quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Urdidura

Eis um título que assenta perfeitamente ao texto que dele se desvenda.
Esta obra é, de facto, a disposição de um conjunto de fios ficcionais que se correm paralelos ou consecutivos parece pouco importante, já que o autor nos vai enredando naquilo que é quase um loucura de memórias.
Memórias que ganham forma na sua expressão literária e que, por isso, estão sujeitas a serem entrecortadas e afectadas por repetições, imagens perdidas, metáforas, referências bizarras e devaneios.
Fios ficcionais que precisam então de um outro fio, uma trama que os cruzasse e agregasse, que lhess desse consistência.
Falta-lhes um entendimento que os atravasse, que seja transversal a todas as divagações.
O livro chega a ter momentos em que é um pequeno deslumbramento imagético e sonoro - tanto que vale a pena ler algumas passagens em voz alta - mas a maior parte do tempo tem como que uma alucinação no seio da qual não se consegue alinhavar o essencial.


















Urdidura (João Rebocho)
Teorema
Sem indicação da edição - Abril de 2001
180 páginas

domingo, 18 de outubro de 2009

A personagem, a essência

http://image.guardian.co.uk/sys-images/Film/Pix/pictures/2007/01/31/marlowe460.jpg

Marlowe é íntegro, ele é o bastião da moral possível num mundo capaz de enveredar pelos actos mais ignominiosos.
Ele é o último dos existencialistas, fiel a si próprio, pois não são "25 dólares mais despesas" que o levaram a escolher esta profissão.
Talvez Marlowe não consiga dormir descansadamente à noite, mas é sem sobra de dúvida aquele que menos mal pode dormir.
Ele opera como a sua consciência lhe permite, fiel apenas a si e ao seu empregador, à justiça que esse pacto envolve.
A justiça externa não lhe interessa verdadeiramente, só ele resiste ainda num mundo vulgar, só ele ele é a fonte de irrisão que confronta esse mundo.

Se nos perdermos no rumo incerto de À Beira do Abismo, não tem mal. Nem Chandler conseguia ter a certeza de como morriam algumas das suas personagens.
Não interessa aqui desvendar - nem por nós, nem por Marlowe - os eventos. Interessa que eles se sucedam e acelerem em direcção à sua própria colisão.
Interessa que eles criem uma sensação, porque À Beira do Abismo é um ambiente, um mundo para que Marlowe exista e lance as suas deliciosas tiradas.
Um mundo que é dele, que só existe onde ele está, que só existe no espaço imediato que o rodeia.
E Marlowe é uma das mais memoráveis e indispensáveis personagens da literatura americana.
Talvez seja isso o essencial a ser dito!


















À beira do abismo (Raymond Chandler)
Contraponto
1ª edição - Julho de 2009
200 páginas

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Para se deixar levar

Ao ler este livro, é preciso saber deixar-se levar pela sua linguagem.
É preciso permitir ser-se arrastado e hipnotizado por este poema em prosa, que ora é extático ora é sofrido.
A história contada em qualquer outra forma não ocuparia mais do que uma única páginas. Bastaria uma composição de escola para explicar o amor desgostoso e impossível de que Elizabeth Smart nos fala.
Mas esse seu amor - este é um relato autobiográfico - dá-lhe o poder de reinventar cada momento da sua memória numa beleza torrencial da linguagem.
Linguagem que expressa a concepção do mundo que esta mulher tem, uma concepção absolutamente subjectiva em que os grandes problemas que a circundam só interessam quando afectam o seu amor directamente.
A sua emoção jorra profundamente sobre a sua linguagem, o mundo dela é feito daquelas palavras e daquela fixação amorosa.
Não sei se será uma obra-prima do género como assinalam, mas sei que é um pequeno e belo livro que precisa realmente que o leitor se entregue a ele.

Já agora, é contraproducente ler o prefácio da tradutora.
Além das informações biográficas sobre Elizabeth Smart que ajudam a contextualizar a história que se segue, está também cheio de considerações intelectuais sobre o texto que condicionam as expectativas do leitor.
Depois de lido o prefácio é difícil largar a tendência para tentar captar as "collages" e, realmente, deixar-se levar pelo texto.


















Junto à Grand Central Station sentei-me e chorei (Elizabeth Smart)
Teorema
Sem indicação da edição - Abril de 1997
124 páginas

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A riqueza da Ficção Científica

Darwinia é um livro de uma riqueza e complexidade extraordinária que dificulta a sua simples classificação.
A originalidade do texto, a sua riqueza e agregação de referências permitem apenas dizer que se encontra no seio da Ficção Científica.
Darwinia fala de Cosmologia, aproxima-se do Cyberpunk, trabalha sobre a especulação científica e a História alternativa e toca o imaginário dos Universos Paralelos.
Darwinia liga Edgar Rice Burroughs a William Gibson, ou melhor dizendo, homenageia a Ficção Científica mais aventurosa e aponta baterias ao melhor do que se apresentava já como linha condutora para o género.
Darwinia tem uma riqueza de imaginação enorme que lhe permite vaguear quase casualmente entre estes sub-géneros, lançando o leitor em especulações e viagens extraordinárias para as quais basta a composição de pequenos momentos, quase apenas sugestões, para nos deixarmos convencer.
Darwinia é uma leitura surpreendente até ao fim, uma lição em Ficção Científica e um prazer singular.
Não será um livro propriamente fácil, mas é de uma enorme recompensa.


















Darwinia (Robert Charles Wilson)
Saída de Emergência
1ª edição - Setembro de 2009
320 páginas

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A grande comédia

Em A Pesca do Salmão do Iémen temos muitas formas de informação a surgir entrecaladas na narrativa.
São notícias, emails, excertos de uma biografia, a transcrição de interrogatórios, diários vasculhados...
São formas distintas de olhar os acontecimentos, cada qual correspondendo a uma perspectiva encoberta.
Cada qual revelando a falsidade do comportamento de uns e de outros, dos políticos, dos cientistas, dos jornalistas, dos terroristas, dos poderosos.
Cada um destes tem um interesse próprio n'A Pesca do Salmão do Iémen, um projecto que só pretende apagar as diferenças entre os homens, fazer desaparecer os seus sedentos interesses.
Com as pernas mergulhadas no rio, a cana expectante pela mordidela do salmão, todos os homens são iguais seja qual for a sua classe, homens feitos de esperança pela boa fortuna da pescaria.
É um projecto megalómano, quase imposível, mas pelo qual há um trio de personagens que luta.
Personagens que pelo meio da ridícula hipocrisia generalizada continuam a lutar por uma crença, por um milagre, por um feito assinalável.
Eles lutam, sempre com a consciência de que a sua recompensa pode ser somente o desapontamento, pode ser somente um culpabilizante apontar de dedo.
Não importa que o empreendimento tenha tido sucesso, pois só a desgraça alimenta a informação, verdadeiramente.
Não importa que os homens tenham concretizado o milagre sonhado, pois só o que pequeno pormenor que lhes escapou fica para ser contado.
Não importa que as suas intenções sejam as mais belas, pois só o cínico olhar dos restantes terá espaço na memória colectiva.
É o retrato do nosso mundo, uma cruel sanguessuga sem consideração por aqueles que ainda lutam.
Que no meio destas tribulações o milagre tenha podido ter o seu lugar, que no meio deste lugar uma preciosa e delicada história de amor tenha podido nascer, só nos leva a uma conclusão: já não podemos apreciar a Humanidade, mas temos ainda de nos comover com alguns dos seus singulares indivíduos.
A comédia deste livro está para lá da sátira (política, social, económica), é a comédia da cada vez mais trágica Humanidade. E essa, talvez não faça rir tantos assim!

Não podia acabar sem deixar uma nota de elevado apreço pela magnífica composição da capa.
O padrão em relevo que atravessa o salmão é um prazer de sentir na pele enquanto seguramos o livro aberto para o ler.
E mesmo antes de ler as primeiras palavras, já estava desejoso de ler o livro que possui tão atraente capa!


















A pesca do salmão no Iémen (Paul Torday)
Edições Asa
1ª edição - Agosto de 2009
288 páginas

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A escrita de um pensador

Kleist é um pensador. Um pensador de uma eloquência e de uma pertinência incontestáveis.
Isso não impede que seja um pensador com quem é possível identificarmo-nos e com quem é possível debatermos.
É um pensador que aponta sempre à evolução, à progressão de ideia para ideia até encontrar o sentido último do que começou a dizer.
Um dos seus textos, aliás, versa exactamente sobre isso mesmo, sobre a constituição das ideias à medida do discurso, de como estas se compõe e modificam perante as palavras e os sentidos inesperados que se tomam ao longo do discurso.
Por isso mesmo, por ser um pensador assim, é um pensador com as suas idiossincrasias, dualidades e erros.
Mas a essência do que ele diz vive para lá de quaisquer defeitos que queiramos apontar à composição do discurso.
A sua pertinência não seria maior se todos os seus textos fossem refinados a um ponto em que nenhum pequeno defeito lhes pudesse ser apontado, ao ponto em que a linguagem estivesse tão densamente reconstruída que fosse já impossível pensar as ideias do texto por ser preciso antes pensar o texto ele próprio.
E isso é mesmo o mais prazeiroso de tudo, o encontro com a inventividade literária com que Kleist escreve.
Seja sobre a forma de carta, de fábula, de oração religiosa ou de ficções construídas em nome de personagens em cuja pele faria mais sentido opinar como opina, Kleist constrói uma obra muito rica e interessante, cujo prazer rivaliza com a sua riqueza.
A fluidez das palavras, a qualidade destes textos acaba por melhor fazer afluir as ideias com que nos presenteia.
Nem a forma nem o conteúdo tentam ser a componente mais rica deste trabalho, antes a forma parece sempre a mais propícia a elucidar-nos sobre o tema em causa.
Tema esse que pode passar da estética à política, da arte à sociedade, da intelectualidade à natureza.
Nenhum tema parece contraditório ou simples para Kleist, porque é na forma como ele os trata que a sua coerência se revela.
Kleist reflecte sempre contra o pessimismo dominante, contra o erro instituído e contra o facilitismo generalizado.
Por isso ele precisa da vivacidade e da paixão da sua linguagem, para fazer vingar o seu discurso e as suas ideias, para obrigar a que as retamos e trabalhemos.
E consegue-o, sim, como o consegue!


















Sobre o teatro de marionetas e outros escritos (Heinrich von Kleist)
Antígona
1ª edição - Junho de 2009
160 páginas

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Num mau filme

Se houve tempos em que o Cinema adoptou a linguagem literária, agora o efeito parece cada vez mais invertido.
Encontro com o Medo evidencia isso mesmo, num género que se propicia demasiado a tal efeito, o thriller sobrenatural.
Encontro com o Medo é construído, de forma clara, em cenas.
Reconhece-se facilmente o mecanismo que coloca o texto muito a jeito de ser adaptado ao grande ecrã, montado e cortado para funcionar para um espectador.
Só que, à conta disso mesmo, temos cenas ora demasiado palavrosas - onde se reconhece de facto o efeito de câmara com que todas aquelas palavras inúteis seriam substituídas - ora demasiado crípticas - querendo agilizar uma determinada cena, acaba por não lhe dar o conteúdo certo para a fazer funcionar.
O problema adensa-se quando o leitor - pelo menos um leitor que tenha lido alguma BD das últimas décadas, que tenha visto alguma das séries de televisão que surgiram na descendência de Millennium ou um dos muitos filmes que Hollywood tem dado à luz com repetitiva cadência - se confronta com terreno muito batido, sem nada de distinguível.
O final - e foram precisas três tentativas para lá chegar - é de uma facilidade preguiçosa que se lança directamente à jugular de uma sequela, além de deixar a nú a pouca imaginação da escritora, que tentando ser original e obscura já revelou a verdade por detrás do verdadeiro vilão que ainda há-de atormentar a equipa de investigação com poderes psíquicos.
Não sei porque raio 6 milhões de americanos acabaram por comprar este livro. Afinal estamos numa sociedade altamente dependente da imagem e, nesse domínio, há exemplos muito melhores disponíveis na televisão quase todos os dias.
Encontro com o Medo até poderia funcionar nesse registo, mas escrito dá um mau filme.


















Encontro com o Medo (Kay Hooper)
Casa das Letras
1ª Edição - Maio de 2009
288 páginas