sábado, 26 de setembro de 2015

Ambição minada

A Raíz do Ódio é o livro em que Anne Holt arrisca distanciar-se da sua abordagem anterior, não só num afastamento do minimalismo com que traça o conteúdo do livro, também estruturalmente.
A mudança da mera numeração para, agora, uma nomeação de todos os capítulos é um sintoma que exemplifica essa opção da autora por um enriquecimento deste livro.
Nota-se grande dedicação à formulação dos ambientes da história e disponibilidade maior para os momentos familiares da dupla protagonista.
Essa opção parece ter sido tomada para sustentar a opção por envolver mais directamente as duas linhas que Holt sempre traçou nesta sua saga.
Nesta história a vida privada (presente) de Vik e Stubø está entrelaçada com a trama policial de forma directa, com a filha de Johanne - com a sua inexplicada condição muito semelhante ao autismo altamente-funcional - a ser uma testemunha de um crime sem que tal seja entendido pela sua mãe que, ainda assim, pressente uma ameça rondando a filha.
Nesse aspecto a série atinge um pico de concretização que depois não tem o acompanhamento devido nas opções da trama.
A autora cria mais um conjunto de homicídios flamantes sobre o qual vai acrescentando elementos que complexificam um caso de ódio homofóbico.
Só que esse crescimento, que vem a par do de estilo do livro, torna-o menos sólido do que eram os livros mais concisos da autora.
Ela remata a trama de forma coerente, o que não impede que desta vez a lógica seja levada ao limite, com a autora a recorrer demasiado às coincidência para levar a história ao momento de resolução sem que nenhuma linha narrativa seja abandonada.
O exemplo maior é o facto de Johanne estar a preparar um estudo sobre crimes de ódio precisamente quando começa a série de assassinatos, o que lhe permite logo chegar à informação que será necessária.
Referindo mais uma vez Johanne, há que referir a sua evolução como personagem. Ela existe num patamar de constância desde o primeiro livro que tem de ser classificado como estagnação.
A sua paranóia com a filha atinge o ponto máximo mas, além disso, a sua relutância para voltar a ser profiler degladia-se com a sua atracção natural para os casos, o que resulta numa actuação individualista que continua inalterada e é injustificada perante o marido que tem sido absolutamente solidário com ela.
Vista a preponderância maior da vida do casal no livro tal evidência prejudica
Não é a referida ambição da autora que leva a que outros elementos do livro falhem. Esses problemas já lá estavam desde Castigo e agora atingiram um ponto em que são muito debilitantes para o resultado final.
Não é preciso ir mais longe do que à análise do tópico social de fundo, o homofobismo que chega à Noruega.
Relevante, sobretudo num país que muitos ainda consideram em que as pessoas são iluminadas quanto à igualdade de direitos.
Por isso a opção da autora fazer de tal tema uma directa importação dos E. U. A. e dos seus extremistas religiosos minimiza a expressão do problema.
A já anteriormente referida necessidade da autora trazer à baila os americanos parece já uma muleta e é uma opção que a afasta de forma crescente dos outros autores dos Noirdicos minando o interesse do que tenta dizer em subtexto dos seus policiais.
Anne Holt tem o talento para, mais uma vez, criar um livro que é uma muito agradável leitura. Falta-lhe uma noção de clara daquilo em que deve investir a qualidade do seu trabalho.


A Raíz do Ódio (Anne Holt)
Contraponto
1ª edição - Julho de 2011
384 páginas

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Uma Americanada

Não foi por se tratar de uma história em torno da primeira mulher a assumir a Casa Branca que este livro faz Anne Holt parecer uma autora muito mais americana do que nórdica.
Foi por se tratar de um thriller político bem no limite do absurdo que o leitor aceita para poder terminar o livro, com o rapto da presidente americana quando visita o país dos seus antepassados.
Foi por ser um livro em que a mudança de perspectiva entre intervenientes - mais ou menos directos - marca a estrutura e remete as cenas entre Vik e Stubø para segundo plano.
Foi por se afastar do subtexto a exigir reflexão para estar mais perto do argumento de um filme de espionagem com vilões de estilo exagerado.
Há que dizer que a obra continua a estar embuída do feminismo da autora, que desta vez coloca quatro mulheres num papel plural, de grupo que resolve a trama e que ainda caracteriza o espectro do vasto leque de mulheres - sempre valorosas - na sociedade Norueguesa, ainda que a formação e posteriores acções desse grupo sejam caricatas, para dizer o mínimo.
Ou que é possível ler uma crítica à arrogância dos Estados Unidos da América como polícias do mundo que os faz crer poderem actuar sem restrições em qualquer ponto do globo - embora tal crítica se possa ler em qualquer obra que envolva forças policiais ou militares desse país, por força da consciência crítica do leitor e talvez não das intenções dos autores.
No entanto a conclusão é a de que neste livro o estilo não se assemelha ao dos policiais nórdicos e, pior, não se integra integra com o dos livros anteriores destes dois protagonistas.
Isso torna-se significativo porque o aprofundamento da relação entre Vik e Stubø deveria ser mais perante o surgimento na Noruega do antigo mentor e causador das aflições de Johanne.
Tal acontecimento tem como consequência única que ela sai de casa sem dar explicações a Stubø que, por sua vez, recebeu ordens para servir de agente de ligação ao FBI.
As interacções entre Stubø e Vik tornam-se escassas e dificultadas pela falta de vontade dela e pela ocupação dele.
Tal como as entre os dois homens se reduzem a um desconforto em que Stubø evita os temas que tenham que ver com a sua mulher.
A autora permite-se até um acto de conveniência para o que já devia ser um problema que não imaginava ter criado para si mesma.
Como no livro anterior, a história termina com uma resolução que não o é. Só que as possibilidades em aberto não abrem perspectivas de futuro, fecham as linhas do passado.
O outrora mentor de Johanne é afastado de cena a tiro. Termina a história com ele morto, o que para sempre evita o confronto dos dois (ou dos três, se quisermos incluir o marido dela).
Menos importante na aparência é que a morte dele signifique o encerramento do caso para a presidente americana, o que impede o aprofundamento das causas - próprias e passadas - do rapto em que se viu envolvida e que tinham que ver com a lealdade política e o valor da palavra dada.
Depois do estabelecimento do trauma de Vik ao longo de Castigo e Crepúsculo em Oslo, que a problemática da sua resolução se esfume sente-se como uma traição da autora, tanto ao leitor como aos seus personagens - e até à consistência do seu trabalho!
Reconhecendo que a escrita de Anne Holt, livre do que não é essencial, proporciona um thriller de leitura mais engajada do que o habitual, este acaba por ser um livro inconsequente tanto no percurso dos personagens como na expressão desta "aventura" nesta saga.
Nem mesmo a curiosa (e lida agora, irónica) perspicácia da autora que afirma (e parafraseio) que "pensava que deixavam um negro ocupar a Casa Branca antes de deixarem uma mulher" ajuda a tornar o livro mais significativo.


A Senhora Presidente (Anne Holt)
Contraponto
2ª edição - Janeiro de 2011
296 páginas

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A intelectualidade do crime

Apesar de ser uma inventiva obra, em Crepúsculo em Oslo sente-se que o elemento feminista pode estar a prejudicar um pouco as melhores hipóteses a que a trama pode almejar.
A autora começa a dar mais protagonismo a Vik do que a Stubø desequilibrando a dinâmica em que parecia ir assentar esta série de livros.
O cenário é a de uma sequência de assassinatos de celebridades que agarra a atenção dos média e que lembra a Johanne um padrão que ela estudou.
Anne Holt arranja à sua protagonista uma antagonista que é sua rival intelectual, uma autora de policiais que é chamada a comentar os mais recentes assassinatos com estatuto de especialista.
Mais do que mera competição profissional, têm em comum um professor de profilers do FBI que causa uma perturbação mais profunda.
Ele é a razão pela qual Johanne rejeita falar do seu passado na agência governamental americana, ficando pistas para uma relação amorosa adúltera que colocou a sua identidade como mulher independente em causa - por um aborto que ela não queria fazer é o palpite do leitor.
Logo aí sente-se uma diminuição da protagonista, tornando-se a sua personalidade actual consequência da acção de um homem e não de uma (mais legítima) razão profissional que vá além desta típica relação entre géneros.
Soma-se a isso o seu permanente elogio a Vik como a mais excepcional profiler que já viu, o que a escritora leva a peito.
A competição entre as duas mulheres parece mais fruto de uma inveja perante os elogios do tutor que partilharam do que uma disputa de afirmação de inteligência.
Este conjunto de problemas não se torna demasiado significativo pois a autora leva a trama a superar os problema que desde logo carrega consigo.
Afinal a rivalidade das mulheres revela-se num jogo mais complexo pois a própria escritora está envolvida.
A sua intenção é a de ver se Vik consegue provar a sua culpa ou se ela sairá vencedora da disputa de talento para a imersão na mente de um assassino em série.
Holt trabalha o livro para que este seja desafiante não apenas enquanto leitura cheia de suspense mas, igualmente, como uma reflexão intelectual a posteriori.
Trazer para a trama uma pessoa relacionada com crimes pelo seu uso como matéria de entretenimento (ou uma variação de Holt-escritora) e equipará-la a quem os estuda e lida com a sua mais dura realidade (uma variação de Holt-advogada criminal) acaba por levantar interessantes questões.
A fronteira de como se compreende o crime está em discussão e Holt deixa por resolver este confronto, sem que Johanne possa provar a culpa da escritora e sem que a sua rival possa vangloriar-se do seu feito ao homem cujos elogios quereria receber.
Com isso interroga-se - afirmando! - se a criatividade pode disputar o lugar ao conhecimento analítico e se o crime pode ser matéria de trabalhos tão antagónicos.
Toda esta disputa acontece suspensa em cliffhangers que deixam espaço para que a autora dê conta de algum progresso da vida privada de Stubø e Vik.
A autora continua a recorrer-se da eficácia nórdica para nos situar e dar os elementos suficientes para compreender as mudanças das suas vidas: casados e com um filho recém-nascido.
Sem precisar de elaborar sobre o tempo que passou (porque não é essencial a compreender os personagens no momento do livro), ela vai recriando os problemas que têm na sua vida privada a par do que é a trama policial.
Não chegando a um patamar de excelência, a relação com os personagens vai-se formando com um investimento que permanece para lá da variação de eficácia pontual do policial.
Num apontamento adicional, há que dizer que Crepúsculo em Oslo é também o livro onde se começa a notar em Anne Holt a influência do estilo aplicado pelos autores dos Estados Unidos da América.
Aqueles detalhes que se associam ao thriller e não ao policial - informação adicional da perspectiva do culpado, mantendo a sua identidade escondida - tornam-se aqui mais pronunciados do que no livro anterior.
O arqui-inimigo que fica em suspenso para futuros volumes é outro elemento que parece saído das longas sagas americanas.
Sendo natural, pois a autora dividiu a sua vida entre os dois lados do Atlântico, é o primeiro sinal de uma dicotomia que os livros posteriores obrigarão a analisar com mais atenção.


Crepúsculo em Oslo (Anne Holt)
Contraponto
2ª edição - Fevereiro de 2010
276 páginas

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

E não é que resulta?

Muitos dos policiais nórdicos surgem com intenções que vão para lá das de entretenimento literário, almejando um alerta social.
No caso particular de Anne Holt tal fica claro desde o primeiro livro. A autora tem duas preocupações principais: uma feminista e uma de Justiça.
Por essa combinação de razões o protagonistmo do seu livro é dividido entre o inspector Stubø e Johanne Vik.
Ele é um polícia sem provas a que se agarrar num caso de desaparecimento (e morte) de crianças que recorre a ela num capricho - frute de atracção, arrisca o leitor desde logo - depois de a ver sair intempestivamente de um (mau) programa de informação.
Johanne é, apesar do seu passado no FBI, uma investigadora universitária e permanece relutante em dar uma mão à investigação.
Um homem sem medo de pedir ajuda e uma mulher sem medo de a recusar - apesar do caso envolver crianças e haver uma suposta expectativa de cedência ao instinto maternal - demonstra uma sociedade onde os papéis de género se equiparam sem censuras.
O elemento da Justiça vem do tema de investigação dela, pessoas vítimas condenadas por erros judiciais em casos violentos.
Com ele vem a noção de que há um trabalho de consciencialização histórica por fazer que assim permanece porque só casos de grande alarido merecem a pontual atenção pública para os problemas de um sistema de Justiça que não termina na investigação policial.
Os temas das suas investigações acabarão por coincidir num certo ponto, com a autora a querer dizer que há uma complementaridade entre Passado e Presente.
Naturalmente, também entre homem e mulher, levando a que Stubø e Vik se envolvam ainda que tal contrarie o instinto dela.
Ele não é um homem atraente nem cuidado, só que ele sabe que há entre eles matéria de relacionamento que poderá avançar do intelectual para o físico.
Curioso verificar que na componente policial há a inversão destes papéis, com ela a ser muito mais assertiva na sua análise e ele a acabar por recorrer ao instinto de detective calejado, ainda que tal não lhe seja natural.
A complementaridade é um dos temas de fundo do livro mas Holt não transforma o policial numa desculpa para um romance, tratando a relação dos dois quase longe do olhar do leitor.
A autora vai ao âmago da história, construíndo os seus personagens e a sua relação futura com uma economia que serve também um mistério de vida que nos lança na perseguição das próximas etapas desta dupla que equilibrará o profissional e o pessoal.
Há que reconhecer que essa economia transparece para a própria trama, não havendo a vivência excitante dos procedimentos.
Isso está compensado pelo que é uma perspectiva de reacção aos elementos que vão surgindo, com o leitor acompanhando o processo interno dos personagens.
Nada se desconjunta e o resultado é de grande satisfatação perante uma autora dominando o seu labor e oferecendo um policial, um estudo de personagens e uma lição de cultura Norueguesa.


Castigo (Anne Holt)
Contraponto
2ª edição - Outubro de 2009
270 páginas

domingo, 20 de setembro de 2015

Estou com Fox

Escolher um polícia dos "Assuntos Internos" para protagonista é pouco habitual e um risco depois de tanto tempo de formatação do público com a ideia de que esses são polícias traidores do código de irmandade das forças da Lei.
O que isso não faz para tornar um personagem cativante é aquilo que Ian Rankin usa para uma construção mais complexa da personalidade e dos métodos de Malcolm Fox.
Ficamos a saber que foi a conjugação do seu perfil discreto e da sua eficácia que o levou àquele departamento.
Ele sente-se menorizado por essa espécie de reconhecimento que o levou àquele trabalho, como se não chegasse a ser um verdadeiro detective. Por isso é o primeiro a desejar cumprir com o seu período obrigatório naqueles posto e abandoná-lo.
Isso é, também, aquilo que o motiva a imiscuir-se num caso de assassinato quando se desloca a uma esquadra para avaliar o comportamento dos seus elementos depois de uma denúncia de abuso de poder para obter favores sexuais de detidas.
Malcom tenta mostrar que é um polícia dotado, dando também o flanco a que os seus adversários - também polícias - se atirem a essa sua fraqueza que é já não se ver como um deles.
A falta de integração é apenas acentuada pela posição que lhe foi dada, mas vem de trás, pelo que as suas novas funções lhe trazem mais intensidade à luta por voltar a ser o que sempre pretendeu ser.
A dinâmica defeituosa de Malcolm ser polícia dos polícias e tentar ser polícia como os polícias dão-lhe mais substância por via da imperfeição.
Ele acaba por ir quebrando as regras que devem reger o seu próprio papel como participante objectivo e, mais importante, imaculado.
Esse elementos cria a expectativa de que, num ponto futuro, a sua liderança de equipas dos "Assuntos Internos" possa ser posta em causa e que a visão que os colegas tinham dele possa vir a transformar-se.
Ao mesmo tempo mostra que há uma mais complexa dualidade no seu carácter que vai ser o pilar de muitos bons livros em que o desenvolvimento do seu carácter será tão importante como as tramas.
O trabalho de Ian Rankin no seu personagem é, portanto, um trabalho de fundo. Uma construção lenta que exige um investimento da parte do leitor que vê o livro aumentar em páginas quando a complexidade do caso não é tanta assim.
Felizmente essa caracterização é muito bem feita e temperada com diálogos de enorme precisão que dão um estilo ao livro que o torna num jogo de paciência sempre cheio de ritmo.
E a caracterização não vale só para Malcolm Fox, vale também para os cenários Escoceses que são novos com um toque de familiaridade perante outros policiais Britânicos.
A inclusão do elemento histórico e político da luta separatista do país contribui de forma mais específica para que o livro se distinga e trabalhe com temas menos habituais para leitores estrangeiros.
Não que isso signifique que o autor consiga criar uma influência expressiva desses actos de há trinta anos (e dos seus crimes caídos em esquecimento) no presente. O separatismo fica como elemento e não como razão da trama.
Ainda que a coesão da mesma não seja em nenhum momento colocada em causa! Diria mesmo que Ian Rankin é um mestre da estrutura que aqui falhou no que ela suporta.
Com excepção do protagonista que se sustenta a si mesmo!
Sendo um segundo livro dedicado a Malcolm Fox, não foi na relação com ele que sinta qualquer falha e creio que se podem ver todos os elementos que o manterão como motivo para seguir lendo as suas investigações.


Uma Morte Impossível (Ian Rankin)
Porto Editora
1ª edição - Abril de 2015
448 páginas

domingo, 13 de setembro de 2015

Azarqueologia

Há muito que não há um livro sobre o qual tenha tão pouca vontade de escrever. Eis O Labirinto de Água, um livro mau, mas não mau o suficiente para inspirar uma boa crítica pela sua vertente corrosiva.
Opto, então, por escrever uma crítica breve que me livre, com rapidez e em definitivo, deste livro.
Não há maneira sequer de escalar negativamente as características deste livro!
Começo pelo óbvio, é um livro mal escrito. Aborrecido e massudo, arrasta-se página após página sem uma frase que o redima.
Um paradoxo para o que deveria ser um thriller emocionante e veloz. A culpa está, muito provavelmente, numa procura de rococó literário que o autor confunde com beleza, que nem sequer sabe o que seja.
Frattini dedica sempre um grande esforço a dar um passado aos seus personagens, tentando fazer deles figuras tridimensionais em três parágrafos ou menos.
Não só um passado, um que tenha curiosidades históricas e geográficas interessantes para o leitor.
Sendo isso feito com personagens que vão intervir numa única cena do livro antes de nunca mais serem referidos ou, mais comum, serem mortos o autor tem sucesso em aumentar o seu livro em 20% para lhe dar o volume que vende melhor a peso - uma prática que descobri existir nos alfarrabistas de Itália.
O final não compensa o leitor pelo tempo dispendido com a trama e a revelação que tem que ver com o Evangelho de Judas e o que ele significava para o Cristianismo é mesmo a banalidade que já se suspeitava desde o início.
Terminar o livro só para evitar a curiosidade que pode ser uma irritante fonte de comichão.
Não sendo masoquista só o fiz acelerando nas páginas em diagonal tão acentuada que era quase uma leitura na vertical.
Finalmente, este é um livro cuja premissa nem sequer faz sentido, uma aventura que nasce de uma carta que uma velha senhora deixou à sua neta em perspectiva desta vir a ser a versão feminina de Indiana Jones para o Evangelho de Judas.
Deixou a carta num cofre quando a neta tinha dez anos e nunca mais lhe mexeu, o que requer uma confiança plena no destino.
Felizmente para o autor Afdera Brooks não seguiu Medicina ou Engenharia, caso contrário não haveria aventura em que ele gastar mais de quatrocentas páginas.
A Arqueologia como opção de carreira de Afdera é o grande azar dos leitores.


O Labirinto de Água (Eric Frattini)
Porto Editora
1ª edição - Março de 2010
448 páginas

sábado, 12 de setembro de 2015

É para rever



Depois de lidos quatro livros da Porto Editora de seguida tenho que escrever um desabafo que tem tanto de lamento como de acusação.
Não houve nenhum destes quatro livros que não apresentasse falhas notórias de transcrição final que, na sua maioria, eram também graves.
Aquelas que se ignoravam de forma relativamente fácil eram as de permanência de algumas palavras numa frase cuja tradução se transformou. As outras eram impossíveis de o conseguir.
A evolução da falha anterior significou a aparição de frases já ilegíveis de tal forma duas (quem sabe se mais...) traduções competiam por existir em simultâneo.
Houve depois parágrafos que terminavam a meio, em vez de um ponto final vinham dois pontos e a expectativa de algo que ficou por imprimir.
Mais óbvio e ainda assim por eliminar era a duplicação de parágrafos, consecutivamente impressos sem que ninguém desse por eles.
Olhando para a ficha dos quatro livros um ponto em comum: nenhuma referência a um revisor.
Se os houve, não estão assinalados, ficando toda a responsabilidade imputada aos tradutores. Se não os houve o caso torna-se grave.
Parece-me que se trata do segundo caso, visto que as outras casas do grupo editorial indicam o nome dos revisores.
Isto significa que aquela que é um dos maiores grupos editoriais deixa que a sua chancela-mãe publique sem revisão.
Algo tão básico que até um pequeno editor uma vez me disse que, não importava as dificuldades de edição, ele contratava sempre uma senhora para rever as páginas e assinalar até a aparição de manchas brancas (espaços sem letras) nas páginas.
Perante isso, esperar que a Porto Editora tenha alguém na sua cadeia de edição para observar que há parágrafos duplicados ou incompletos parece um serviço mínimo.
Esta situação incomoda-me como leitor, por ter de enfrentar esta má qualidade de edição e pouco poder fazer quando milhares destes livros estão vendidos.
Só que esta situação embaraça-me ainda mais! Porque é um triste sintoma para uma disputa por um mercado pequenho que vai ficando cada vez mais partido em três ou quatro parcelas demasiado grandes.
Se este é o paradigma futuro quando forem quase só "grandes grupos", como continuar a defender um rico mundo editorial de tradução se é para ter livros neste estado?
Se os tradutores são levados ao limite - porque a oferta é bastante e o número de traduções menor - e não há o cuidado de, pelo menos, rever esse trabalho - para preservação de tradutores, leitores e reputações de editoras - de que serve querer ler em Língua Portuguesa?
Em Língua Inglesa e por menos dinheiro os leitores que o podem fazer acabam melhor servidos.
E para captar novos leitores estas condições não são dignas de esforço algum...

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Crítica e carinho

Uma criança leva à boca um osso humano, assim revelando um corpo enterrado há décadas e um possível crime há muito mantido em segredo.
A criança e o cadáver poderiam levar a leituras banais sobre o ciclo da vida apenas se não se ler a ironia da situação.
O osso é identificado durante uma festa de anos. No meio da maior da alegria ergue-se o trevor que alguém conseguira manter abafado.
Numa sociedade vista - oficialmente, agora - como das mais felizes do mundo, este é o aviso de que o livro tem, de facto, o carácter de Noirdico que ainda não deixou de conquistar os leitores. Ou seja, uma exploração da podridão escondida pouco abaixo da imagem de superioridade social.
A investigação é levada a cabo pelo inspecto Erlendur que se vê contrariado por quase todos, que lhe dizem que as suas linhas de investigação não fazem sentido ou que passado tanto tempo não vale a pena perseguir aquele caso.
Ele fá-lo, porque até um corpo enterrado ali logo após a Segunda Guerra Mundial merece ver a sua história revelada. Até porque são dois corpos que lá estão, o segundo de um feto ou de um bebé nado-morto.
A ideia de que o corpo pertencia a uma mulher assume alguma preponderância mas a confirmação demora pois para o desenterrar são chamados arqueólogos que demoram tempo demais, recolhendo cada porção de terra a um ritmo que é só deles.
Uma outra dose de ironia do autor, agora para com as prioridades da sua sociedade, em que a precisão do trabalho de campo se torna mais importante do que as respostas sobre as pessoas.
Por isso o inspector tem de ir perseguindo outras pistas, tão antigas que quase não existem mais.
Pistas e algumas coincidências, que estas últimas serão a chave final para responder às questões sobre a quem corresponder aquele esqueleto.
Pistas que remetem para outros crimes passados e que, então, ficaram igualmente sem resposta.
O jogo de Arnaldur Indriðason com a dúvida que paira na história é particularmente bem sucedido à medida que os arquélogos levam o seu tempo a desenterrar o corpo.
Isso permite que a história que vamos conhecendo de uma mulher e filhos vitimizados pelo marido/pai na Reiquejavique da segunda metade da década de 1940 nos encaminhe para uma expectativa que é contrariada com uma reviravolta que é uma revelação de carácter e não uma surpresa transformadora do próprio sentido da história.
Esse final torna A Mulher de Verde numa leitura ainda mais gratificante, compensadora do controlo que o leitor tem sobre o leitor, em parte exasperação, em parte empolgamento.
Arnaldur Indriðason vale-se de uma escrita que é eficaz, onde os diálogos são importantíssimos, sem que deixe de explorar os seus personagens de forma incisiva.
O drama social acompanha-os, não se resumindo à violência doméstica do passado, mas também ao risco da droga que causa o drama familiar do próprio inspector.
Tal integra-se bem no mosaico de mordacidade e acusação que é o livro, dando a esta cidade Islandesa uma dose de comoção que lhe traz complexidade humana, em vez de um antro onde o autor poderia lançar raízes de muitos outros crimes.
Crítica e carinho com uma cidade e uma cidade que são as suas, o que faz de Arnaldur Indriðason um autor a merecer destaque.


A Mulher de Verde (Arnaldur Indriðason)
Porto Editora
1ª edição - Abril de 2014
264 páginas

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Demasiadas ideias

Recordava-me de ter gostado do anterior livro de Donato Carrisi publicado por cá e isso chegou para seguir para este, malgrado a capa, cujo efeito é o contrário da atracção.
(Alguém deveria conseguir explicar porque não se limitaram a usar a capa original em vez de carregarem esta com uma nada subtil simbologia Cristã e uma falhada tentativa de dar a ver o grande mistério do livro.)
O que este livro reforça é o talento de Carrisi para gerir a tensão sem recorrer ao espalhafato, apenas controlando os tempo com precisão.
Inevitavelmente isso significa, por vezes, que deixa uma cena em suspenso para um capítulo posterior, mas na maioria de vezes trata de gerir os tempos da macroestrutura do romance e não manipular por via de tais truques momentâneos.
As suas personagens também ganham vida com facilidade, o que é importante quando a informação sobre elas tem de pingar do princípio ao fim e não jorrar logo nos primeiros capítulos.
Por isso o seu livro se lê com tanta facilidade e com alguma dose de prazer. Reforçado pelo seu intento de perseguir ideias originais que contribuem para afastar os seus serial killers da banalidade.
O que, neste caso, é também verdade para o seu principal investigador, até porque eles partilham uma particularidade psicológica e algo mais do que isso, uma identidade passada.
Donato Carrisi ficciona estes seus personagens e as suas especificidades a partir de casos documentados que tenta levar o mais longe possível sem deixar de ter algo de plausível.
O fascínio dos acrescentos feitos relatos que Carrisi vai buscar surge de serem intelectualmente estimulantes, num apelo de imaginação que termina em certa estupefacção de não ser tão inventada quanto parece.
Só que essa obsessão com as ideias leva a que Carrisi não torne plenas as suas personagens, abdicando da psicologia para as rematar como peças do puzzle que foi traçando.
Um puzzle complexo que usa duas boas ideias em vez de as explorar em separado para garantir que estas se tornavam excelentes na sua função dentro do thriller.
Carrisi concluí o puzzle de forma que a imagem é clara e satisfatória, mas há uma sensação de desperdício, como se o enquadramento fosse deficiente para preservar ambos os pilares d'O Tribunal das Almas.
Não dando detalhes, para não destruir a surpresa dos que virão a ler o livro, devo dizer que a exploração das identidades no livro se torna complexa e que não facilita um traçar definitivo das personalidades dos personagens.
Mais uma razão para tentar explorar primeiro os percursos individuais dos personagens que, pelo contexto, sustentavam facilmente histórias independentes - quem sabe se séries independentes!
Tal como em O Sopro do Mal, aqui o suspense é quase perfeito e sustentado por uma arquitectura da trama que se deve assinalar por resistir intacta apesar da sua expansão constante.
A decisão de encher esta obra com mais do que essa arquitectura podia conter antes de fazer sucumbir os seus personagens é que impede que a obra se erga.


O Tribunal das Almas (Donato Carrisi)
Porto Editora
1ª edição - Maio de 2012
424 páginas

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Viver a neblina

O foco d' A Hora das Sombras está nas suas personagens e ainda que seja um policial pleno, é sobretudo um olhar sobre as brumas em que as pessoas vivem quando presas pelo sentimento de perda.
No centro da história está uma perda com vinte anos, de Jens ainda criança. Julia ainda vive esse momento do desaparecimento do filho que ficou por resolver.
O pai dela pode agora estar na pista do que aconteceu, tendo recebido pelo correio um dos sapatos que o neto calçava.
Apesar de sofrer do doloroso e debilitante Síndrome de Sjögren, Gerlof persegue esta pista com determinação ainda antes de chamar a filha de volta à ilha que abandonou.
Gerlof perdeu, além do neto, a filha (e também a irmã desta) que se afastou dele culpando-o pelo desaparecimento de Jens. Na tarde em que o rapaz desapareceu ele tinha ido pescar.
A sua demanda como detective é uma urgência iniciada pela recepção do sapato mas movida por essa necessidade de recuperar a ligação à filha - e, em parte, recuperar alguma da sua função na vida.
Julia cede em regressar à ilha para vir atrás da recuperação de si mesma na forma de uma resposta para o que aconteceu que lhe dê um sentimento de conclusão, ainda que nunca lhe dê descanso.
Como também a recuperação de um mérito para o sofrimento de tanto tempo, que o ex-marido foi capaz de deixar para trás e do qual a irmã lhe diz para se libertar.
O senso comum alheio está contra a investigação dos dois e tem de ser a morte de um amigo de Gerlof a mostrar que talvez ainda haja sentido numa investigação de um caso já tão "frio".
A eles junta-se, em certa medida, um polícia que perdeu o pai há muitos anos atrás. Que é polícia, precisamente, porque o fora o pai.
A sua recuperação é da memória do pai, assassinado há quase cinquenta anos atrás por Nils Kant, rico e mimado local que deixou atrás de si um rasto de crime e suspeitas.
Nils Kant é uma assombração dita em surdina, um homem morto que é visto em todos os males que ainda acontecem na ilha.
Também a história dele nos é contada, da sua juventude de crueldade em que deixou o irmão morrer ao fim da Segunda Guerra Mundial quando mata dois soldados alemães em fuga e da sua fuga para a América do Sul até ao seu regresso no dia em que Jens desaparece.
Estamos perante um rapaz cruel e insensível que, apesar de tudo, se torna também vítima da perda. Perda da mãe - e da mãe pátria! - que nunca mais pode ver, por culpa própria mas também por manipulação alheia.
Nem ele, como vilão que fora, permanece sempre como encarnação do mal.
Desde o início do livro há uma certeza, de que Nils e Jens se cruzaram naquela tarde de neblina cerrada.
A conclusão óbvia, no entanto, é desmentida e a verdadeira revelação coloca em causa a justeza de reduzir qualquer personalidade a "homem bom" ou "homem mau".
A vida de Nils Kant corre em paralelo à investigação comandada por Gerlof, caminhando o Passado para se encontrar com o ponto de início da história que mantém a vida de Julia em suspenso.
O que Johan Theorin faz com mestria é usar esses dois tempos de história para colocar-nos na pista de uma resposta que não seja apenas uma revelação bombástica.
Dar-nos a conhecer como os eventos do passado encaminharam os personagens para o seu estado presente. No fundo, mostrar como a ilha carrega consigo uma carga latente de destruição.
Uma carga que a ilha parece fazer descer sobre os seus habitantes através da cerrada neblina.
Öland é o seu nome e aquele espaço geográfico é tanto um personagem como todas as pessoas que a percorrem.
A sua atmosfera intervém na história, talvez até mais do que as decisões das pessoas. É a sua neblina que faz desaparecer Jens aos olhos do homem que se cruza com ele naquela tarde de há vinte anos e ao coração daqueles que o ama ainda mais desde então.
A bruma da ilha é verdadeira mas é, também, a condenação emocional para todos os que a atravessam e a respiram. Como se a ilha os penetrasse ao respirarem a neblina e nunca mais os abandonasse, por mais que se afastem, a crueldade ou o falhanço permanecem dentro deles.
Johan Theorin tem neste seu primeiro livro a técnica de um grande escritor mas é na sua criação de um ambiente tão importante que se torna no personagem maior do livro que ele distingue ainda mais.


A Hora das Sombras (Johan Theorin)
Porto Editora
1ª edição - Novembro de 2014
384 páginas

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Irresistível falhado

Conheci agora o comissário Adamsberg e não creio que me deixe de dar com ele tão cedo. Com ele e com a equipa, mas já falarei de quem o acompanha.
Por agora, falarei de Jean-Baptiste Adamsberg, um investigador que merece o seu lugar na galeria dos memoráveis líderes de polícia ficcionais.
O método não é o seu modo de trabalho, prefere antes a espera pela iluminação súbita. Não se pode dizer que tenha instinto, o que ele faz é comungar com a realidade em torno do crime e esperar que alguma acção lhe pareça útil.
Se isso resultar na morte de uma vítima mais, esse é um custo inevitável que se lamenta, mas cuja culpa dificilmente se lhe pode imputar.
Inclusivé porque, em paralelo, ele tem outros temas importantes a cirandarem na sua mente, como o caso da crueldade para com os pombos de Paris - alguém lhes ata as patas e os sujeita a morrerem à fome.
Um dos polícias mais zen que vamos conhecer, senão veja-se a sua equipa. Um dos agentes sofre de hipersonia, outro é uma útil mas irritante fonte de conhecimento escrito, outro tem de ter um estoque permanente de comida na esquadra - onde há um gato que dorme em cima da fotocopiadora - e uma mulher cuja presença vale por todo o resto do departamento junto.
Surpreende menos que ele consiga resultados com esta equipa do que dentro de dela hajam disputas de ciúmes para ver quem recebe maior aprovação de Adamsberg.
Eles, como o leitor, sentem-se atraídos para o comissário de forma intraduzível para um discurso lógico.
Sobretudo tendo em conta que Adamsberg contorna as regras policiais para melhor fazer valer aquela que é a sua consciência e pela qual as chefias devem controlar a realidade criminal de pequena monta.
O que, neste caso específico, quer dizer levar o seu filho para uma investigação como ajudante para proteger um incendiário que ia ser acusado e condenado de forma expedita por um assassinato que Adamsberg provará que ele não cometeu, se lhe derem tempo.
Arrisco dizer que tudo se deve a um irresistível apelo da sua personalidade, que aceita o mundo para nele intervir em vez do alterar de forma brusca na procura de respostas.
A mesma personalidade que lhe vale algumas conquistas quando se dirige à aldeia de Ordebec para investigar o caso das mortes anunciadas pelo Exército Furioso, horda de cavaleiros mortos-vivos que aparecem em visões a alguns escolhidos e em que ninguém da aldeia acredita. E em que ninguém deixa de acreditar!
Vale-lhe a amizade imediata de uma velha senhora desconfiada até dos seus conhecidos e o apoio de um nobre local ainda com poder de influência.
Depois ele está mais ou menos livre para fazer o seu trabalho, dedicando-se aos detalhes que parecem inúteis para os outros e falhando em dar os passos que outros acreditam ser óbvios.
Tornando a trama policial ainda mais aliciante estará o facto de serem os próprios métodos pouco consistentes do comissário que servem para que o criminoso manobre em direcção à garantia de impunidade.
Que apesar disso o caso se possa resolver com base nuns pacotes de açúcar encontrados durante um descanso para reflexão é notável e só Adamsberg o poderia fazer.
Embora também seja verdade que com a linha de inquérito seguida, nem o leitor mais atento tem as pistas para deslindar o caso antes disso...
Este policial não se conta entre esses em que o mais importante para o leitor é tentar bater o detective.
Na verdade, Fred Vargas aproveita para explorar a essência da vida Francesa para lá de Paris - muito embora deva ser tão ou mais interessante saber como olha Adamsberg para a capital.
Locais um pouco perdidos onde os mitos convivem com a realidade e onde a identidade local se mantém tão vincada que ao lá chegar Adamsberg parece ter atravessado meio mundo.
Além de que o autor se preocupa mais em criar personagens palpáveis cuja absorção em si mesmas - de que Adamsberg será sempre o pináculo - valoriza as suas diferentes identidades e como elas se conjungam, falhadas que são, num todo que funciona policial e humanamente.
Como se vê pelo caso que o comissário resolve logo nas primeiras páginas do livro, não são precisas mais do que migalhas para fazer o trabalho de polícia. Mas para com elas trabalhar é preciso abraçar o mundo com uma certa dose de imersão poética até perante o seu lado medonho.


O Exército Furioso (Fred Vargas)
Porto Editora
1ª edição - Outubro de 2014
368 páginas

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Pulpitante

Torna-se impossível não começar esta crítica por referir o racismo latente neste livro, até porque a própria introdução que a editora fez ao livro chama a atenção para ela.
Não que fosse necessário, pois o autor é sempre bastante peremptório em evidenciar um (mau) entendimento genérico e preconceituoso dos povos Asiáticos e, sobretudo, o Chinês.
Desde "ameaça amarela" ao "maior dos perigos para o Ocidente", o autor não se inibe de apelar ao sentimento de medo dos seus leitores de há cem anos atrás.
Visto no contexto desse tempo e do tipo de sentimentos que por essa época nasciam de uma ignorância alimentada pela especulação, todas essas classificações são facilmente aceitáveis e esquecidas na busca por um pouco de emoção literária à moda antiga.
Até porque me parece que Sax Rohmer nunca saiu do seu pequeno canto do mundo e generalizava a partir dos casos criminoso que cobria como jornalista.
E, mais ainda, a tal especulação mediática acerca de povos distantes ainda não desapareceu por completo, apenas mudou o seu alvo (ou tem dias...).
Por isso eis-nos perante a origem de um mais míticos e persistentes vilões da cultura popular, Fu Manchu.
Apesar da escrita palpitante e com uma boa dose de qualidade que fazem perdurar apenas os melhores de entre os pulps, não terá sido por este livro em particular que tal aconteceu.
A história, apesar de substancialmente coesa, não deixa de se revelar como a colagem de uma série de episódios que devem ter nascido de forma independente antes de chegarem a esta forma.
Saltitando de cenário em cenário, do Ocidente conhecido até ao exótico Oriente, o livro assenta na perseguição de Nayland Smith a Fu Manchu.
O primeiro, apesar de esforçado, não é o melhor dos investigadores. A maior parte das vezes as suas conclusões não chegam a tempo de evitar os crimes de Fu Manchu e mesmo as suas melhores tácticas acabam por falhar por lapsos ou simples erros de julgamento, senão ainda de forma mais simples por azares imprevisíveis.
Sendo o objectivo manter Fu Manchu um passo à frente do seu rival para a perseguição continuar, pelo menos são tácticas mais aceitáveis e interessantes do que as fugas de último segundo que os filmes de acção costumam usar.
Ainda se sente a tensão e a frustação do jogo do gato e do rato sempre falho de conclusão que o autor pretendeu criar em 1913. Este efeito intacto é um bom sinal de vitalidade e não se compara com cumprir da cartilha que colocam os heróis modernos em perigos dos quais terão sempre de sair para não acabar ali a história / saga / exploração.
O herói aqui, Nayland, interessa menos do que o seu rival e está lá mesmo a reconhecer-lhe a inteligência e evidenciar-lhe os recursos, sem deixar de apontar o quão melhor era serem usados para a evolução do mundo.
Fu Manchu, pelo contrário, prefere o secretismo e o seu plano é, precisamente, eliminar todos os Ocidentais que pudessem esclarecer o Mundo sobre o Oriente.
O seu plano é o de fazer perdurar a ignorância para que o Ocidente não possa tomar uma posição até ser tarde demais e Fu Manchu já dominar toda a Ásia.
Para concretizá-lo precisa apenas de matar uma dezena de homens e não exércitos inteiros, o que revela bem o brilhantismo quer de Fu Manchu quer do seu criador.
Ainda assim, a verdadeira razão para Fu Manchu perdurar não é o seu plano mas os recursos das suas armadilhas que só se podem classificar como extraordinários.
Sejam homens capazes de escalar os mais íngremes telhados e simular que uma pessoa se mata lançando-se da janela ou a divertidíssima nuvem mortal num corredor que só contém alguns cogumelos, a inventividade de Sax Rohmer para o seu personagem é inigualável e merecedora de uma superação (que não é difícil) da forma como o autor se refere aos povos asiáticos.
Até porque há algo que se deve reconhecer àquele "racismo" que desde o início se falou. Ele permite que Fu Manchu seja mais do que um homem, seja um sábio talento para o Mal que pode passar de homem para homem sem diminuição do perigo, o que o torna de facto imortal: não só na ficção mas na memória dos leitores!


O Mistério do Doutor Fu Manchu (Sax Rohmer)
Editorial Vega
Sem indicação da edição - Março de 1979
336 páginas

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Disputar até à harmonia



Depois de terminada a entrevista a Herman Koch vi nas suas circunstâncias um feliz acaso que, enquanto ela decorria eram causadoras de incómodo.
Afinal a entrevista decorreu numa sala de restaurante que haveria de começar a ser preparada para refeições. O som de talheres embatendo uns nos outros é audível ao longo da entrevista!
Um contexto em consonância com o livro que estávamos a discutir, em que o som que se opunha à nossa conversa se tornou numa apropriada banda sonora.
Nisso posso ver, igualmente, a expressão do que foi a entrevista, que foi passando de um confronto para uma conversa.
Um confronto de um autor com o poder das suas próprias ideias e daquilo que um leitor nelas pode encontrar de mais frágil ou menos conseguido.
Um confronto de exigência, de quem gostou do livro, reflectiu e não se contenta. Afinal, tal como o livro confrontou o leitor durante as suas trezentas páginas e lhe faz exigências.
A tornarem o processo mais simples estavam a frontalidade do autor e a sua vontade em esclarecer.
Diria mesmo, a sua vontade em ser confrontado, em vez de responder continuamente ao mesmo conjunto de perguntas a tocarem (nem sequer arranharem!) a superfície dos temas sobre os quais escreveu.
A entrevista foi-se transformando continuamente até ser algo mais agradável, que ousou falar do que está para além do livro.
Houve que cortar partes da entrevista, não porque não houvesse tempo para as incluir, mas porque já eram algo diferente.
Algo cujo interesse poderia não transparecer para os outros leitores d'O Jantar.
Momentos em que não havia já entrevistador e entrevistado, apenas duas pessoas à conversa sobre a Política e a Sociedade.
Momentos de análise em minúcia ao sentido menos claro de uma passagem do livro e se isso resultava da tradução ou já estava no texto original.
Uma entrevista que começou como disputa e acabou como entendimento. (Talvez assim devam ser todas elas.)
Não porque o livro se tivesse esgotado numa única linha de pensamento, mas porque ambos compreendíamos a zona de dúvida em que as ideias tanto colidem como coincidem.
A entrevista terminou com um leitor mais esclarecido e um escritor mais satisfeito.


quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Pensar o que pensamos

O livro começa e o narrador está à conversa connosco, relatando a história de um jantar que promete ser uma catástrofe reveladora.
Pela forma como Paul, de início, vai contando o que se passou, não é possível imaginar quão maior será a catástrofe e como ela não se expande a partir daquela refeição mas culmina nela, várias vidas implodindo naquelas duras horas à mesa antes de voltarem a expandir-se com brutalidade.
O seu relato começa pelo contexto social que nos coloca em sintonia. As suas observações são pertinentes, merecendo a partilha daquele sorriso concordante de quem já experimentou o mesmo mas nunca teve oportunidade de o dizer.
O local, um restaurante demasiado pedante onde os empregados usam o dedo mindinho para sobrevoar a comida à medida que a descrevem.
A companhia, o seu irmão candidato a primeiro-ministro que não pode conviver sem se fazer ser visto.
A conversa, um caso aparentemente complicado entre os filhos de ambos que cada casal deveria resolver em casa por si próprio.
O monólogo colocou-nos confortáveis, estamos a partilhar o entendimento de Paul, claro que a vontade individual de cada um deve ser respeitada. Isso não é egoísmo nem arrogância, é a preservação da singularidade.
Nesse momento Paul começa a deixar-nos desconfortáveis.
Que tem a ver com o jantar que ele tenha feito chorar uma das suas alunas por culpa de um mau trabalho sobre a II Guerra Mundial?
Será que podemos ainda sorrir em concordância com as opiniões dele sobre a possibilidade de nem todas as vítimas desse conflito terem sido pobres incocentes? Ainda por cima falando dos Judeus?
Nós interlocutores de Paul, que estamos condenados a ouvir sempre pois a duvidosa alternativa é fechar o livro e não saber mais, somos repentinamente obrigados a defrontarmo-nos com as nossas próprias convicções e a distância que vai entre os dois limites essenciais: aquilo que aceitamos nos outros e aquilo que rejeitamos em nós.
Ou, dito de outra forma, a distância entre aquilo que verdadeiramente pensamos e o politicamente correcto que deixamos os outros conhecerem de nós.
Bem, podemos aceitar ainda algumas das suas opiniões, há áreas coincidentes, ele pode ser pouco polido a expressá-las mas nós sabemos a forma correcta de as tratar. Somos, afinal, liberais com sentido de decêndia.
Então mas que história é esta agora de relatos de violência e diagnósticos de problemas psiquiátricos com propensão genética?
Paul é maluco e nós concordamos com ele... Não pode ser, temos de rejeitar desde já todas as suas opiniões e todas as suas decisões acerca do caso que o levou àquele jantar!
E então estamos a rejeitar também algumas das nossas próprias opiniões. Será que não somos assim tão boas pessoas como nos julgávamos?
Por outro lado, Paul parece apenas ter defendido o seu filho e o seu papel como pai. O instinto primário de todo o ser humano normal e até dos animais, defender a cria e salvaguardar a família.
A dúvida arrasta-se com o leitor sobre o grau de confiança que se pode ter em Paul e, a partir daí, em nós próprios.
Este homem só quer um pouco de assentimento para os seus problemas e no processo quase destruiu a noção que temos de nós próprios.
Sobretudo porque, no final, nos conta algo que demonstra um grau de racionalidade - cinismo, mesmo - que costuma ser defendido como uma importante qualidade para vencer no mundo. E, ao mesmo tempo, mostra que aqueles à sua volta que pareciam figuras estóicas e decentes podem ser piores do que ele - que ao menos reconhece o seu problema.
A revelação chocante que ele nos faz, a razão que juntou dois casais para jantar, parece até menos importante do que tudo o resto que a ela levou e que ela despoletou.
O caso de violência que os traz ali pode ser visto à luz das circunstâncias, mas o que dizer de quando a mulher de Paul lhe pede que cometa um outro acto de violência para compôr as suas vidas?
Ela que parecia ser um pouco mais sã requer violência dele e ele diz-lhe com perspicácia que se for ele a ser violento, tal poderá ser imputado à sua condição e não transmitir a mensagem esperada.
A sua lógica traz-nos de novo a um reconhecimento que não aceita que tudo o que Paul opinou possa ser colocado de lado como se de loucura se tratasse.
Paul é pouco fiável, mas não é um maníaco que deva estar numa cela almofadada. Afinal, nós também não devemos.
Paul não será, certamente, uma réplica literária de Herman Koch. Como os leitores, o autor deve concordar e discordar dele.
Deve, também, interrogar-se sobre os limites do politicamente correcto e da censura que essa definição começa a impôr.
Um medo de expressar seja o que for senão num ambiente extremamente controlado onde só estão os familiares ou os amigos - e mesmo assim nada garante que mesmo eles não julguem.
Se Herman Koch queria, com este livro, obrigar-nos a pensar sobre o estado da nossa relação pessoal com a liberdade de expressão, consegue-o, perguntando-nos de forma clara se podemos viver sempre em restrição só para não ofender outros com a verdade - ainda que uma verdade que aceita contraditório e pode ser corrigida.
Nem sempre terá sido tão subtil quanto deveria e literariamente a eficácia - afinal, trata-se de um relato oral - pode custar-lhe alguma delicadeza. Mas o efeito é alcançado com elevada eficácia.


O Jantar (Herman Koch)
Alfaguara
1ª edição - Junho de 2015
304 páginas

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Bem carregado

Nos anos 1950 em Dublin um patologista leva uma vida carregada de desesperança. Não pelo número de cadáveres que vê passar pelo seu departamento mas pelos constrangimentos sociais que voltaram a dominar a cidade.
Para o seu caso particular conta que se tenha ligado a uma das famílias que continua a dominar a estrutura social e a impôr a sua vontade. Até a ele que teve de se casar com a irmã que menos amava.
Quando o seu concunhado tenta fazer passar uma certidão de óbito com uma causa falsa, o protagonista Quirke, vence a sua inacção.
O sentido do seu nome para o que ele vai representar na ordem estabelecida é evidente. Talvez ele tenha encontrado o seu ponto limite para as cedências que faz à família. Ou apenas tenha sentido a sua exigência profissional (e moral) colocada em causa.
Seja que razão for ele inicia a investigação acerca da morte de Christine que se adensa dentro do clã que nunca o aceitou devidamente.
Na Irlanda nenhuma família existe isolada e aquilo em que ele remexe envolve uma ligação maior entre múltiplas famílias poderosas e entre Dublin e Boston.
O que ele vai revelando é uma rede que se move para lá da Lei assente nas boas intenções do Catolicismo.
Homens influentes no seio de uma sociedade secreta que tentam moldar um futuro pleno para a sua herança nos Estados Unidos da América: tráfico de crianças para garantir os homens e mulheres de fé do futuro, certamente através duma lavagem cerebral que é apenas sugerida.
Quirke, como vários detectives do noir americano dessa e da década anterior, envolve-se em algo que é demasiado para um homem sozinho - e para as suas capacidades como detective!
A cobrança é física, ficando ele praticamente sem uso de uma perna. Mas a desistência psicológica nunca é equacinada.
Aqui o policial é temperado com o melodrama, que reaproxima as personagens da trama num novelo emocional que se dirige de novo à família de Quirke.
Quirke move-se também para salvaguardar a vida da sobrinha em relação a quem há um segredo e que, como ele, também se rebela perante a família com a paixão por um homem que não se adequa a ela.
Um segredo poderoso que é, de certa forma, o reflexo pessoal do caso que ele investigava e que parece indicar que Quirke estava desde o início consciente que precisava de se colocar na pista da resolução do seu próprio papel dentro da família, até para o contrariar em definitivo.
Só que esse segredo obriga a toda uma consequência de pequenas revelações que marcam os personagens, sem excepção, como seres falhados que tiverem de se encobrir com a força da tradição familiar.
O livro é inclemente, dilacerando os personagens - e o leitor com elas - à medida que as encaminha de forma destrutiva para a resolução que envolve outra Christine, a filha da mulher que o concunhado queria fazer crer ter morrido de causas negligenciáveis.
Não se pode negar que o apelido Black foi escolhido para denunciar a atmosfera do livro, num trabalho que é de construção meticulosa do enredo mas que não descuida a qualidade da arte que deve estar inerente à montagem da cadência das palavras nas frases e das frases nos parágrafos.
Benjamin Black, ou melhor John Banville, escreve com a mestria de quem não se excede nem sequer numa palavra mas sabe preencher cada frase com a sugestão de atmosfera que insufla o instante da frase e se vai acumulando até carregar de tal forma cada cena que esta emana em torno do leitor e torna o livro inesquecível.


O Segredo de Christine (Benjamin Black)
Edições Asa
1ª edição - Março de 2010
320 páginas