sábado, 26 de dezembro de 2009

Identidade

Budapeste é um caso de identidade.
José Costa, um "negro" literário de puro génio que domina a sua Língua e produz todos os textos de relevância no Brasil, tem já os seus próprios "negros", produzindo o que deveria ser o fruto da sua imaginação.
Como acto final, José Costa produz o bestseller do ano e escapa para o país cuja Língua o fascina ao ponto de acabar por conquistá-la e escrever um poema aclamado.
José Costa ganha uma nova identidade, mas acima de tudo uma nova vida longe da hermética escrita "para os outros". O que ele tem agora a escrever é para si mesmo, para a sua riqueza.
No Brasil ele era um génio habitando um pequeno escritório, solicitado por muitos e imitado por outros. Não tinha nada a ser reconhecido como seu, nem sequer a sua própria vida à deriva.
Em Budapeste ele tem algo a ganhar, um genuíno sentido de aprendizagem e conquista. Ele poderá falhar ao longo do processo, mas falhar significa mais do que acertar mecanicamente.
Em Budapeste, onde ninguém lhe pede nada, ele torna-se num poeta por pura generosidade, mas no Brasil até já os falsos autores tomam por seus os supostos erros da escrita.
Em Budapeste ele começa a viver, arrisca-se a querer que lhe reconheçam o auxílio, enquanto no Brasil o único momento em que revelou a sua autoria resultou no fim da vida que levava.
Em Budapeste ele tem Kriska, a mulher que lhe deu uma nova Língua e, por isso mesmo, lhe deu um espaço para habitar, lhe deu uma nação, lhe deu uma identidade. Para que quereria ele voltar ao Rio de Janeiro, onde nem sequer já tem a mulher a quem deu um filho e que parece não querer mais nada dele mesmo quando é o bestseller do marido que lhe enche o coração?
No Brasil ele tinha tudo, em Budapeste ele começa do zero, sem sequer uma voz. Mas, no final, ele ganha uma vida em Budapeste, uma vida que ele viveu mas que também criaram por ele.
Ele acedeu a ser Zsoze Kosta, tanto o nome que os húngaros criaram para ele, como a vida que um "negro" escreveu para ele.
Em Budapeste ele chega para que lhe entreguem uma vida, depois de ter criado a vida de outros. Mas a vida que ele vive, mesmo sendo retirada de um guião escrito por outras mãos, é mais real do que as vidas que não viveu mas teve de criar anteriormente.
A identidade não tem de ser pura ou lógica, não tem de nascer como novidade absoluta para ele e simultaneamente para todos os outros. Tem, apenas, de ser reconhecida como fonte própria, recriação quando não criação, reconhecimento de algo a que ele pertence e que, mais ou menos decidicamente, lhe pertence.
Zsoze Kosta é mais real do que José Costa, ainda que seja uma criação do segundo. José Costa aprendeu a ser Zsoze Kosta para descobrir que José Costa era a sua verdadeira invenção.
Identidade é, afinal, o reconhecimento de algo tão genuíno que, mesmo sendo trabalhado, é inegavelmente o direito singular de alguém.
Budapeste é, afinal, a identidade de um autor, um dono da Língua e da sua utilização, consciente da sua versatilidade e do seu poder.
Chico Buarque já dominava a dança da Língua nas suas canções, domina-a também na composição mais exigente de um romance que carrega uma verdadeira tradição literária.
A Língua é de todos, mas a alguns assenta melhor. São esses que lhe criam a sua identidade.


















Budapeste (Chico Buarque)
Leya/Bis
2ª edição - Março de 2009
144 páginas

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Lixado

Bunny Munro vive numa escalada de sexo e álcool com tempo contado, como ele próprio anuncia logo a abrir, "Estou lixado".
Mas este não é um prenúncio. Ele sente que a morte se aproxima, sim, mas o "lixado" já é uma condição que ele finalmente compreendeu.
Compreendeu mas não consegue evitar, aquela demente fixação por vaginas e o grau de destruição para o qual consegue arrastar-se a si próprio.
Nem mesmo a pequena âncora de sanidade e admiração que segue com ele no banco do passageiro serve de grande coisa.
Depois do suicídio da mulher que ele tanto ignorava, o filho bem lhe defende todos os vícios com um certo carinho inocente, mas Bunny parece determinado em tornar o filho numa versão sua.
Uma versão de si, que poderá bem ser uma versão do seu pai. Bunny Sénior, Bunny e Bunny Jr. Cadeia infindável, condenação ou castigo?
Não se tente resistir pela lucidez no interior desta viagem, não vale a pena porque o devaneio se impõe à realidade de Bunny, iludindo o próprio leitor até que já esteja bem afundado nele. Não se passa de um ao outro como quem cruza a fronteira, antes como quem se perde num matagal.
No final, quando finalmente chega a anunciada morte de Bunny Munro, estamos quase tão à deriva como o protagonista.
Fica-nos mais do que o humor negro da misoginia tresloucada de Bunny, fica-nos também a emoção bruta que a misoginia quer cobrir como um manto perpétuo.
E afinal não paramos de nos interrogar, a morte de Bunny foi a prova do resto da humanidade que ele tinha ou o único resultado possível para tudo aquilo a que ele se foi sujeitando, foi o único acto possível para com o seu filho ou o rebentar de toda a carga emocional que o seu pai lhe causa, foi sacrifício ou loucura?
Eis então a vida possível de Bunny Munro, um espectáculo com tempo contado. Sem bilhete de entrada mas com alto preço no final!


















A morte de Bunny Munro (Nick Cave)
Alfaguara / Editora Objectiva
2ª edição - Novembro de 2009
296 páginas

sábado, 19 de dezembro de 2009

Um prémio ganho

Marçal Aquino recorre a uma citação de Sam Peckinpah para dar mote ao seu livro, e dificilmente haveria autor mais indicado.
As personagens de Aquino são homens que vivem à flor da bala mas que guardam uma melancolia pela possibilidade de uma vida onde eram menos solitários, senão mesmo felizes - se alguma vez se aperceberiam de tal sensação.
Eles estão para lá da consciência dos seus actos, mas nunca para lá da consciência de si mesmos.
Se vivem embrutecidos e insensibilizados para com aquilo que fazem, continuam sensíveis a si mesmos, mesmo que seja por mero egoísmo.
Claro que as duas vidas que levam acabam por colidir e tudo rebenta das emoções que eles parecem não saber sentir, se calhar nem sequer conheciam.
Então o calculismo cínico ou a paixão desabrida revelam-se extremos que nunca se poderão complementar. O resultado é apenas a solidão e a mulher que poderão ter é a sua arma.
Bem, nem todas as personagens são assim. Há também os homens que atravessam o mundo mentindo, fodendo e matanto sem mais.
Eles deixam um rasto de corpos, uns vivos e outros mortos, tão vazios como o seu próprio coração.
Estes podem parecer personagens secundários, esquecíveis. Mas eles são essenciais para que os restantes consigam medir-se a si próprios.

Não são só personagens na vertigem da violência humana que fazem esta obra memorável.
Marçal Aquino tem a arte de construir um texto que torna a Língua Portuguesa numa delícia saborosa.
As palavras parecem brotar na linguagem das personagens com toda a naturalidade, pérolas lançadas no momento correcto.
É daqueles casos em que a leitura deixa de ser silenciosa e começa a ressoar dentro da nossa cabeça, repetida uma e outra vez até que lhe encontremos o sotaque, a entoação e o ritmo preciso.
Como se nos fosse dada a hipótese de descobrir a música para uma letra que já está escrita.


















Cabeça a Prémio (Marçal Aquino)
Quetzal
Sem indicação da edição - Março de 2009
158 páginas

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

De coração exposto

O coração não pode ser controlado, nem sequer quando depende da precisão de um relógio para que o seu portador possa viver.
O coração é indomável, fonte de dor e de desespero, fonte de desejo e de tormento.
O coração que bate descompassadamente atemoriza mas torna tudo mais ardente.
Por culpa desse coração, incapaz de não revelar a verdade que tem dentro por culpa do bater do relógio que tem por fora, o nosso protagonista parte em busca de uma mulher.
Para essa busca parte com Georges Méliès, ele próprio determinado a oferecer à mulher que ama a viagem até à Lua que o leitor conhecerá bem.
Quando a busca finalmente termina, um ramo de óculos toma o lugar das flores como declaração à mulher amada, ela que transporta uma voz de anjo mas embate contra tudo o que está no seu caminho.
Eles serão figuras de estranhos espectáculos e amar-se-ão nos fundo de um comboio-fantasma.
Assim é a trupe de estranhos seres, mágicos da realidade, desalinhados da lógica, tão magníficos, todos eles vividos em torno do tal coração.
Um coração que envolto no seu mecanismo não conseguia tornar-se mais sólido, mas colocava o coração ainda mais exposto.
Afinal a precaução é inimiga da paixão e a paixão é inimiga da precisão. Se um coração quer bater veloz e sem direcção, então o tempo será forçado a parar, o que para alguém que depende dos ponteiros não é boa notícia.
E Mathias Malzieu assim escreveu um pequeno encanto, verdadeiramente saído do coração, com vontade de conter uma outra hipótese de realidade, aquela onde tudo é ainda possível, um passe de mágica capaz de falhar.
Como ao incrustar um relógio num coração, a salvação de um corpo e a ameaça de toda uma vida.
Só há um apontamento a fazer a Malzieu, que algumas das suas metáforas tirem o leitor do registo mágico e temporalmente assente onde assenta a sua história.
Para um homem a viver no final do século XIX, Charles Bronson não é senão um nome sem sentido e o helicóptero, mesmo tendo surgido ainda na época, dificilmente estaria já divulgado.
Felizmente são poucas estas ocorrências e o leitor pode permanecer encantado.


















A mecânica do coração (Mathias Malzieu)
Contraponto
1ª edição - Outubro de 2009
144 páginas

sábado, 12 de dezembro de 2009

Dar força à palavra

Vogam predadores no oceano da memória. Num mundo em que se surfa na informação, nada será mais preciso do que um tubarão para demonstrar como ela pode ser consumida e caçada.
Como muitos daqueles que a consomem podem nunca acabar por produzir sequer uma infíma parte dela.
Mas aqui os rastos da memória são reais e o desgoverno de uma personagem que deixa um rasto mas não o consegue ler é a essência da reflexão que esta obra cria.
Muitas vezes o conhecimento adquirido apenas nos afasta de nós mesmos. A criação - se quiserem chamem-lhe compreensão - de um mundo em torno de nós obriga a que nos recriemos. E se nos recriamos como poderemos alguma vez sermos apenas nós mesmos?
No caso da personagem central, isso está apenas no ponto em que é um facto real, em que a sua primeira encarnação envia informação à segunda, pois esta já nada sabe, realmente, de si mesma.

A imaginação de Steven Hall é um achado e não é estranho que ele escolha as suas epígrafes de Borges ou Calvino, dois autores que pela sua imaginação marcaram tanto a literatura.
O que noutras mãos seria uma distopia é nas dele um hino ao próprio labor da palavra bem estruturado numa estranha e sedutora aventura.
Ele torna as palavras palpáveis no seu mundo. Faz delas tijolos, armas, escudos.
A palavra, a frase, o texto, os livros... Todos são úteis de um modo concreto, seja o som da palavra dita ou a estrutura dos livros empilhados, tudo se concretiza numa estrutura cuja informação que contem lhe dá uma força para lá da que tem fisicamente.
Concreto o suficiente para terem de ser transformadas, pela força da imaginação, naquilo que representam se tal for necessário.
Enquanto Steven Hall demonstra o poder das palavras no interior da história, também o reproduz na sua forma.
Memória de Tubarão escapa a uma limitação formal do que é, como se apresenta ou para que serve a palavra num romance.
Tinha de ser assim, não poderíamos ficar presos a um modelo clássico de estrutura num livro que quer fazer viver a palavra, que lhe quer dar o poder de ser transformadora e transformável.
Por isso a páginas tantas somos perseguidos por um tubarão feito de palavras avulsas. A palavra como constituição da imagem que iríamos criar pela leitura da história. A imagem como reconversão das palavras que já conhecíamos nesse momento.
E embora nunca deixe de ser, em absoluto, uma obra baseada na palavra, é uma obra que extravasa a própria literatura.
Numa sociedade tão imagética, a palavra tem ainda toda a força que lhe quisermos dar, desde que assim o imaginemos, como Steven Hall afinal!



















Memória de Tubarão (Steven Hall)
Editorial Presença
1ª edição - Maio de 2009
436 páginas

sábado, 5 de dezembro de 2009

Alma velha em corpo novo

O Exílio dos Anjos é uma aventura mas poderia perfeitamente não ser, pois por detrás da história que se conta há algo que é o fundamento de muita da criação humana desde sempre, a vida para lá da morte, a busca da perpetuação de nós mesmos e o amor.
Há no livro uma possibilidade de estarmos perante a sobrevivência da alma e da sua reencarnação num processo que dois cientistas desenvolveram para poderem escapar a uma vida de perseguição. Escape através da própria morte, claro.
Há aqui bons e maus, os que procuram obter o conhecimento de como controlar a mente e fazer perdurar a alma com fins militares e os que querem tornar esse conhecimentos público e útil.
Mas também os havia entre os alquimistas, uns que procuravam a Pedra Filosofal como fonte de dinheiro fácil - e que na busca a simulavam para enganar os restantes - e uns poucos que a procuravam como a fonte de eternidade e conhecimento que a Humanidade precisava.
Mesmo não sendo um livro mais do que aventuroso, leve na forma como se dedica aos problemas levantados pela migração de almas que os cientistas foram capazes de fazer ou como tenta explicar as possibilidades e implicações do processo, não deixa de semear
Esses problemas que valeria a pena discutir, identitários, religiosos e morais, não podem fazer base num livro que se quer ritmado e adaptável ao grande ecrã.
Só que, ao fim e ao cabo, talvez estejamos perante uma forma mais apontada a um público actual de contar o mesmo velho mito. Estripássemo-lo dos seus vilões e heróis, da sua aventura cinematográfica e teríamos duas almas em busca do reencontro para lá da morte e a procura de todos da prova que esta não esconde o desconhecido.

Impossível de não assinalar, infelizmente, é o facto de o livro ter ficado um pouco maltrado com gralhas que não parecem mais do que alterações da tradução do livro que, pelo caminho, deixaram palavras a mais em sítios indevidos.


















O Exílio dos Anjos (Gilles Legardinier)
Publicações Europa-América
1ª edição - Setembro de 2009
312 páginas