sexta-feira, 30 de abril de 2010

O homem pelo Homem

Há algo em A Ofensa que me remete para O Grande Ditador. As personagens centrais de ambas as obras perderam algo durante a Guerra e retornam ao mundo incautos, ignorantes da realidade que permanece.
Mas se em O Grande Ditador o barbeiro perdia a memória, aqui o que se perde são os sentidos.
O corpo, mais do que um invólucro, é o mecanismo pelo qual uma consciência apreende o mundo.
É esse mecanismo que se perde quando aquilo que ele tem de reproduzir num corpo só é a mais violenta dimensão humana.
O protagonista está decidido a ser único e independente, a ser ele próprio. Os que o rodeiam deixam-se diluir numa consciência colectiva - que se torna numa indiferença colectiva. Daí que eles nada sintam quando ele tudo sente. Daí que eles permaneçam incólumes quando ele abandona o mundo e se isola em si próprio.
Quando o Horror se produz, o alfaiate foge dele como pode. Sem nada sentir, a brutalidade deixa de o afectar. A memória sensória apaga-se e com ela a restante memória.
No mesmo momento perde também a capacidade de apreciar a beleza que o mundo guarda, mas como pode ele acreditar que há verdadeira beleza num mundo que permite tal atrocidade...
Se mesmo esta defesa insensível não chega, o homem só pode recorrer a um outro estratagema. A consciência está para lá dos limites do palpável e, por isso, a determinação de a apagar vence no preciso momento em que tudo o resto parece querer conspurcá-la.
Como o barbeiro, este alfaiate não admite um mundo como o que lhe constroem à força e pela força.
Um homem, um simples alfaite, sacrifica-se por completo, perde o corpo que o liga ao mundo, quando o Homem ofende o Homem.


















A Ofensa (Ricardo Menéndez Salmón)
Porto Editora
1ª edição - Março de 2009
128 páginas

O seu a seu dono

Don Peregrino é uma personagem com uma história singular que se estende nos anos. O romance que se lê é todo dele pela forma como se impõe. Ele é a personagem principal.
E, no entanto, não é a ele que se dedicam o maior número de páginas, mas antes a Jamilet, a personagem que servirá de ouvinte à história de Don Peregrino.
Ela precisa de existir como combustível dos eventos que levam Don Peregrino a uma catártica rememoriação do que foi a sua vida, mas não é uma iterlocutora, apenas um receptáculo.
Esse é o problema do livro, que esta personagem que não interessa, que não dá nome ao romance, tenha muito mais espaço no seu interior sem que a sua vida o justifique, nem pela sua dimensão a solo nem pela sua dimensão reflectida em Don Peregrino.
Ele é um velho homem com uma trágica história de amor a contar e com um pesado ressentimento a purgar.
Ela é uma jovem rapariga "defeituosa" que, inevitavelmente, verá o seu problema perder importância.
Todas as páginas em que temos de ler a história dela são páginas de irritação que connosco ficam, impancientando-nos ao atrasarem a história dele. Sobretudo porque ao concluirmos a leitura, percebemos que a história de vida dela não se transformou como verdadeiramente seria expectável pela ligação com a vida dele.
Don Peregrino tem menos tempo do "seu" romance do que deveria, portanto!


















Don Peregrino (Cecilia Samartin)
Vogais & Companhia
1ª edição - Fevereiro de 2010
300 páginas

domingo, 25 de abril de 2010

Pequena descoberta

Este é um pequeno livro de bolso de enorme utilidade para todos os que gostam de literatura e ainda mais para quem pretende manter um blog sobre literatura sem ter tido formação em Literatura.
A consulta deste livro prático torna-se muito importante então por servir como curso condensado que nos torna conscientes de características mais ou menos gerais comuns a vários autores de determinado período e, mais do que isso, nos serve também como um guia de títulos a descobrir.
Títulos que se irão descobrir pelo encontro de afinidades, de títulos que estão esquecidos ou que nunca seriam encontrados entre a imensa edição actual.
Este é um ponto de partida para reconhecer as limitações que temos.
Se um livro breve sobre a História da Literatura europeia nos deixa já conscientes das nossas falhas "culturais", então aquilo que ainda temos a ler para obtermos verdadeiro conhecimento do elevado grau que atingiu a Literatura em tantos momentos é tanto que percebemos a importância das escolhas que fazemos.
Ainda que nada deva ser automaticamente rejeitado, é provável que passemos a ter menos tolerância para muitos dos livros que agora encaramos.


















Os Grandes Movimentos Literários Europeus (Francis Claudon)
Publicações Europa-América
1ª edição - Março de 2010
144 páginas

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Perdidos

Um homem acorda de um acidente em que morreram a mulher e a filha, sem memória alguma desse evento.
O seu tormento é o maior tormento que alguém pode experimentar, maior que o desgosto, maior do que a culpa.
A sua falta de memória deixa-o na incerteza absoluta e, crente na sua culpa pela morte da família, para ele todos os cenários são possíveis, todos eles mais e mais violentos contra a sua própria consciência.
Ele não sofre pelo luto, antes pela incerteza de que luto deve fazer. Ele não sofre pela recriminação, antes pelo multiplicar de recriminações.
Os seus erros são sempre mais acentuados, a sua inutilidade sempre crescente.
A verdade é que, sem memória, ele não pode perdoar-se. Nem pode verdadeiramente culpar-se. Ele tem de assumir as duas mortes sem poder determinar para si mesmo o que tem a ver com elas. Não pode iniciar o processo de lidar com elas sem errar consigo mesmo.
O que dele lemos é o período da sua vida em que ele constrói a sua monstruosidade, não só pelos cenários que imagina para completar o espaço em branco da memória, mas também pelos actos que assume, sem contenção de espécie alguma, como se sendo já um monstro tivesse apenas de continuar a sê-lo.
Se nada pode fazer para lidar com o que foi e nada pode fazer para se definir sem essa parte essencial do que viveu, então não tem de responder perante a sua consciência e tudo se permite.
O leitor sentir-se-á perdido ao fechar o livro, sem poder garantir para si próprio que a história está completa, sem catárse mas com um contentamento indevido.
O leitor fica um momento perdido até que reencontra a simples verdade, que o romance é sobre o período de perda de cada um. Esta é a descrição daquilo a que se chega a partir do momento em que deixamos de ter ponto de partida, em que a ligação com o passado se rompe sem nos dar novo início.
Não se crê que haja retorno, mesmo que a vida tenha de continuar, será sempre assim, flutuando no vago presente, perdida entre a memória... perdida.





















O despertar do adormecido (Alistair Morgan)
Bizâncio
1ª edição - Fevereiro de 2010
224 páginas

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Um país à vista do amor

O Mundo Invisível é uma história de amor complicada mas assente numa credibilidade que conquista o leitor.
Sem exploração sentimental, sem noveletas, sem desconexão à essência do que há a dizer para proceder a uma qualquer manipulação do leitor.
Shamim Sarif explora as relações sem floreados ou exageros, descrevendo as dificuldades e impedimentos que as relações amorosas dignas de nota sempre tiveram e sempre terão na literatura.
Histórias de amor através das quais Shamim Sarif trata também da complexidade da realidade de uma África do Sul onde as raças traçavam uma rede complexa de desaprovação e subjugação.
Crescendo de forma discreta, esta história de amor entre duas mulheres muito distintas mexe com o tabu sexual, com a condição da mulher e com as imposições raciais.
Mexe num retrato complexo de um país onde a pertença à comunidade indiana cria mais atribulações a personagens dignas mas que parecem menorizadas, onde a existência de tantos erros cometidos contra aqueles que existem com uma cor de pele que não a "branca" transtorna a dignidade de todos os seres humanos, quer os que cometem os erros quer os que os sofrem.
No final aquilo que realmente se vê é que uma mulher presa numa tradição asfixiante acaba por se entregar não tanto a um amor mas à coragem que ele lhe proporciona e à emancipação que com ele reinvindica.
O pensamento de uma época é sempre contestado pelo sentimento mais natural e honesto, o amor.
Shamim Sarif, sendo argumentista, sabe também aproveitar o melhor da fluidez que essa escrita exige complementando-a com um talento para a descrição que coloca a escrita dela a um nível muito interessante.
Um amor turbulento escrito com ponderação e com uma repercussão informativa maior do que a da vida dos seus protagonistas, assim se resume este livro.


















O Mundo Invisível (Shamim Sarif)
Contraponto
1ª edição - Novembro de 2009
272 páginas

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Brinquedos diferentes

Brinca comigo! é um interessante conjunto de quatro contos que variam entre o Fantástico e a Ficção Científica e que fazem um retrato muito interessante das variedade, imaginação e talento que existe nestas áreas em Portugal.
Vou falar de cada um individualmente, pois merecem, capazes de sugerir muitas possibilidades e leituras em poucas páginas.

Brinca comigo! (João Barreiros) é um conto de FC onde os brinquedos ganharam uma espécie de consciência. Num mundo dominado e destruído por empresas, os brinquedos formam um grupo capaz de servir um objectivo comum sem se tornar evidente para os satélites que ainda vigiam o planeta com sede de destruição.
A facilidade com que Barreiros estabelece o cenário pós-apocalíptico sem se desviar um milímetro do foco que tem na Horda e nos seus mecanismos internos é notável, como é notável a percepção que se tem de como a consciência da Horda é falhada, servindo-se de um propósito quase impossível para mantê-la unida, procurando um último sentido para si mesma, mesmo que esse seja um sentido que terminará em auto-destruição.
Um retrato do destino vazio da civilização, não só capaz de se destruir a si mesma, mas também de se deixar seguir por qualquer ideologia implausível e vazia.

Um erro do Sol (David Soares) aborda o fantástico mais extraordinário fazendo-nos chegar lá do ponto de partida mais quotidiano, a disputa obsessiva da indústria dos brinquedos pela novidade que lhes trará o domínio comercial.
David Soares evidencia que o mundo corporativo vive de uma auto-fagia violenta por levar o seu representante à realidade mais primal de tal ideia.
O mundo corporativo leva-nos a todos a admirar e vibrar com o lixo - forma fabril de excreções, de certa forma - que produz. Horrorizarmo-nos com uma civilização que desfruta de tais prazeres sem censura moral ou física é uma injustiça com o nosso próprio meio de vida e, por isso mesmo, essencial a uma mudança.

A Boneca (João Ventura) é o menos interessantes dos contos, colocando uma boneca de Vodu a servir o seu propósito para lá do momento em que foi preparada.
A ideia não é particularmente distinta, esperando-se mais da sugestão de como uma boneca Vodu se pode esconder no seio da inocência dos brinquedos.
O propósito destrutivo mais feroz pode esconder-se no seio da maior inocência, mas o conto não segue verdadeiramente por essa via, como nem arrisca as sugestões - para muitos ainda chocantes, suponho - sobre as crianças que fazia O Laço Branco, um exemplo recente de um outro meio.

Não é o que ignoras o motivo da tua queda mas o que pensas saber (Luís Filipe Silva) é um outro conto de FC que traça uma genealogia com várias vertentes dentro do género e que não se entrega a facilitismos.
Pode ver-se nele tanto a capacidade como a inconsciência do ser humano de aproveitar qualquer material ou situação em seu benefício sem nunca reflectir nela por completo.
Pode ver-se nele como a consciência é a única forma de salvação que temos, ainda que tantas vezes façamos pouco uso dela.
Pode ver-se nele uma simples história que não pretende mais do que difundir o mistério de si mesma, de se permitir levantar questões de forma a permanecer com o leitor longamente.
Um conto versátil, intrigante e perfeitamente original.

Como espero que fique bem patente no que escrevi é que a relevância deste livro está na forma inteligente e inesperada como os autores abordam o tema do Brinquedo sem qualquer típica formatação, como sejam a da rememoriação dos tempos da infância.
A literatura é um tipo diferente de brinquedo, tanto para autores como para leitores, portanto não há porque qualquer um dos dois se contentar com brinquedos sem graça.


















Brinca Comigo! (David Soares, João Barreiros, João Ventura e Luís Filipe Silva)
Escrit’orio Editora
1ª edição - 2009
116 páginas

sábado, 10 de abril de 2010

Nem só para entreter se faz um livro

Não sei até que ponto devo levar a sério a advertência inicial do autor sobre este livro em que afirma categoricamente que esta ficção não procura reflectir sobre a realidade mas tão somente entreter o leitor, deixando claro que a imaginação só encontra (aqui) a realidade por mero acaso.
Não possuo conhecimentos de História para julgar tal afirmação e portanto apenas posso reflectir a minha própria ilusão interpretativa do que o autor aqui fez.
Assim sendo, A Tragédia da Rua do Arsenal, merece o reconhecimento de que entretem com facilidade, jogando com o drama romântico e com a conspiração contra o poder instituído.
Dom Carlos e o seu filho Dom Luís bem podem ser os protagonistas de uma história que une as conspirações em torno de JFK aos dramas de Shakespeare, sem exageros nem deambulações retorcidas.
A história que o autor constrói poderia ser real, aliás, poderá mesmo ser real. Se a sua imaginação se tiver encontrado, por acaso, com a realidade, não será um prémio injusto para quem ousou escrever uma pequena variação em torno de um importante acontecimento nacional sem acumular informações de forma a exibir a pesquisa ou sem levar a ficção por caminhos que deixassem de ser identificáveis com aquilo que se sabe do período histórico que aborda.
Voltando agora ao que se falava logo no início do texto, apesar de todos os avisos em contrário por parte do autor, o leitor não deixa de reparar numa certa inevitabilidade analítica por parte do autor, nem que seja na forma como dispõe os personagens no seio dos eventos.
A crítica à política da época - e, porque não, à da nossa própria época - não deixa de existir, mesmo que seja apenas o leitor quem lê mais do que deveria.
Isso não é mau, pelo contrário, é saudável, um entretenimento de época que, por inevitabilidade de cenário histórico, tem vocação de reflexão.
Duplo ganho para o leitor!


















A Tragédia da Rua do Arsenal (Jean Pailler)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Janeiro de 2010
176 páginas

domingo, 4 de abril de 2010

Mitos modernizados

O mito do vampiro não deixa de ser um mito profundamente carnal, cuja representação da penetração dos dentes na pele e respectivo sangramento se pode associar ao desvirginar sexual das mulheres.
De certa forma, Charlaine Harris está apenas a actualizar essa representação carnal para uma geração que, mais de 100 anos depois de Bram Stoker, tem muito menos pudicícia ou necessidade para um innuendo. Uma dentada na veia do interior da perna é muito mais explícita do que no pescoço e, nem por isso, os leitores parecem considerar que estão mais próximos de um erotismo tornado evidente.
Além desse, ela também trata de actualizar outros mitos, do lobisomem às bruxas, sendo evidente que lhes dá um carimbo mais consonante com o entendimento moderno de como estes grupos se inseririam no mundo.
Aliás, mais ainda, ela adapta os mitos a uma tradição profundamente enraízada no imaginário profundamente americano, profundamente sulista mesmo. Para uma sociedade que tem absorvido essa cultura por todas as formas de entretenimento, é quase reconfortante esta releitura em forma de entretenimento.
Será justo admitir que o público primário da saga será sempre o feminino, dado que a personagem central é uma rapariga a ganhar sistematicamente independência e força contra os mais inusitados seres sobrenaturais que tentam tomar conta da sua vida como bem lhes dá jeito.
O único problema de ler dois livros de seguida é notar-se perfeitamente a sistemática repetição de informações. Compreende-se qua assim uma pessoa possa iniciar a leitura em qualquer um dos volumes sem grandes problemas para compreender o cenário global que a autora montou.


















Clube de Sangue (Charlaine Harris)
Saída de Emergência
1ª edição - Outubro de 2009
236 páginas




















Sangue Oculto (Charlaine Harris)
Saída de Emergência
1ª edição - Janeiro de 2010
272 páginas