sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Thriller melhor, livro pior

Colisão é um thriller melhor mas um livro pior do que do que Pânico. A crítica que se segue tentará dar sentido a essa afirmação que parece conter uma inevitável contradição.
Jeff Abbott escreveu este livro, como o que li dele anteriormente (e embora me apeteça extrapolar acerca dos seus hábitos regulares, não o farei), usando alguns elementos gerais para desenvolver a narrativa: um personagem fora do seu meio em fuga e um grupo secreto dentro do universo das agências de segurança (e um grupo que as persegue).
Aqui, felizmente, cria uma dinâmica melhor em torno da base mais linear do jogo do gato e do rato, desde logo proporcionando ao fugitivo um parceiro dúbio e com quem manterá sempre uma relação atribulada.
Mas também adicionando elementos de reflexão acerca da política de guerra e dos lucros que ela cria e criando um plano geral que envolve um manipulação muito mais abrangente (do que em Pânico...).
Mesmo assim, Jeff Abbott não consegue evitar ter uma mão pesada com alguns dos elementos que tenta manipular em simultâneo, tornando a reviravolta final nada menos do que óbvia ainda o livro está no seu início - o mesmo defeito que deve ser ser apontado a Pânico.
Talvez a culpa dessa previsibilidade venha da maneira como se sabe que todas as linhas de desenvolvimento do livro, por mais dispersas que pareçam - e sejam, pois há mesmo uma dessas linhas que se mostra inútil -, vão correndo quase em paralelo mas obviamente inquinadas umas para as outras, como anuncia o próprio título do livro.
Sabe-se que esse é o método natural dos thrillers modernos, de tentarem manter as histórias compartimentadas e o leitor/espectador exaltado pela acção em vez de tentar fazer as conexões que sabe existirem.
Daí que o livro funcione como um guião (e novamente faço notar que tal não é bom) que vai saltando de cenário em cenário - ou de período em período - dando a ver apenas uns momentos isolados de cada personagem em capítulos/cenas breves.
Ou, neste caso, relativamente breves, o que só beneficiaria a leitura se o autor tivesse verdadeiro talento para desenvolver cenas de acção provocadoras da tal exaltação ou, preferível e alternativamente, apostasse na construção das personagens.
Mas revela-se tão penoso ler um capítulo de vinte e tal páginas com uma perseguição automóvel de escassa emoção, como continuar com um personagem central cuja única caracterização pessoal é o facto de ter visto a mulher ser assassinada durante a sua lua-de-mel.
Não sendo um personagem tão exagerado como o protagonista de Pânico, este negociador de contratos vai pelo mesmo caminho de capacidades de luta captadas "do ar".
Mas o pior é que o personagem não tem substância dramática para lhe dar credibilidade ou, pelo menos, para criar empatia com o leitor, que sabe que ele está condenado a sobreviver até ao final (feliz, se possível).
Tudo seria mais desculpável se fosse possível ao leitor ligar-se emocionalmente ao personagem central, mas esse é tão funcional, e daí descartável, como era o documentarista no outro livro.
O resultado é, portanto, um thriller mais interessante, mesmo se perdido em tramas demais nalguns momentos, mas um livro ainda mais aborrecido e pelo qual o leitor passa apenas para "saber como tudo acaba".


Colisão (Jeff Abbott)
Civilização Editora
2ª edição - Julho de 2009
486 páginas

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Título e personagem errados

O protagonista de Pânico é um realizador de documentários que, mal a realidade sai dos eixos da normalidade, se convence de que tem de se transformar num herói de acção.
O momento dessa transformação define o fundamental do livro, um chorrilho de cenas de acção protagonizadas por um tipo que se revela extraordinário sem que se vislumbre qualquer razão no seu Passado para tal.
Enquanto, em paralelo, as suas habilidades de documentarista - o olho para os detalhes, a capacidade de pesquisa, a manipulação da informação em favor de efeitos emocionais pretendidos (arrisco eu dizer que seriam estes ou não estaria nomeado ao Oscar) - não lhe servem de qualquer propósito. E nem creio que sejam mencionados de passagem.
O seu estatuto de espião e herói, nascido da sua mera força de vontade, equipara-se ao de Ethan Hunt e torna-o mais capaz até do que aquela que fazia o papel sua namorada e que fora treinada pela CIA.
Esta personagem implausível e mal construída envolve-se numa trama que se há-de complicar com o Passado familiar que a colocou em marcha, mas que no essencial é a narrativa de um homem em fuga.
Isso coloca-nos perante um thriller monótono por ser igual a tantos outros que já vimos.
O verbo escolhido é o correcto pois esta vertigem de menos de uma semana, que passa por Londres e Miami além de vários outros locais dos E. U. A., se parece com o esquema de um guião.
A única qualidade que posso reconhecer à escrita quase anónima de Abbott é que não sobrecarrega as descrições com detalhes de um realismo limitativo de tão meticuloso (e, por isso, inútil).
Só as ideias sobre o Passado dos personagens "secundários" - embora não sendo totalmente originais - merecem alguma atenção, por lidarem com questões de oposição entre lealdades pátria e familiar.
Mas essa atenção resulta numa única conclusão, de que era preferível ler sobre toda essa complicada história que exigia muito da construção das personagens, num thriller menos agitado mas de mais substância emocional.
Porque é que este livro vende abundantemente permanece um mistério, à parte o título sumário de marketing fácil.
Um título incompreensível, visto que pânico deve ser a única emoção que o protagonista não sente a partir do momento (quase inicial) em que racionaliza o seu próprio heroísmo...


Pânico (Jeff Abbott)
Civilização Editora
4ª edição - Setembro de 2007
468 páginas

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Uma primeira saga

Bernard Cornwell tem uma vastíssima carreira, mas se me dediquei à leitura deste livro foi pela sua temática e não por uma qualquer noção de popularidade do seu nome e uma associada necessidade de não permanecer na ignorância perante o seu trabalho.
Se essa falta de expectativa ajudou a apreciar mais o livro, não o posso garantir, mas a verdade é que fiquei agradavelmente surpreso com a concretização do livro.
Torna-se bastante óbvio que a guerra é o ambiente ideal para para o escritor, que não só lhes dá imensa vida como as torna num verdadeiro clímax quer das tramas das personagens quer da própria História em que as insere.
Cornwell tem uma inspirada capacidade para descrever essas cenas de batalha, não descuidando a emoção dos combates à escala individual no seio das importante tácticas a considerar.
Diria que o equilíbrio entre a macro-história e as micro-histórias é mesmo o facto preponderante do livro.
Os muitos elementos históricos - ou o seu rearranjo realista e coerente para melhor servir o livro - são usados com abundância para criar um ambiente tão elucidativo quanto emocionante.
Mas o ambiente em que as personagens se movem tem, igualmente, o charme mítico que se criou na mente global desde - e sobretudo com - Gone with the Wind.
A escolha do cenário do lado dos Estados Confederados adiciona um elemento menos habitual a este tipo de histórias. Seja porque o lado vencedor é, normalmente, aquele mais explorado, seja porque a moralidade da escravatura a evitar a história do Sul.
Mas o autor esquiva-se com bastante inteligência a essa armadilha das considerações sobre a manutenção da escravatura.
Na verdade, os nichos geográficos e sociais em que o autor coloca o protagonista - um Nortista - ajudam a que o autor revele igualmente a existência de uma certa desconsideração Sulista pela escravatura.
Tal como revela, de forma ainda mais interessante, alguns motivos menos nobres que levaram à composição de alguns dos exércitos que viriam a entrar na Guerra Civil Americana.
Tudo isto seria de interesse menor não fosse a ligação de todos os elementos proporcionada pelo protagonista, Nathaniel Starbuck.
As crónicas deste indivíduo mostram-no como uma personagem complexa - um estudante de Teologia altamente seduzível por qualquer elemento do sexo oposto, um jovem que se junta ao exército por medo mas acaba por se transformar num dos seus maiores valores, só para dar alguns exemplo - evoluindo com as situações que vão surgindo e seduzindo o leitor com o seu comportamente imprevisível e conduzido pelas mais inesperadas circunstâncias.
Uma saga que seguirei com interesse sincero daqui em diante e, eventualmente, um autor cuja obra terei de abordar com mais abrangência.


Rebelde (Bernard Cornwell)
Saída de Emergência
1ª edição - Outubro de 2012
368 páginas

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Preconceito pela metade

Os livros de protagonismo adolescente geram um certo preconceito perante o género de livros que se vêem ganhar protagonismo.
Preconceito que eu confesso ter sentido e que, em certa medida, não se desvanece por completo no seu final, embora não pelas razões que a princípio poderia julgar.
Na verdade, Rachel Ward cria personagens com um passado pouco habitual para os padrões de livros juvenis: rebeldes nascidos de pequenos dramas adolescentes.
Uma rapariga de 16 anos, grávida, fugida de casa e abrigada na casa de um grupo de drogados não é o tipo de protagonista glamourosa que se espera. Sobretudo tendo em conta que a sua filha é fruto do abuso sexual que ela sofreu às mãos do próprio pai.
A qualidade da construção e caracterização das suas personagens é o forte de Ward, que trata igualmente de manejar com cuidado os elementos possivelmente polémicos, apontando os detalhes mais escabrosos subtilmente e através do comportamento das personagens, antes de os confirmar de forma clara.
Com as personagens movendo-se num cenário de realismo social que se esquiva a muito poucos dos temas que mexem com a sociedade britânica (se não mesmo com todas): a desconsideração pelos bairros sociais, o racismo perante as relações inter-raciais, a simplicidade com que ocorre solicitação de menores, entre outros que surgem explicitamente ou de passagem.
Creio, por isso, que Rachel Ward poderia perfeitamente ter escrito um romance passado nos dias de hoje em que o vasto tecido social fosse a linha orientadora.
Uma rapariga adolescente fugir de um pai abusador para acabar numa relação com o rapaz que lhe atormenta os pesadelos parece-me emocionante o suficiente.
O suficiente para não precisar de elementos de fantasia, mesmo se esses são o elemento diferenciador do romance. Falo, claro, das datas da morte que o protagonista vê nos olhos dos outros e que projectam para um acontecimento catastrófica bem no centro de Londres - um cenário de blockbuster, até mais do que bestseller.
Esse pedaço de fantasia faz com que falte ao livro definir com mais exactidão o seu universo, dar explicações para o facto dos elementos centrais do livro terem todos uma espécie de poder psíquico (se assim posso classificar) que não ocorre com mais nenhum ser humano à sua volta.
São elementos que acabam por se acumular, sem se interligarem, com a realidade de uma sociedade que evoluiu para um ponto intermédio entre a vigilância actualmente imposta e o Big Brother de George Orwell e que consistiria um elemento suficientemente cativante como adição à fuga da protagonista para a franja da sociedade que resiste a ser injectada com chips que controlam todos os seus movimentos.
O preconceito final não é tanto para com a autora e a história que aqui criou - de uma leitura veloz e interessante em vários momentos - mas para com as exigências da literatura para adolescente que não podem ser contentados com dramas mas precisam de dramas que sejam "mais qualquer coisa".


Números: O Caos (Rachel Ward)
Topseller
1ª edição - Maio de 2013
296 páginas

domingo, 25 de agosto de 2013

Rocambolesco mas não absurdo

Trata-se apenas do segundo livro destes autores a que temos acesso, mas nota-se que os modelos literários para os seus conteúdos se distinguem por estarem próximos de Umberto Eco, mesmo se a forma continua próxima da de outros escritores mais vendidos por estes dias.
Está tudo na dedicação à erudição, à sabedoria escrita, às possibilidades extraordinárias proporcionadas pelo conhecimento e os perigos a ela associada.
Não que tenham desaparecido os destinos atractivos, os enigmas atraentes ou as perseguições por passagens secretas.
Tudo isso faz parte do jogo moderno de atracção do leitor, mas nota-se já uma vontade de continuar a explorar os momentos históricos que se relacionam com a trama corrente.
A narrativa passada em 1355 e protagonizada por Nicolas Flamel, apesar de surgir em capítulos breves intercalados com os do tempo presente como é típico dos thrillers actuais, poderia ser lida de forma independente.
A sua relevância para o thriller não é de tal ordem que não pudesse ser substituída por duas páginas de exposição por parte de um dos intervenientes "modernos".
Poderíamos considerar essa linha narrativa um "drama biográfico" de que os autores poderiam ter feito um outro e mais longo livro - até por ser o mais interessante, já que do lado do thriller, há alguns simbolismos demasiado evidentes que tornam parte da narrativa previsível.
Mas a relação do alquimista com a moderna cobiça é demasiado boa para os autores resistirem a inventá-la - como os próprios revelam nos anexos que, mais uma vez, servem para separar realidade e ficção.
Com a Pedra Filosofal em jogo, o ambiente do primeiro livro repete-se, cheio de mistérios e esoterismo, mas sem deixar de tentar manter-se colado ao realismo credível possível.
Neste livro esse realismo é muito mais difícil de manter, como se verá acerca das revelações sobre a Torre Eiffel, mas a estrutura narrativa é sólida e coerente, sem falhas assinaláveis e com uma plausibilidade muito bem sustentada dentro desse espaço um pouco mais lato pela imaginação dos autores.
Além de que as considerações acerca da democracia e dos direitos civis ajudam a isso mesmo e contribuem para a sempre presente missão de acompanhar o entretenimento de enriquecimento cultural.
Pela História da maçonaria, é credível que ainda muitos elementos possam vir a servir de matéria-prima a novos mistérios.
A novidade do meio onde se passam estes mistérios arrisca esgotar-se. Contra isso funciona a qualidade do protagonista, cujas componentes de personalidade possivelmente conflituosas - polícia e erudito - ajudam a ir formando vagarosamente um retrato completo do homem.
Um retrato que queremos conhecer por completo e que incentiva a ir lendo outro e outro dos romances por si protagonizados.
Até porque a sua personalidade dentro da maçonaria é a de elemento nobre, que se diverte ouvindo num bar teorias absurdas sobre a sua sociedade discreta mas se irrita quando a sua filiação o leva a ser usado como divertimento num jantar elitista.
Esta terceira aventura (segunda em Portugal) de Antoine Marcas confirma-o como uma personagem a seguir e aos autores como exemplos melhores de um género popular cujo filão merece ser diversificado antes que se esgote num único formato.


O Irmão de Sangue (Jacques Ravenne e Eric Giacometti)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Maio de 2013
440 páginas

sábado, 24 de agosto de 2013

A aventura realista da maçonaria

A maçonaria é um tema que, de tempos a tempos, retorna à atenção pública, raramente por razões que cumprem os parâmetros da decência.
Para os leigos, além dos artigos e dossiers que a imprensa aproveita para publicar nessas alturas, encontra n'O Ritual da Sombra uma excelente oportunidade para adensar o seu entendimento do que é e a que se dedica este conjunto de sociedades.
O romance tem esse exacto propósito de esclarecimento sem se escudar aos detalhes menos abonatórios que são apontados à maçonaria.
O protagonista, um detective primeiro e mação depois, diz logo ao que vem no início do livro. O seu propósito, como deveria ser de todos os mações, é o de evoluir para um estado de conhecimento o mais avançado possível; enquanto as influências corrompindas que outros procuram o enojam.
Mais do que uma definição de carácter do protagonista ou uma defesa da maçonaria, este reconhecimento e oposição entre as várias realidades decorrentes da maçorania são uma linha-mestra do livro.
A verdade e os mitos, tal como a simbologia verdadeira e os entendimentos indevidamente extrapolados, servem de combustível à imaginação dos autores que permitem aos leitores irem primeiro escandalizando-se ou excitando-se com as possibilidades maçónicas para, depois, as mostrarem numa visão mais terra a terra.
Fazem-no pela maneira como o final tem uma dimensão, de certa maneira, anti-climática (mas não desapontante) perante o grande enigma construído - com início na Segunda Guerra Mundial - e que tem uma resposta quase comum mas muito de acordo com o verdadeiro objectivo veiculado pela maçonaria.
E fazem-no pela apresentação de anexos finais onde comparam a realidade dos factos com aquilo que se permitiram inventar: esclarecimentos que são, igualmente, um olhar pertinente acerca do método de criação e de como se combina imaginação e investigação.
Todo o didactismo funciona particularmente bem por estar integrado, de maneira quase indescirnível, com um thriller aventuroso, aquilo que é sempre uma espécie de diluição de Indiana Jones e que recorre a vários cenários históricos reais - felizmente, neste caso, sem reivindicar realidade do que é fantasioso e sem truques impossíveis de acreditar.
O livro devora-se, mantendo o leitor em suspenso sem perder oportunidades para revelar informação (sempre bem documentada) dentro da fluídez da acção.
Os rituais e símbolos da maçonaria integram-se muito bem - e elevam, em certa medida - num cenário que poderia recorrer à simplificação grosseira ou a um verdadeiro aparvalhamento para relacionar documentos místicos roubados e sociedades secretas anti-maçonaria de um modo que sirva para cenas de acção em locais (historicamente) exóticos.
O livro tem, nessa capacidade de entretenimento, o dom de agudizar o novo olhar esclarecido - e admirativo - ao que a maçonaria foi e deve ser.
Até porque a concretização deste livro, a meias entre um jornalista que investigou a maçonaria e um mação com o grau de Grande Mestre, acaba por ser o exemplo maior desse esclarecimento intelectual que os mações devem procurar, enchendo de erudição - até pela qualidade da escrita, que a tradução acompanha devidamente - o que outros tornaram num entretenimento comercial formulaico.


O Ritual da Sombra (Jacques Ravenne e Eric Giacometti)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Setembro de 2012
384 páginas

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Na encruzilhada do Policial

Se a História de um género - ou de uma Arte - se faz muitas vezes a partir dos casos excepcionais que nele surgiram e que, na maior parte dos casos, deixaram descendência na abordagem, ela entende-se a partir dos trabalhos que marcam o caminho laborioso mas pouco distinto que esse género faz para se manter em vivo.
Foi com esta perspectiva que mergulhei nesta antologia que, apesar do aviso deixado sobre a relevância dos nomes escolhidos, 
O primeiro volume anunciava "12 Novos Grandes Autores Policiais" e o segundo apenas "13 Grandes Autores policiais".
Como entre uma listagem e outra (que encontram junto às capaz, no final da crítica) alguns nomes se repetiam, não creio que haja algo mais do que intenções publicitárias a reger o critério da listagem.
Haverá, certamente, gente mais bem informada que reconhecerá vários dos nomes aqui incluído, mas por pouco que eu não identificava qualquer um (além do de Edgar Wallace).
Por isso, acho mais interessante - e significativo - identificar algumas tendências em vez de destacar nomes e contos isolados de entre os aqui presentes.
Considerando que esta é uma antologia de contos escritos, maioritariamente na segunda metade da década de 1960, há uma mistura de repetição de tendências passadas e de tentativas de desbravar tendências futuras que acaba por dizer muito da encruzilhada que então se vivia para o Policial.
Encontramos tanto autores que se haviam estreado ainda nos anos 1930 - como Nigel Morland, muito influenciado pelo próprio Wallace (de quem era amigo) e que haveria de se tornar editor da revista - e outros que tentavam iniciar-se no género - como Morris Hershman, que assina os mais excitantes contos aqui presentes.
O que fica patente é uma mistura nada coerente entre as tendências, parecendo fácil distinguir entre os que vinham escrevendo há muito e os restantes.
Os contos menos interessantes são aqueles que se limitam a relatar, com uma elaboração de escritor, casos reais que chegaram a julgamento (momento em que eles se centram).
São contos em que se mantém uma inocência perdida, a ideia de que o crime ele próprio é o suficiente para captar o interesse dos leitores, gente de moral irrepreensível que se excita por ficar a conhecer os maus costumes que vão surgindo esporadicamente no seu país.
Sugerindo uma mesma linha de crença na inocência da sociedade e da sua Era surgem os contos que enviam para países distantes e exóticos a acção das suas histórias. Como se a Inglaterra não pudesse ser palco dos mais extravagantes ou hediondos crimes (vale a pena comparar essa ideia com a maneira como John Bingham a desfez, através do mesmo género).
Muito melhores são os contos que usam a influência de Wallace - a investigação guiada pela acção e consequente aproximação às pulps - e abdicam de se colarem ao que fora a Era de Ouro do policial, para penetrar nos meandros da psicologia do crime, com muitas surpresas à mistura.
São contos que aceitam o Mal existente, o usam a seu favor chegando mesmo a dar-lhe o protagonismo, para daí extraírem o máximo que os efeitos da leitura têm sobre as emoções dos leitores.
Aí se pode ver o início do que viria a ser o thriller, cada vez mais dependente da sequência de cenas de acção em nome dum estado de excitação constante do leitor.
Num caso ou noutro, não estamos perante os melhores autores do género, pelo que muitos deles terão sido esquecidos sem hipótese de recuperação.
Mas é com estes contos de meros executantes que se percebe de onde vem e onde chegou o Policial. Uma aprendizagem importante de fazer.


Grande Antologia do Conto Policial - 1º Volume (John Salt, Morris Hershman, Peter Ardouin, Nigel Morland, James Morier, Eric Parr, Ray Dorien, Wilhelm Hauff, Marten Cumberland, Pete Fry, Paul Tabori, Bill Knox)
Portugal Press
Sem indicação da edição - 1978
236 páginas


Grande Antologia do Conto Policial - 2º Volume (Edgar Wallace, John Salt, Nigel Morland, Morris Hershman, C. M. Maclead, James Pattinson, Colin Robertson, Kern L. Perc, Stewart Farrar, John Boland, Alistair Allan, Michael Gilbert, Bernard Newman)
Portugal Press
Sem indicação da edição - 1978
212 páginas

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A razão do crime e o crime da Razão

Faz falta uma expressão portuguesa que tenha a equivalência do "crime novel", uma certa genralidade que permite compreender que o crime tem um papel central na história sem as implicações de investigação ou concretização do nosso "policial".
À falta de ideia melhor, assumo o Romance de Crime (e não Romance Criminal), para acentuar a importância do Romance com a complementaridade do cenário em que se move.
Agora sinto-me à vontade para falar de Casamentos e Infidelidades como um Romance de Crime, a história patética e assutadora - ambos os adjectivos nascidos da sua sua banalidade - de um homem que se decide matar a mulher para a poupar a vê-lo divorciar-se dela para estar com a sua nova paixão.
Como o título revela desde logo, a trama não fica neste "um para um", antes ganha contornos cada vez mais complicados em torno dos muito intervenientes que são, sem excepção, tudo aquilo que fazem por não parecer ser.
Das fragilidades que uns julgam ver nos outros sobra muito pouco, na verdade, mas de tão simples que seria de resolver, a situação central do livro torna-se no elemento essencial que motivará o passeio pela mente de Philip Bartels.
Este homem típico de uma classe média pacificada e insatisfeita decide-se e depois duvida do tal assassinato misericordioso.
Ao leitor é exposto o seu processo mental, pelo qual ele se vai convencendo das razões - a fragilidade e o embaraço da mulher - para o crime que quer cometer.
O mais consternador é o facto de parecer que ele, realmente, é capaz de crer na bondade das suas intenções, uma forma de ser um moderado tresloucado ou um psicopata com empatia.
Fica então exposto perante nós um personagem que tendo tudo para viver contentado, se decide pela liberdade e pela felicidade, concretizando-a através de um método que parece quase inocente, num tempo em que as aparências e a submissão feminina eram a norma.
E com ele fica exposta aquela sociedade que se vale das aparências, que é um tempo onde a sociedade recuperou a grande inocência depois da Guerra ter demonstrado o quão longe disso podem estar os seres humanos.
Como aliás estão aqui, pois a ideia da mentira e do crime não está só com o nosso protagonista, mas também com todos os que em torno dela gravitam.
Nenhum personagem está muito distante dessa hipótese de poupar o outro à tristeza, matando-o.
Obstinadamente, insistem em acreditar nos próprios mitos que a sociedade lhes impinge.
A par dos pecados e crimes para com os outros a que estes personagens se dedicam, há outro a que quase todos eles também cedem, um crime contra si mesmos e que é o do seu apagamento.
Uns e outros vão aceitando levar a existência que não querem mais porque acham que o seu par não sobreviverá à verdade, de que eles precisam de ser livres.
Mas se nunca ousaram tentar libertar-se é, também, porque querem acreditar na sua importância para a vida alheia dos seus presentes ou futuros cônjuges.
Equilíbrios precários para viver bem em sociedade e consigo mesmos, de pessoas com ainda menos escrúpulos do que o protagonista.
O final do livro volta a instalar a dúvida sobre até que ponto a única sinceridade possível pode vir dessa vontade de matar alguém para lhe poupar embaraços e dificuldades, de lhe poupar ter de se recolocar em sociedade, em novas mentiras - mesmo se felizes agora!
Claro que não se chega a dar tal conclusão, mas a mente humana tem esta capacidade de criar os cenários mais desejados, matizá-los com as cores de consciência mais úteis e por aí argumentar até se convencer a si e a quem oiça.
Até porque o termo de comparação será o maior dos criminosos, aquele que sem nenhum tipo de envolvimento e decidindo-se a ganhar a sua felicidade, é também aquele que recusa todos os momentos em que poderia salvar as restantes consciências e colocar todas as vidas nos eixos.
Assim se faz um emocionante retrato da sociedade que vivia de aparências, imaginava crimes e racionalizava
as razões para os cometer.


Casamentos e Infidelidades (John Bingham)
Editorial Presença
2ª edição - Julho de 2009
188 páginas

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A protagonista do machismo

Há que dizê-lo desde já e em definitivo, Janet Evanovich não é escritora de policiais. Ou, pelo menos, já não é uma escritora de policiais.
Esta série protagonizada por Stephanie Plum é apenas uma sitcom em que a protagonista se envolve nos mesmos círculos que estão associados aos romances policiais.
Mas considerando a total inépcia - e falta de vontade - de Stephanie Plum para a sua profissão de caçadora de recompensas, bem como o facto de ter uma assistente que também prefere sempre dedicar-se a mais uma refeição do que às pessoas que tem de apanhar, é totalmente impossível que este livro seja um policial.
Os dois únicos protagonistas que poderiam pertencer a um livro policial seriam o polícia e o caçador de recompensas profissional que funcionam apenas como os dois pólos que atrapalham a vida sentimental e sexual da protagonista.
Se estas considerações não são suficientes, consideremos ainda o que é a trama central do livro. Plum está ameaçada de morte por vários indivíduos contratados para conseguir dela uma foto que um estranho, no avião, lhe colocou na mala sem ela saber.
O problema é que a primeira coisa que ela fez foi deitar essa foto fora, quando aqueles personagens em que pensamos como exemplos clássicos de detectives teriam certamente envolvido-se mesmo se fossem meras vítimas do acaso.
Faço agora a análise de um livro para se ler descomplexadamente - de pés na areia, mesmo! - para conseguir umas tantas gargalhadas numa tarde quente.
Nesse âmbito, o livro tem bastante eficácia , com situações embaraçosas em catadupa e personagens de comportamentos inesperados.
Entre outras coisas, Plum enfrenta um Golias de junk food que insiste em roubar-lhe o carro e vai a casa da mãe para ter jantares com a família de onde se destaca a sua velha avó que não tem tento no que diz.
Um pequeno manancial de situações e diálogos exagerados que surgem inesperadamente ao longo do livro.
Mas se o livro tem humor, há uma apreciação crítica mais exigente que se tem de fazer acerca da maneira como a escritora trata a sua protagonista.
O livro contem momentos de total absurdo que nunca se esperariam de uma mulher que quer ganhar a vida apanhando pessoas que não comparecem em tribunal, como não se lembrar de recarregar o taser ou deixar a arma em casa porque lhe pesa na mala.
Considerando que este é o décimo oitavo livro da série, seria no mínimo expectável que a protagonista já tivesse aprendido algumas regras básicas para cumprir a sua profissão. Ou, pelo menos, cumpri-la sem ter de telefonar a um dos seus amantes para que a safe das situações mais periclitantes.
Dá a ideia de que Janet Evanovich está apostada em perpetuar estereótipos machistas, canalizando todos os erros que poderiam ser usados como piada acerca duma "mulher numa profissão para homens".
Avaliando a transição do livro anterior, Perseguição Escaldante, para este, a autora está muito limitada - ou, pelo menos, limita a sua personagem central - a um único cenário onde possa fazer acontecer o mesmo tipo de situações ridículas de forma sistemática.
No final desse livro a protagonista preparava-se para partir para o Havai e no início deste já vem a fugir de lá. Basicamente, o livro que deveria decorrer por lá não foi escrito porque não haveria pessoas para apanhar - e colocar Plum em situações comprometedoras e dependente dos homens.
Não sei se as mulheres aceitam bem este tipo de situação, mas nem mesmo eu sendo homem vejo com bons olhos tal falta de solidariedade femininista da autora para com a sua criação.
Até porque se esperaria que, por esta altura da série e depois de uns três ou quatro volumes de aprendizagem, estivéssemos a ler a superação de uma mulher neste universo de homens durões. Uma caçadora de recompensas mais capaz do que os homens, sem necessitar deles e aproveitando ser uma mulher como mais um truque (e elemento surpresa) para ter sucesso nas suas missões.
Esperava um policial "a sério" mesmo se confesso, com moderado embaraço, que me fui rindo dos falhanços da protagonista que impediram que o livro fosse cair nesse género.


Sorte Explosiva (Janet Evanovich)
TopSeller
1ª edição - Junho de 2013
304 páginas

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Aventura suficiente

A leitura de uma banda desenhada de aventuras tem sempre a capacidade de criar um momento de abstracção que causa um certo prazer.
Esse momento não impede que nos momentos posteriores a análise não possa ser baseada unicamente nesse estado de indiferença a todos os contextos.
Os Piratas do Deserto é uma aventura que se lê velozmente, apesar do seu tamanho e de funcionar através de duas opções narrativas muito distintas (se não mesmo incompatíveis de forma coerente).
São elas os momentos de "acção", velozmente desenhados e muitas vezes sem qualquer diálogo, e os momentos de descrição e narrativa, onde os desenhos servem de suporte ao muito texto.
As transições entre ambos, não sendo demasiado abruptas, lá permitem que a leitura não se torne numa espécie de entrada e saída entre dois livros completamente diferentes.
Mas se há algo que as mantém unidas é a interessante composição das pranchas que mantém uma certa fluidez geral.
Essa fluidez compensa o muito texto que parece ser aquilo que é mais valorizado pela obra, uma homenagem sincera a Emilio Salgari. Se o texto não é a transcrição do original, será muito fiel ao mesmo.
A leitura desse texto leva à recuperação de leituras de outros tempos em que a dedicação aos textos de aventuras era mero prazer despreocupado com a sua maior ou menor qualidade.
Até porque o texto é o que, por sua vez, ajuda a esquecer as muitas imperfeições do desenho, ainda que este tenha um estilo bem adaptado ao género, em boa medida herdeiro de Hugo Pratt (que também adaptou Salgari a Banda Desenhada).
O desenho sofre de ser pouco preciso dentro de uma mesma cena. Tanto por existirem incoerências entre vinhetas - sobretudo no movimento ou posicionamento dos corpos - como por o desenho ter inconsistências de estilo.
Um estilo que não tem a ver com a sua evolução com o tempo, mas que dentro das cenas varia entre o detalhado - com enorme dedicação à oposição entre o branco e o preto - ao despachado - limitado a traços e sem cuidados com o detalhe.
Creio que de tudo isto resultaria uma ideia de equilíbrio médio de uma obra com falhas e proveitos para todos os gostos. Uma espécie de nota de "suficiente".
No entanto a opinião transita para um tom mais negativo devido à impressão final da obra, que acaba por ser especialmente forte.
Depois das muitas e preenchidas páginas que ficaram para trás, cento e cinquenta páginas de laboração lenta da história, as últimas quinze parecem particularmente apressadas.
Como se estas estivessem dependentes de se aproximar o número limite de páginas para este livro e não do final poder ser explanado de forma menos brusca na muita acção que, de novo, ali comporta.


Os Piratas do Deserto (Fernando Santos Costa)
Edições Asa
1ª edição - Agosto de 2012
176 páginas

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Um verdadeiro storyteller

Esta é uma história que, no essencial, equilibra duas vertentes: o estreitamento de uma relação entre pai e filho e a exploração da sobrevivência em ambiente hostil.
Esse equilíbrio é bem conseguido, num ambiente de ficção científica com consciência ambiental que só acresce ao interesse da história.
Fá-lo tornando a Terra num ambiente hostil apontada contra os próprios seres humanos e mostrando elementos de uma tecnologia futura mais consciente do que espectacular.
Em geral isto era o que já havia dito sobre o filme, que vi antes desta leitura. Mas o livro beneficia de acrescidas qualidades para merecer atenção mesmo depois de se conhecer o filme.
Claro que essa situação levou a que a leitura se parecesse muitas vezes como uma reposição. Mas se os momentos dramáticos mais importantes são os mesmos, há uma muito melhor composição narrativa.
Além de que, não importa o talento de M. Night Shyamalan como contador de histórias (no sentido lato que tem ser argumentista e realizador ao mesmo tempo), Peter David bate-o em experiência e em talento, até mesmo quando ao domínio da palavra acrescenta o da imagem, como a sua excelente primeira passagem por Hulk demonstrou.
Peter David consegue tornar as persongens mais do que arquétipos ao serviço de uma ideia final, dando substância aos seus comportamentos com uma assinalável economia de meios que não descura o cuidado que a mesma merece a todo o momento.
O trabalho de Peter David benificia ainda da importante inclusão de elementos significativos que não terão tido espaço no filme e que acrescentam à relação entre pai e filho aqui descrita.
Esses elementos são os vários capítulos que se referem ao passado, desde os momentos ainda antes da Terra ter de ser evacuada, saltando por várias gerações até ao Presente.
A palavra gerações é mesmo a mais correcta, visto que esses capítulos se referem sempre a elementos da linha da família Raige.
Assim, esses momentos do passado servem para mais do que exposição dos elementos essenciais do Universo em questão - mesmo se as questões tecnológicas continuassem a precisar de mais contextualização - mas, ainda mais do que isso, serve para criar um peso do nome daquela família que tem uma súbita clivagem na relação entre este pai que a leva por diante com enorme brilho e aquele filho que lhe sobra e que não crê estar à altura e que acha ter sido o culpado da morte da sua irmã - ela sim a digna continuadora daquela família.
Peter David controla todos os elementos que tem em mão com um enorme talento. Trata-se daquela qualidade de um escritor de talento que sabe quando tem de se dedicar a contar uma história o melhor possível ainda antes de procurar o melhor das palavras.
No fundo, aquilo que a palavra inglesa resume melhor do que o nosso "contador de histórias", um storyteller de talento.


After Earth - Depois da Terra (Peter David)
Saída de Emergência
1ª edição - Junho de 2013
240 páginas

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Tolkien para ter à mão


Este livro é, sobretudo, uma boa enciclopédia introdutória para os que se iniciam no universo de J. R. R. Tolkien.
Mas não deixa de ser, para um público generalista que já tenha lido O Senhor dos Anéis - ou que, entretanto, tenha visto os filmes - um recurso útil e rápido para se ter à mão para uma consulta.
A informação é breve mas não tem lacunas evidentes, sendo valorizadas por aquilo que é o melhor do livro, as ilustrações.
Apesar da influência dos filmes de Peter Jackson - o que poderá ser uma conexão inevitável na mente de quem viu os filmes que aproxima as feições dos actores às das personagens desenhadas - e, claro, as semelhanças entre abordagens visuais à conta das descrições detalhadas do próprio Tolkien, há margem de manobra para que o resultado do trabalho de Peter Mckinstry se distinga do que nos habituámos a ver.
Um exemplo claro disso mesmo é o seu Fangorn, cuja excelente ilustração abre esta crítica.
Os desenhos a preto e branco são muito bons, mas são as páginas duplas totalmente coloridas que criam os efeitos mais vistosos. A vista de Mordor, bem como o Balrog sendo provavelmente aquelas duas que mais "enchem o olho".
Tudo conjugado numa bela edição, um álbum de grande formato e de capa dura, que vale a pena ter à mão para a tal consulta que será sempre mais rápida do que procurar a cena ou a passagem que se quer.
Claro que é um álbum muito mais apontado a um público jovem e para quem Tolkien ainda virá a ser uma surpresa, mas não há adulto que não lhe vá pegar.


O Mundo de Tolkien (Gareth Hanrahan e Peter Mekinstry)
Arte Plural Edições
1ª edição - Novembro de 2012
80 páginas

domingo, 11 de agosto de 2013

O homem que "quase"

Os Monty Python na sua abordagem ao Santo Graal tinham um Sir Robin que era a personagem que quase lutara com o Dragão de Agnor, que quase enfrentara a Galinha de Bristol e que quase se mijara pernas abaixo na batalha de Badon Hill.
O homem sobre quem Jô Soares agora escreve é o seu equivalente no campo da anarquia política mundial do século XX.
O homem que quase matou o Arquiduque Francisco Fernando, que quase perdeu a virgindade com Mata Hari, que quase safou Al Capone de acabar na prisão...
A sua vida é feita destes maravilhosos quases, dos quais ele não fugia, antes se via incentivado a procurar outro quase a que aceder.
Claro que ele nunca desejou ficar-se pelo quase, mas certamente que ter tido sucesso teria impedido que ele persistisse e orbitasse todos esses grandes momentos da História.
Até aquilo em que ele é bem sucedido - e pelo que ele é protagonista deste livro - é um sucesso que é um falhanço.
Pensando nas muitas acções empreendidas por  Dimitri Borja Korosec ao longo dos anos, o seu único sucesso a ser contabilizado é mesmo uma "invenção de merda". Uma forma de comunicar entre celas de prisão através da tubagem das sanitas, implicando que qualquer descarga do autoclismo interrompia o sistema.
Jô Soares gosta de encadear a História e olhar para os falhanços. São, não só mais humorístico, são mais humanos.
Os absurdos que preenchem esse lado da História que não conta para ninguém - a não se, eventualmente, para os próprios intervenientes, ou não haveria um diário do protagonista para consultar - torna a realidade extraordinária por envolver esses episódios extraordinariamente absurdos.
Por cada assassino que acerta há dez que falham de forma ainda mais exuberante.
Que um único homem possa, então, ter falhado sozinho por tantas vezes e contra o seu destino - nasceu com dois polegares em cada mão que o tornavam num atirador ainda mais exímio que os seus companheiros - é ainda mais assoberbante... mas também excitante de seguir e delicioso de gozar.
Ele atravessa a linha do trágico para chegar de novo ao cómico.
Como não poderia deixar de ser quando o seu jurado arqui-inimigo é um assassino anão com tendência para voar de janelas de comboio.
São estas as personagens extraordinárias que só a ficção pode resgatar ou acrescentar à História, que detalha sempre os sucessos.
Mas os sucessos são pontuais - mesmo se são eles a afectar a História de forma definitiva - enquanto os insucessos marcam o quotidiano sem qualquer descanso.
D'O Xangô de Baker Street para este livro, nota-se que Jô Soares se tornou mais escritor - a narrativa tem mais coesão - sem perder o mais puro da sua condição de humorista.
O falhanço parece ser aquilo que Jô Soares mais reivindica como matéria para ser um humorista "por escrito". E assim está à vontade para brincar com a realidade sem a desrespeitar.
Tal como o Brasil é o local que melhor lhe serve para ser cómico e terno ao mesmo tempo - é lá que os melhores momentos deste romance acontecem.


O Homem que Matou Getúlio Vargas (Jô Soares)
Editorial Presença
2ª edição - Abril de 2013
256 páginas

sábado, 10 de agosto de 2013

Fora do cânone

Um humorista é um criativo a tempo inteiro, que tem de olhar para a realidade - Presente e Passado - para lá encontrar matéria que remolda aos efeitos que pretende alcançar.
Normalmente, efeitos de espanto por uma visão nova de absurdas conjugações entre as muitas hipóteses que o mundo contém em si.
Jô Soares não se poupou na pesquisa nem nos muitos tons de matéria que juntou: Sherlock Holmes, Dom Pedro, Josephine Baker e Jack, o Estripador (além das muitas personagens da vida pública brasileira).
Sendo personagens culturalmente instituídas, têm de se lhe encontrar momentos dignos de ficção - ou nova ficção no caso de Holmes - nos interstícios dos registos oficiais. E de humor.
Parodiar figuras admiradas sem as ultrajar enquanto foge aos cânones e torna detalhes da História brasileira acessíveis e interessantes a todos, essa é a grande conquista de Jô.
Quem pega no livro tem de aceitar que é tanto leitor de uma obra como é público de uma performance de humor.
A narrativa, entendida como uma estrutura cerrada de eventos, não chega a ser o objectivo central de Jô Soares, que prefere manter a liberade de escolher e moldar os episódios que melhor servem os seus dotes de humorista.
Só depois vem a missão de escritor que ele assume, inevitavelmente ou não tivessem sido alguns dos grandes escritores brasileiros os primeiros revisores e críticos da obra que estava a ser escrita.
Por isso, o livro nunca se torna pouco "sólido". A história é concluída sem deixar pontas soltas - excepto as que o autor quer, mas já lá vamos - e as várias personagens permanecem intactas em direcção às suas vidas ou aos seus cânones.
Concluir a história é a função última - mas cuidada - do escritor, que prefere primeiro colocar em posição os muitos elementos de humor.
Os jogos de palavras, as associações de situações casuais a protagonistas ficcionais/ficcionados, a comédia de costumes ou a afectação e vulgarização do grande detective.
(Sobre a comédia de costumes vale a pena destacar em como, usando um género próprio do seu país, Jô Soares revela todo o prazer que tem em criticar o seu país, de então e de agora, mas revelando nessa crítica quanto afecto lhe tem.)
A estrutura em torno das muitas piadas pode ser um pouco frágil, mas aguenta-se contra análises pessimistas, pedindo que se aceite aqui um ligeiro grau de implausabilidade que melhora o percurso pelo livro.
Até porque só acelerando livro fora, se descobre essa piada maior, a do "falhanço" do policial. A investigação não progride bem, Holmes distrai-se com uma bela mulata, Watson mal consegue dar conta do seu estômago e, no final, o criminoso escapa impune.
Esta é uma aventura que nunca poderia entrar no cânone de Sherlock Holmes, até porque os seus brilhantes poderes dedutivos são afectados pelo contexto que é o errado para as suas conclusões estarem certas.
Pelo contrário, é uma deliciosa história de origem para o vilão Londrino, feita de cartas marcadas que Holmes, jogando em campo alheio, nunca teve realmente hipótese de descobrir.
A tirada final da piada é apontada ao leitor, que se ilude com o título e vai atrás da personagem errada. Mas não tem mal, pois é uma piada da qual não há como não rir!


O Xangô de Baker Street (Jô Soares)
Editorial Presença
6ª edição - Março de 2013
280 páginas

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Um bom primeiro exercício

Quando a Chuva Parar toruxe-me à memória Os Afogados pela proximidado do mecanismo que os faz funcionar: uma conversa tida no carro, em viagem.
Diferenças à parte, como o facto de aqui apenas uma das personagens estar em viagem e a sua interlocutora estar na outra ponta de um telemóvel.
O diálogo é a essência de ambos. Mas onde no outro livro a descontextualização era o fenómeno principal, isolando o diálogo para que as opiniões, a geografia e a realidade fossem de um qualquer espaço europeu.
Aqui, pelo contrário, o contexto - sobretudo do que veio antes - é o essencial, pois o diálogo é o método pelo qual as personagens avançam de um estado para o outro. A viagem ajuda a tornar essa ideia de percurso pessoal a materializar-se, a tornar-se fisicamente mensurável em distância, tempo e velocidade.
O diálogo é um processo de clarificação e análise. Nada de novo nessa ideia, apenas o contexto muda. A viagem de carro e o telemóvel (os elementos destacados como sendo usados pela primeira vez num romance) limitam-se a formar um contexto distinto de uma tarde numa esplanada ou de uma consulta num psicólogo.
A viagem afecta o diálogo - é expressa preocupação acerca do excesso de velocidade e dos perigos de falar ao telemóvel enquanto se conduz - mas não fica incorporado nele, nem o transforma.
Não se gera a sensação de que o diálogo se altera com as transformações do caminho (difíceis, é verdade, visto que a viagem é quase toda por auto-estrada) ou com as particularidades do método da viagem. Afinal, há duas crianças no banco de trás, mas nenhuma chega sequer a parecer que vai acordar e fazer soar a sua voz entre a das duas amigas.
O diálogo tem um tom que não se altera. Depende apenas de quem o está a ter porque não chegam a existir circustâncias externas. Os elementos novos deste romance parecem contribuir, involuntariamente, para um encerramento do diálogo naquela pequena via de comunicação oral entre as duas amigas. Se estivessem ambas fechadas no carro, a simbologia do que escrevo seria ainda mais óbvia.
Não que o diálogo não tenha o seu interesse, tanto que se lê à mesma velocidade excessiva a que o carro vai. Até porque surge como um desperdiçado bom ponto de partida para marcar o tempo do romance, afectando-o da velocidade do carro e dos momentos de paragem - um reabastecimento de gasolina com a impaciência a nascer do outro lado da linha...
Expedito e realista, é uma expressão sincera daquilo em que se tornou o "amar português", de marialvas meninos da mamã e de discretas senhoras impúdicas.
Capta a forma moderna do diálogo sem deixar de atentar em detalhes que o adjectivem de literário em vez de se aproximar de uma mera transcrição.
Não sei se as referências perdurarão no tempo, mas no futuro poderá ser capaz de funcionar como registo "limpo" de outros tempos.
Não cumpre ainda com o epíteto de "Grande Ficção" que a Guerra & Paz deu à colecção, mas é um interessante exercício.
Espera-se que os próximos funcionem ainda melhor nesta brevidade imposta, pois as limitações sempre se superaram pelo aguçar da criatividade.


Quando a Chuva Parar (Joana Pereira da Silva)
Guerra & Paz
1ª edição - Abril de 2013
96 páginas