O Mundo é uma portentosa mas perigosa porta de entrada no mundo de Juan José Millás, aproximando-se da sugestão de uma forma de narrativa autobiográfica que convida a acreditar que o escritor tão abertamente se confessa ao leitor.
Caberia ao leitor, não só entrar na intimidade do autor, mas (psic)analisar os seus receios, as suas interpretações mais ou menos bizarras da realidade.
O leitor não pode acreditar que Millás está assim tão focado nessa ideia de que a literatura faz as vezes da psiquiatria.
Mesmo se é claro que os temas-chave, sobretudo da infância, são confidências do autor, a verdade é que o livro se expressa como o resultado de uma tese que ele procurou entender durante toda a vida para melhor poder explicar como vive e porque escreve.
O significado conclusivo que ele quer é para a sua demanda de um ponto de vista que modifique a realidade, para a tornar mais interessante e não mais simples.
Um ponto de vista que se altere e se renove para que o mesmo suceda a uma realidade que não é mutável.
Algo tão simples como olhar a rua a partir de uma janela de uma cave ou algo quase no campo do absurdo como render-se à febre para recordar as alucinações por ela proporcionadas.
Trata-se de uma procura da infância que o autor aprendeu a prolongar para a vida adulta. A inocência substituída pela imaginação, o sonho substituído pelo trabalho.
O resultado é o desta ficcionalização da realidade, alegre reinterpretação dos factos em nome do prazer da renovação.
Ou contra a visão estagnada de si próprio, da vida que não vai a lado nenhum. Porque se não vai é porque alguém - ele próprio, eventualmente - o vai impondo perante as circunstâncias.
A visão da criança não entende essa necessidade de realismo. O trabalho do escritor contraria essa necessidade de forma crónica.
Com isto tudo não quero excluir a possibilidade do autor estar a lidar com o seu passado, pois na sua forma de memória episódica, ele não deixa de abordar episódios tristes ou traumáticos.
Se a ficção também serve a essa purga, fá-lo dando a possibilidade a quem a cria de ter um novo ponto de vista para encarar o seu passado.
Um ponto de vista fantasioso que envolve esse trabalho intelectual de recriar intenções alheias e significados casuais.
Trata-se de expandir a realidade, de lhe acrescentar elementos inexistentes para que os outros tenham ainda mais força ao se reflectirem na imaginação.
Com Juan José Millás escrever é mais do que repensar ou reinventar, é verdadeiramente reviver. E reviver com outra consicência.
Escrever - com qualidade, detalhe, beleza e precisão - é manter a consciência da febre da infância, usá-la proveitosamente, ir mais adiante no Mundo. Porque se o Mundo é a rua da infância, com o crescimento, todo o Mundo se assemelha a esse pequeno microcosmos - ora releia-se Naguib Mahfouz.
O Mundo exige, então, que, em vez de o reduzir sistematicamente a esse estreito pedaço de vida (o da rua e o da infância), se use essa semelhança como rampa de lançamento para uma outra visão de tudo o que existe.
Como os delírios febris da infância que criam uma sensação de realidade intensificada. Mas, pela literatura, contraria a fragilidade - de bolha de sabão diz o próprio autor - dessas visões.
O Mundo (Juan José Millás)
Paneta Manuscrito
1ª edição - Janeiro de 2009
176 páginas
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