domingo, 12 de abril de 2015

Admirável criatura

O mundo em que vivemos era capaz de reduzir a história de um tigre vingativo e assassino a uma nota de rodapé em corrida veloz pelo ecrã do telejornal.
Há que ter o bom senso de abdicar desse ruído de histórias reduzidas a títulos e a coragem de se acomodar com calma descobrirá o caminho para uma história abrangente de vários entre os domínios deste mesmo mundo.
Muito antes dessa percepção haverá um thriller na natureza entre um caçador ilegal, um tigre de mau carácter e aqueles que depois lhe terão de dar caça.
Uma história de violência premeditada, de vingança e da forma possível de justiça.
Através dela descrobe-se que O tigre aqui descrito é, mais do que um predador natural, um psicopata com sede de morte, tanto capaz de montar um paciente ardil como de explodir em violência bruta.
A partir dela vai-se mais longe e descobre-se que o Tigre é animal de memória obsessiva e uma determinação estóica para contra-atacar os que lhe fizeram mal, contra quem usa uma astúcia nada temperamental.
Fica-se com a certeza de que o espécime - O tigre - que motivou este relato particular tem dimensão para rivalizar com vilões ficcionais. E ainda com a consciência de que esta espécie - o Tigre - tem traços de personalidade que o equiparam ao próprio Homem.
Ou ainda que o superam, como fica bem patente sempre que o livro desvenda os mitos que se encontram dispersos pelo mundo e que o endeusam com justificado temor e ainda mais admiração.
Os mitos são apenas a vertente mais fascinante daquilo que aqui se desvenda sobre o Tigre. O resultado Antropológico da constatação do que faz d'o Tigre um ser justificadamente reverenciado.
A Biologia pela qual o Tigre se supera a tantas outras espécies que deveriam colocar-se no topo da cadeia de forças da fauna global.
A História que atesta dos casos que marcaram a consciência da Humanidade e que nos torna capazes e reactivos perante um Tigre, ainda que seja a primeira vez que o enfrentemos.
Um conhecimento revelador e que tem o poder transformador para quem o leia - certamente pessoas escudadas da vivência dos perigos da tundra - incutindo receio e espanto que o Tigre merece.
Tudo pela força e sabedoria do trabalho de John Vaillant, que não só nos envolve aquando do relato mais excitante de perseguições e confrontos, como depois o faz de forma tão ou mais feroz quando se trata de tudo o resto que tem para dizer.
Sobretudo porque a transição da história para a História é sempre feita de forma imperceptível e com uma naturalidade que é impossível de negar.
Não há maneira de encarar um movimento d'O tigre sem ir adiante no conhecimento que o Tigre exige. Para usufruir do tal thriller que motiva o livro é necessário atravessar o Tempo e saber que posição ocupa este animal na linhagem da sua espécie e saber que papel representa essa espécie na memória partilha do Mundo.
John Vaillant compreendeu e respondeu à ânsia de compreender as repercussões particulares da caça que O tigre deu aos habitantes do extremo da Rússia em 1997 relatando muito (tudo será impossível de conhecer, assume-se) do que veio antes desses dias de carnificina.
Conhecendo no final a argúcia d'o Tigre e a forte marca que deixou na Humanidade, a leitura transforma-se em plenitude pela eminência deste ser.


O Tigre (John Vaillant)
Editorial Presença
1ª edição - Outubro de 2014
376 páginas

terça-feira, 7 de abril de 2015

Antes do tempo certo

Sabemos que a componente romanceada da vida de Jacques Coeur o tornou mais interessante do que o seu percurso tenha sido quando olhado objectivamente.
Como confessa Jean-Christophe Rufin, esta é a vida de Coeur que ele próprio sonhou ao passar a sua infância junto ao que foi um dos locais marcantes para aquele homem do século XV.
Por mim prefiro-a assim, uma história extrapolada pelo talento e que permite conhecer a personagem antes de lhe distinguir os traços frios com que a História o deixou.
Simples será ler outros textos para destrinçar a ficção da verdade nesta obra. Difícil seria embrenhar-me sem feroz espírito crítico no trabalho de imaginação de Rufin caso já conhecesse o que ele representava à sua época.
Este Jacques Coeur é um velho homem acossado por perseguidores que no seu refúgio se entrega uma última vez ao seu Passado.
Uma revisão pessoal do seu percurso mas também uma preservação do seu testemunho sobre o papel na História que se preparam para lhe negar.
Consciente da sua própria significância mas não arrogante para lhe chamar grandeza, mas sobretudo um homem que não queria ser esquecido. Nada mais humano.
Como humano é o sublinhado de que Jacques Coeur, apesar de tudo o que conquistou como comerciante e de tudo o que ajudou a concretizar como financiador político, falhou em igual medida.
Fosse porque sonhou demais e com isso conseguiu mais do que aqueles que acreditavam terem nascido com os direitos que ele alcançou.
Fosse porque foi bondoso demais com aqueles que o interpretavam como arrogância de quem podia exibir o dinheiro que lhes faltava
Fosse porque com uma inocência patriótica se dispôs ao seu rei e no mesmo instante lhe evidenciou o quanto o seu soberano lhe poderia tirar.
Afinal Coeur, o burguês, era capaz de comprar velhos castelos sem préstimo a membros da corte para garantir que estes mantivessem as aparências.
Se os mantinha era para cumprir com uma visão de infância de um mundo que ele admirava sem inveja e que acreditava dever ser preservado apesar da ascensão da sua própria classe.
Ao mantê-los irava os que aceitavam o seu dinheiro e afastava-se daqueles que com ele partilhavam o esforço da ascensão social. Um homem isolado, numa classe própria.
Essa é a realidade que o livro nos transmite com precisão, a de um homem que não teve quem se lhe equiparasse.
Um homem que na Idade Média se aproximava do Iluminismo por via do comércio. Nee se vê um homem do nosso tempo global.
Coeur viu na abertura das vias de comércio uma forma de enriquecer, claro!, a par de uma forma de ligar o mundo desconhecido àquele que habitava.
Proporcionar ao seu povo os produtos extraodinários de que outros já usufruíam. E, para tal, proporcionar a si mesmo a hipótese de conhecer o mundo.
Investigar os países com que e as rotas por onde fazer comércio para as instalar e, depois, refazer o percurso para controlá-las.
Entregando a gestão diária dos negócios a pessoas da sua confiança livrou-se do fardo e permitiu-se cumprir com os desejos pessoais e com as visões grandiosas que tinha para a França.
Apenas a má vontade alheia acabaria por o condenar indevidamente por ter conseguido cumprir muito mais do que outros conseguiriam sequer pensar.
A obra não torna Jacques Coeur perfeito mas admira-o com natural emoção que se transmite com facilidade na empolgante mas delicada escrita de Jean-Christophe Rufin.


O Grande Jacques Coeur (Jean-Christophe Rufin)
Porto Editora
1ª edição - Julho de 2014
416 páginas