sexta-feira, 23 de abril de 2010

Perdidos

Um homem acorda de um acidente em que morreram a mulher e a filha, sem memória alguma desse evento.
O seu tormento é o maior tormento que alguém pode experimentar, maior que o desgosto, maior do que a culpa.
A sua falta de memória deixa-o na incerteza absoluta e, crente na sua culpa pela morte da família, para ele todos os cenários são possíveis, todos eles mais e mais violentos contra a sua própria consciência.
Ele não sofre pelo luto, antes pela incerteza de que luto deve fazer. Ele não sofre pela recriminação, antes pelo multiplicar de recriminações.
Os seus erros são sempre mais acentuados, a sua inutilidade sempre crescente.
A verdade é que, sem memória, ele não pode perdoar-se. Nem pode verdadeiramente culpar-se. Ele tem de assumir as duas mortes sem poder determinar para si mesmo o que tem a ver com elas. Não pode iniciar o processo de lidar com elas sem errar consigo mesmo.
O que dele lemos é o período da sua vida em que ele constrói a sua monstruosidade, não só pelos cenários que imagina para completar o espaço em branco da memória, mas também pelos actos que assume, sem contenção de espécie alguma, como se sendo já um monstro tivesse apenas de continuar a sê-lo.
Se nada pode fazer para lidar com o que foi e nada pode fazer para se definir sem essa parte essencial do que viveu, então não tem de responder perante a sua consciência e tudo se permite.
O leitor sentir-se-á perdido ao fechar o livro, sem poder garantir para si próprio que a história está completa, sem catárse mas com um contentamento indevido.
O leitor fica um momento perdido até que reencontra a simples verdade, que o romance é sobre o período de perda de cada um. Esta é a descrição daquilo a que se chega a partir do momento em que deixamos de ter ponto de partida, em que a ligação com o passado se rompe sem nos dar novo início.
Não se crê que haja retorno, mesmo que a vida tenha de continuar, será sempre assim, flutuando no vago presente, perdida entre a memória... perdida.





















O despertar do adormecido (Alistair Morgan)
Bizâncio
1ª edição - Fevereiro de 2010
224 páginas

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