uma à superfície da Terra e sob o jugo de um deus criador.
Estes vampiros são criaturas colocadas em espera durante muito tempo, que aprenderam a viver em aceitação da espécie humana, sujeitando-se a permanecer discretos e humilhados.
O seu poder é uma ferramenta que servirá a decisão de deus em apagar a sua criação que deveria comandar o mundo mas que o encaminha para o ponto de insustentabilidade.
Estes são vampiros liderados pelo Marquês de Pombal e para os quais o próprio Drácula é somente uma figura tutelar.
Mais do que figura de poder símbólico, Drácula é o primeiro deles mantido vivo e, como tal, aquele que ainda mantém a ligação aos desígnios que deus tem para eles.
A assinatura de Drácula é requisito para que os vampiros cheguem a falar com deus, mas o político português lidera as negociações.
Esta é uma forma dos vampiros que está entre o mito e a realidade, entre o extraordinário e a decepção. A força do mito original domada e sujeita a negociatas com a vontade de um ser criador que viu o poder destes seus filhos e se amedrontou do que com ele poderiam alcançar.
A força maior deste livro é a de reinventar o mito do vampiro e, ao mesmo tempo, elaborar uma reflexão cujos contornos simbólicos permitem uma vasta gama de conclusões acerca da existência humana: Drácula pode ser o erudito cuja descendência (intelectual) durará por décadas até que conquiste o mundo; ou a sociedade dos vampiros é uma classe que espera silenciosa pelo momento da revolução.
A leitura metafórica do poder será das mais fortes, a um tempo política e a outro tempo do definitivo carácter humano, de que os vampiros são a raça que espera e se humilha para arrebatar o governo da Terra.
Sejam um grupo (políticos?) à espera do momento em que os humanos falham ou uma personalidade humana à espera que a moralidade se esfume, são o lado negro da vida humana e da geral ignorância com que se lida com a consciência da realidade.
Se o Drácula permanece como um contínuo de vida modelada e fiel a um deus, os seus discípulos fazem a vez de ardentes revoltosos: injustiçados mas à beira de perderem o domínio de si mesmos.
O livro é breve, mas foi trabalhado durante quase uma década, ficando por "polir" devido à morte de Furio Jesi.
Mesmo assim é um livro de enorme força, uma surpresa exigente que não satisfará leitores expectantes de mordidelas e estacas, mas que levará a que se aprofundem as noções que se tem das mitologias de todo o mundo antes de serem afectadas pelo cristianismo.
Estão lá as figuras dessas outras cosmogonias invocadas pelo nome, na reunião das muitas famílias de vampiros, pelo que para perceber plenamente este pequeno volume e a sua radical inovação, há que a ele voltar com esse estudo feito.
Mesmo que leve uma vida inteira, há que fazê-lo em nome de uma iluminação e uma independência que evite que nos tornemos os vampiros aqui descritos e elevemos a condição humana.


A Última Noite (Furio Jesi)
Publicações Dom Quixote
Sem indicação da edição - 1988
148 páginas