domingo, 30 de junho de 2013

Sob a máscara do herói, a Literatura

Fantomas Contra os Vampiros Multinacionais é um livro de intervenção ideológica, pelo que se pode dizer que ele é, em certa medida, falhado.
Falhado porque a sua validade perante o mundo de agora continua - se não terá mesmo aumentado - como perante o mundo que, em 1975, o Tribunal Russell II (em que Julio Cortázar participou) analisava.
Claro que, para o leitor, isso permite-lhe continuar a encontrar um desafio intelectual no que está a ler, além daquele proporcionado pelo extraordinário formato assumido por Cortázar.
Trata-se de uma novela infiltrada pelas páginas de uma banda desenhada que está no coração da sua narrativa. Uma banda desenhada que, por sua vez, vai parar às mãos de Júlio Cortázar que é autor e personagem.
Quando ele compra uma revista de banda desenhada não imagina que esta falará com e sobre ele a propósito da própria experiência que está a viver e narrar.
A partir desse momento é impossível desenovelar realidade e ficção, narrativa e banda desenhada, autor e personagem. São todos utensílios essenciais à divulgação urgente mas cativante das conclusões técnicas dos relatórios desenvolvidos pelo grupo de trabalho que reflectira sobre as necessidade prementes e os dados históricos mais violentos da América Latina.
Sendo próprio de um autor de elevada capacidade literária, o seu encontro com a banda desenhada tem o dom da elevação do material de entretenimento barato pela importância que esta - e o seu protagonista mascarado - assume lado a lado com a heroicidade dos escritores-protagonistas que se juntam a Julio: Susan Sontag, Alberto Moravia e Octavio Paz.
Os quatro escritores estão ao lado do herói de aventuras defendendo a vida da página impressa, pois até Fantomas é um herói culto como a banda desenhada é uma forma primeira de Cultura para muitos leitores - e uma forma contínua para muitos outros.
A aventura - um dos símbolos máximos da imaginação - é a arma maior contra o tal vampirismo multinacional: um capitalismo canibal que quer desprover as pessoas do conhecimento e da memória para que sejam autómatos mais eficazes.
(Em jeito de aviso, diga-se que tendo o livro tem um manifesto teor esquerdista, não creio que qualquer leitor com outras tendências ideológicas se possa sentir mal com a guerrilha da independência autoral contra a uniformização funcional - que neste caso leva, então, o nome de capitalismo.)
Esta aventura em particular é contra o desaparecimento de livros e a destruição de bibliotecas, num fenómeno com algo de sobrenatural e muito de intencional.
Fantomas combate o fenómeno a solo e pela força enquanto os escritores - os pensadores, em geral, se pensarmos que o livro fala sobre o grupo do Tribunal Russell II onde não estavam exclusivamente escritores - combatem em grupo e pela força da criação, mesmo tortuosa ou acidental.
Julio Cortázar acaba por querer dizer que toda a criação - todo o formato, todo o suporte, toda a forma - pode ser a base
Fazendo intervir por entre a prosa gravuras e fotografias que acabam por ser elementos ilustrativos da narrativa com um sentido crítico - e um efeito cómico - que desafia ainda mais o entendimento restrito do que é a combinação de texto e imagem.
Porque, no final, além da importância da arte de intervenção (que chega a citar Che) aqui criada, creio que um dos fenómenos mais importantes é também esse elogio da banda desenhada de publicação barata e de produção industrial que, afinal de contas, teve uma importância vital na formação do homem e do escritor e se constituía, também, como uma forma de combate às ditaduras que o Tribunal Russell II criticava.
Uma obra que concilia banda desenhada e "grande arte" literária, que combina heróis vendidos nas bancas com escritores preservados em bibliotecas e que funde entretenimento ousado e informação técnica, mesmo que seja menor entre as várias do autor, acaba por ser maior no contexto da cidadania literata.
Esperemos que um dia destes os seus receios sobre a globalização deixem de ser matéria (sempre) actual e se possa ler o livro só pelo prazer da imaginação que envolveu. Sinal de que este combate de Fantomas já estava vencido.


Fantomas Contra os Vampiros Multinacionais (Julio Cortázar)
Editorial Teorema
Sem indicação da edição - Maio de 2003
100 páginas

sexta-feira, 28 de junho de 2013

O cronista que escrevia "Demais!"

Quando as crónicas de Luís Fernando Veríssimo eram publicadas na revista Actual, deixava a página dele para o final, terminando o avolumar de notícias, destaques e opiniões com aquela sua forma de falar da nossa realidade como se inventasse um universo paralelo mais absurdo.
Não foi receio que não dei o salto para um dos seus romances, apenas aquela infeliz necessidade de gerir prioridades. E como a escrita dele me chegava semana a semana, tudo estava bem.
Só no início do mês que agora se aproxima do fim é que voltei a Luís Fernando Veríssimo, encontrando um dos seus romances - aparentemente o único que ele decidiu escrever por vontade própria e não por conta de uma encomenda - num alfarrabista.
O livro, profundamente desvalorizado desde a sua publicação em 2009 (os 5€ marcados a lápis haviam entretanto sido riscados e reduzidos a 3€), merecia uma segunda vida e exigia que eu tomasse, finalmente, a iniciativa tantas vezes adiada.
Algum dia ainda teremos de começar a pensar em quantos novos livros precisamos de ver editados quando deixámos tantos por ler ao longo destes anos todos.
Não só tantos, mas tão bons como este é, um aprimorado exercício de Literatura e um aprimorado exercício de crítica ao mundo literário.
A história é um fresco do Brasil profundo, de vilas esquecidas à mercê da lei dos que têm dinheiro, na forma de uma intriga de espionagem como Le Carré as faz.
Um leitor de manuscritos para edição decide infiltrar os seus agentes - os companheiros de bebedeiras e de tertúlias literárias à base de boutades - numa vila do interior do Brasil para encontrar (e resgatar) Ariadne.
Ariadne é a autora - e sofredora, pensa ele - do relato na primeira pessoa que ele não consegue deitar ao lixo como faz com todos os outros (à segunda-feira) apesar dos seus erros ortográficos.
Forma-se nele, à conta de uma vibrante incompetência com alguns rasgos de génio literário, um amor nascido do efeito das palavras na imaginação dele.
Este homem torna-se um tolo, inebriado pelo "amor à primeira leitura" - o texto vai chegando capítulo a capítulo, fotocopiado e enviado à socapa do marido dominador de Ariadne - com a distância da incompletude imaginada pelo meio.
O seu sentido de ferocidade crítica e indiferente é posto de lado a tal ponto que convence até o editor a adiantar dinheiro para ir à procura do final daquele livro para uma editora cujo único sucesso de vendas é um livro de horóscopos.
A partir daí a imaginação do autor só aumenta os detalhes e as coincidências que vão envolver todas as personagens em enredos temerariamente adiando falhanços mas proporcionando páginas fantasiosas de enorme qualidade.
Para fazer a paródia de um género - e de um país e de um meio cultural - é preciso conhecê-lo e amá-lo profundamente, coisa que o autor demonstra cabalmente.
Mas só com o grau de inventividade de Veríssimo é que pode o texto assim feito passar de um divertido embuste a uma obra que se sustenta a si própria contra as demais, no que acaba por ser um género próprio e irreverente.
Sobretudo à conta de um trabalho de manipulação da Língua Portuguesa por a usar de forma a envolver o leitor na sua sonoridade e ritmo.
Um desrespeito pela matéria-prima do escritor que permite a Veríssimo escrever como quem está a moldar as palavras até ter a leveza da fala do Brasil que conheceu a gramática para a poder agilizar quotidianamente.
Isto faz com que Veríssimo seja, ele próprio, o infiltrado do mundo literário. Um cronista a escrever um romance, um humorista a fazer um livro de género e um erudito a fazer a paródia do meio literário.
Está por dentro
Afinal o seu protagonista abre o livro com a confissão que de toda uma vida mal vivida: Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer.
A crítica ao mundo literário é generalizada, indo dos editores aos leitores, dos intelectuais ao grande público e dos cínicos comerciais aos ingénuos puristas. Só que é feita dentro de um livro tão bom que os visados não lhe resistem e exaltam-no.
O maior do humorista é fazer o público ler a sua própria desgraça e rir-se. O maior feito do escritor é tornar isso numa grande obra.
Veríssimo é tanto um como outro e Os Espiões não é um livro para andar tanto tempo esquecido nem ser vendido ao desbarato!


Os Espiões (Luís Fernando Veríssimo)
Dom Quixote
1ª edição - Novembro de 2009
176 páginas

sábado, 22 de junho de 2013

Berlim, cidade trágica

Adeus a Berlim tem sobre Mister Norris Muda de Comboio a vantagem de o ponto de vista objectivo - tanto quanto possível - ser usado numa vertente que parte sempre de si mesmo.
O livro é constituído somente por fracções de diários e por relatos dos tempos que passa com determinada pessoa ou família.
Sem uma estrutura verdadeira mas com uma regulação cronológica dos períodos passados em Berlim, tornando a sua presença na cidade o fio possível para uma visão dos seus habitantes - e habitantes-tipo - e, com isso da cidade ela própria.
Uma cidade aqui, muito mais acentuadamente na fronteira entre os seus tempos de Cidade do Pecado e de Capital da Tirania.
Por um lado, uma cidade onde os comportamentos orgiásticos ainda são mantidos pelos que podem e pelos que apenas o fingem poder.
Onde a indiferença e a devassa continuam a reger a vontade dos que chamam a si o estatuto de "artista" ou "intelectual", mesmo que seja apenas para se integrarem nesse meio prazeres ilimitados.
Como a famosa personagem Sally Bowles, uma actriz à procura de uma oportunidade que acabará burlada mas feliz pela sua tolice. Se o dinheiro não abundava também não valia a pena tomar precauções em demasia: havia que perdê-lo em nome do pagamento de mais um qualquer prazer, até esse de ser levada pela certa.
Por outro lado, uma cidade em que a pobreza continua a alastrar encoberta somente por um silêncio envergonhado.
Uma pobreza que de tanto privar as pessoas, abre espaço para que elas alberguem uma qualquer ideologia. Aquela que estiver, num dado momento, por de cima, que melhor prometer contrariar os tempos difíceis.
Por isso é tão natural que a senhora Landauer vote no Partido Nacional Socialista depois de, pouco tempo antes, ter votado no Partido Comunista.
A velha Berlim tenta persistir enquanto a nova Berlim a censura cada vez mais. Mas a abertura a todos tipos de sexualidade e a sua enorme disponibilidade tornavam difícil
Não admiraria depois que Hitler tencionasse deitar abaixo esse antro de pecado para sobre as suas ruínas construir a cidade modelo do seu império.
O narrador convive mal com ambas as versões desta Berlim. Um homem ainda mais perdido no coração de uma cidade sem uma identidade.
A facilidade com que Sally Bowles lhe fala de sexo deixa-o tão desconfortável quanto a familiaridade com que os Landauer o acolhem em sua casa e lhe servem as suas melhores refeições (mesmo se continuamente se desculpam por serem tão comuns).
Há ali uma transmissão do sentimento que os estrangeiros desenvolveram para com aquela cidade, não conseguindo compreendê-la, talvez aceitando-a - podemos pensa na aceitação da sua magnífica produção cinematográfica, por exemplo - mas nunca a integrando na sua própria visão
Isherwood faz uma leitura do Presente e alguma interpolação do Futuro próximo através do único lugar em toda a Alemanha que poderia resistir-lhe.
O livro (e depois o filme, por acréscimo) ajudou a fazer perdurar o mito daquela cidade naquele momento - um paraíso de pecados que terá tido poucas cidades que com ela rivalizassem, mas também o motivo de origem de uma potencial e violenta imposição política.
Isherwood ajudou ao mito pela maneira como deixa as críticas e os avisos de fora da escrita mas podendo ser facilmente lidas na sua deambulação de estrangeiro no coração de Berlim.
Passada a premência da publicação original, ficou o retrato pouco sadio (sobretudo tendo conhecimento do que viria depois de 1932) mas demasiado tentador para não ser relido.
Tal como a própria cidade, o seu díptico berlinense fala-nos da duas facetas de uma cidade perdida para o futuro a partir do momento em que se viu perdida na sua própria amoralidade.
Curiosamente, esta mesmo com a sua estrutura aparentemente fracturada, consegue ser muito mais intensa e aprisionante para o leitor.
Creio que nas décadas de 1920 e 1930, Berlim foi realmente mais trágica do que caricata. Mais Sally Bowles do que Mister Norris.


Adeus a Berlim (Christopher Isherwood)
Quetzal Editores
1ª edição - Maio de 2011
264 páginas

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Berlim, cidade cómica

William Bradshaw é o narrador do livro. Um personagem que nunca se envolve com aquilo que vai contando.
Amigo de Mister Norris e habitante de Berlim, sem que se entenda facilmente o porquê de qualquer um desses estados de existência.
A forma como descreve Norris é realista ao ponto da indelicadeza. A avalização que faz dos habitantes da cidade é um julgamento social e político.
Não chega, sequer, a aproximar-se de uma relação de amor-ódio com Norris ou Berlim. William Bradshaw está ali por se ter deixado arrastar por um misto de mórbida curiosidade e inércia indiferente. E se o narra de forma distanciada é porque crê que consegue evitar integrar-se em tão caricato espectáculo mesmo sendo um participante relativamente próximo.
Esta descrição de Bradshaw aproxima-o dos tempos que vai descrevendo mas que não chegar a viver. A deambulação acrítica entre crenças, partidos, negócios, convívios e personagens é a mesma que afectava a Alemanha de meados dos anos 1930.
A Alemanha era levada por promessas falsas e a aparência de sucesso, querendo acreditar em fosse o que fosse porque não havia mais nada com que se ocupar. Bradshaw faz o mesmo na sua amizade com Norris, tal como o faz o Duque.
Só que há uma consequência na frieza do narrador de Mister Norris Muda de Comboio, uma transformação do olhar clínico em olhar crítico.
Sendo tão obviamente directo, o narrador está a caracterizar os outros pelo embaraço que lhe causam, no desapego que lhes guarda.
Norris torna-se na caricatura de um sistema de vida alcançado no limbo que Berlim vivia entre os seus anos pecaminosos e austeros.
Norris revela-se uma figurinha da comédia política, grandíloquo na pequenez da sua noção da realidade. As suas convicções estão sempre alinhadas com o dinheiro e os seus actos sempre prontos a terminarem em desastre.
O seu papel de destacado orador no Partido Comunista é mais um dos seus negócios, como o é, depois, a espionagem de informações inúteis. Negócios sempre falhados que o tornam no mais aristocrático dos que não têm onde cair morto.
Norris encabeça a peça de teatro cómico e real em que se tornara Berlim.
Por essa mesma constatação, e para que Mister Norris Muda de Comboio fosse totalmente satisfatório, Isherwood teria de superar a falta de uma mais aturada construção da ficção.
Além do nome do narrador (o nome completo do autor é Christopher William Bradshaw Isherwood), também os episódios do livro terão sido directamente retirados do que viveu o autor, estando assim a realidade a servir de matéria ao escritor sem que este pareça ter encontrado as ferramentas certas para a retrabalhar.
Quando Norris se ausenta de Berlim, além de faltar o sujeito central à comédia, a ligação de Bradshaw aos restantes personagens não tem um impulsionador que lhe permita descrever a realidade.
Norris é o exemplo e o resultado, por isso as peripécias de Bradshaw - ser tradutor para o Partido Comunista ou ir tentar conviver com o Duque - são descritos como momentos de embaraço social e desinteresse pessoal.
O corolário disto é que Isherwood (ou Bradshaw) conseguiu encontrar a figura que conseguia representar o centro de massa da vida de Berlim da época, apenas não a conseguiu seguir até onde era necessário.
O seu olhar distanciado talvez o tenha impedido de penetrar nos muitos episódios que Norris se decidia ou não a relatar em segunda mão e que, por isso, não se enquandram nessa visão directa e dura do narrador.


Mister Norris Muda de Comboio (Christopher Isherwood)
Quetzal Editores
1ª edição - Setembro de 2012
248 páginas

quarta-feira, 19 de junho de 2013

No limbo da Britanidade

Eis uma história feita de exploração histórica, mistérios de estilo gótico, descrição do trabalho policial, melodrama romântico, segredos familiares, obscurantismo social de pequena aldeia e procedimentos de tribunal.
Como os melhores dos livros, não se trata de um livro de género, vendável de acordo com uma etiqueta, mas um livro que usa todas as realidades e ferramentas necessárias para criar um retrato intensivo, funcional e credível das suas personagens e dos acontecimentos em que elas se envolvem.
Resumindo, um estudo do comportamento humano perante uma situação excepcional, da primeira morte até à resolução final com todos os momentos de permeio explorados.
Claro que, enquadrando a história na forma (lata) de policial, o autor – como vários outros têm feito – encontra um processo chamativo para remexer na noção da História tal como existe hoje em relação a um qualquer momento específico.
Trata-se de fazer uma revisão séria da consciência dos muitos comportamentos que ficaram por confessar numa forma que enganadoramente chamará os desejosos de mero entretenimento.
Um procedimento policial num tempo – e numa geografia – onde as limitações tecnológicas eram acentuadas e que os julgamentos morais (e populares) tinham consequências ainda mais ferozes do que hoje, o ónus coloca-se todo no trabalho humano.
Os erros humanos não dão apenas conta do envolvimento comunitário que há entre os investigadores e os suspeitos, ganham relevo para a investigação, torna-se significativo para o caminho que esta levará.
Essa dimensão humana vem tornar o livro num objecto de leitura universal e intemporal, apesar da limitação cénica e temporal.
Mais do que a vida das personagens, o livro trata de explorar um momento na vida Inglesa, destacando os traços da tradição que se mantinha viva no seio das pequenas comunidades britânicas.
Simon Tolkien vinca o espírito da época através do trabalho de escrita que recorre ao adensamento do ambiente: detalhado mas encerrado a noções do exterior. Uma vila inglesa cristalizada, arrastando consigo as memórias assombradas dos séculos passados e claustrofobicamente recusando que o resto do mundo ali surgisse.
Vinca-se um sentimento latente de Britanidade no que ela tem de melhor. Da severidade dos pequenos elementos (Vitorianos, diria-se) aos grandes ambientes de comunidade auto-suficiente.
Faz tudo isto para poder perturbar essa placidez prolongada à força do silêncio de décadas.
Uma placidez nascida de uma inconsciência readquirida perante o mundo, uma crença inocente na bondade alheia que deveria ter sido perdida em definitivo.
Por isso é que o autor se decide a perturbar tal comunidade não só com o crime – representando a ferocidade do mundo moderno – mas também com o Passado – o reavivar da memória tão depressa escondida por tão pouco ser analisada.
Um trabalho de enorme dedicação à descrição da atmosfera da época que não descuida a eficácia que a componente policial também precisa.
Aliás, a meticulosa descrição alia-se à desenvolta narração para recriar um ambiente de familiaridade literária com usos nem sempre típicos, chegando a aliar a leitura moderna – veloz, emocionante – ao prazer antigo de pausadamente conviver com as personagens e os ambientes.
Único lamento acerca deste livro é que a edição tenha começado pelo segundo livro dedicado ao detective William Trave. Porque a sua definição pessoal teria sido ainda melhor e porque fica a sensação de que poderemos acabar unicamente com este livro publicado por cá.


O Rei dos Diamantes (Simon Tolkien)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Setembro de 2012
416 páginas

domingo, 9 de junho de 2013

A caminho do infinito

Os romances biográficos tendem a tentar explicar o biografado através dos resultados da obra que deixou no seu campo de trabalho.
Um exercício de psicologia barata que tenta simplificar em resultados a complexidade de uma vida inteira. Como se as características de personalidade que alguém revela no momento de concretização tivessem de se verificar em todos os momentos da vida.
Bullough orientou o seu trabalho de forma a percorrer episódios que, desde a infância, vão definindo o ser humano e o encaminham de forma consistente para que ele tenha a capacidade e a predisposição para concretizar uma visão.
Primeiro vem a pessoa, só depois os seus feitos. Uma pessoa caracterizada de forma sólida através de episódios esporádicos.
Episódios não insignificantes mas alguns de entre eles até de uma certa banalidade na visão global da vida de alguém.
Os leitores, pouco familiarizados com os pais do programa espacial Russo, são conquistados para a vida de Konstantin Tsiolovsky desde a sua infância, torcendo e sonhando com o que ele fará.
Sobretudo no contexto de uma Rússia desolada, um lugar que é o melhor ponto de partida para que Konstantin olhe para a distância, sobretudo em direcção ao céu, claro.
A dureza do cenário rural russo vem acompanhado de enorme beleza fazendo ver porque motivo Konstantin olha para horizontes distantes.
Não se trata de uma vontade de escape, mas uma vontade de partir levando consigo a pátria que é uma verdadeira mãe, causadora de sentimentos ambivalentes de amor e ódio.
A vida de Konstantin no cenário da URSS, talvez o único que pela sua extensão e rarefacção - humana e tecnológica - o poderia levar a alcançar as ideias para atingir o Espaço (algo que só 21 anos depois da sua morte seria feito), é descrita por Bullough com enorme rigor.
As imagens são sempre vívidas, procurando para as criar uma beleza na escrita que não negligencia a utilidade de cada palavra escolhida.
Em tão breve número de páginas que o livro tem - para aquilo que uma biografia romanceada poderia ter sido - tudo o que poderia ser excendentário foi retirado.
Uma economia que não deixa a sensação de que algo esteja em falta para concretizar um retrato rico que nos leva de um inóspito lugar sem perspectivas até ao sonho do Espaço desconhecido.
A vida recriada neste livro expande-se de um acidente na infância até ao sucesso (autodidacta) intelectual da idade adulta. Uma progressão tão extraordinária que parece pedir esse corolário óbvio, o alcance do Espaço.
A vida tão extraordinária por ser, em grande medida, tão simples, não chegou a concretizar para si mesma o momento de superação desse que parecia ser o irremediável limite físico de eternamente gravitar em torno da Terra. Mas conseguiu fazê-lo para todas as vidas que lhe seguiriam e partindo de tão modestas possibilidades.


A Magia das Estrelas (Tom Bullough)
Matéria-Prima Edições
1ª edição - Outubro de 2012
212 páginas

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Diferente do anunciado

A crítica a O Livreiro que aqui se inicia revelar-se-á bicéfala ou acabaria por ser uma análise enviesada. Teria de ser depreciativa do importante fenómeno da primeira interacção do leitor com o livro - em que a compra também está incluída - da antecipação via marketing - imagem da capa, frases de efeito e teor da sinopse - para chegar a um elogio do efeito final que só pode ser feito contrariando essa orientação comercial .
Avaliando o livro pela maneira como o seu exterior comunica com o leitor, o pensamento dirige-se para uma aproximação a O Clube Dumas, para a iminência de uma versão exultante, de aventura (não na forma de acção, claro), do papel de um comerciante de livros.
Ainda para mais numa versão de trabalho paciente que nos trará da Segunda Guerra Mundial ao presente e à figura envelhecida da capa.
Há algo de tudo isso no livro, claro, mas na verdade o alfarrabista parisiense que motiva o título do livro é quase um MacGuffin, desaparecendo muito cedo no livro e lançando o protagonista numa caça que terá muito pouco a ver com livros.
A trama relativa a um livro que esse bouquiniste se recusou a vender torna-se secundária e a sua maior contribuição para o livro é a maneira como desvia a perspectiva da investigação, tornando menos óbvio o percurso a seguir pelo protagonista.
O ambiente do comércio alfarrabista parisiense serve, igualmente, para criar um ambiente distinto para este policial, criando condições que obrigam o protagonista a negociar a sua posição e aliar-se à polícia local.
Ele é um "americano em Paris" e com um papel significativo na embaixada americana local, pelo que o seu comportamento não pode ser o do herói violento - e ainda bem, ou o livro teria sido apenas mais um thriller - mas antes de quem tem de liderar uma investigação privada e ir aceitando um papel secundário na colaboração com a polícia.
Essa gestão de relações leva a um uso mais inteligente de recursos, a uma evolução mais paciente em que o personagem fica caracterizado numa dimensão de pessoa a par de o ser no papel de herói.
Os detalhes tornam Hugo Marston muito interessante, dão conta do seu passado e deixam o futuro em aberto com mudanças significativas em perspectiva sem que forma final de cada uma seja óbvia. O (muito) dinheiro que lhe vai parar ao colo no final do livro poderá levar a uma mudança de profissão e/ou de cenário, havendo por isso alguma expectativa quanto ao que se segue.
Ao mesmo tempo, alguns de entre esses detalhes que o querem caracterizar como peixe fora de água, são verdadeiros estereótipos que não se enquadram no estilo do livro nem, verdadeiramente, do personagem.
O mais violento desses detalhes sendo o par de botas texanas que Marston não troca nem numa gala da embaixada onde é obrigado a vestir um smoking. Outras oportunidades surgiram para destacar o seu enraizado americanismo e o seu espírito independente sem que precisasse de existir esta incongruência laboral.
O personagem de Marston não se estraga à conta disso e a viagem emocionante em que ele nos leva tem um certo charme e bastante eficácia.
Não se trata do livro "anunciado", mas aquele que se revela não deixa o leitor mal servido.


O Livreiro (Mark Pryor)
Clube do Autor
1ª edição - Março de 2013
352 páginas