segunda-feira, 28 de julho de 2014

O mito da violência

Estamos perante um daqueles romances históricos que não precisa da categorização para se distinguir entre as muitas edições nas prateleiras.
Não se trata apenas de um livro cujo contexto temporal torna mais atraente a realidade de uma história relativamente banal (sobretudo quando trata de amores...), trata-se de um relato onde o pior e o melhor da humanidade se intersectam e, em certa medida, se digladiam.
E nenhuma dessas duas realidades fica totalmente confinada a uma definição demasiado restrita, havendo matizes de (algum) humanismo nos bandidos desta história, tal como da falta desse humanismo nalguns dos mais dignos representantes da sociedade.
São estas personagens de aparição breve ou constante que tornam o livro tão cativante. Personagens bem construídas, de personalidades vincadas e presença memorável.
De entre elas talvez sejam Diogo Alves e Maria da Conceição (quase sua enteada, se é possível definir um "parentesco" verdadeiro entre ambo) os que mais se destacam, também porque a relação entre eles é a que mais causa a estranheza de como a violência e a inocência podem ter momentos de comunhão.
Algo mais do que as personagens distingue o trabalho de Anabela Natário e isso é a maneira como elas surgem integradas numa descrição meticulosa do cenário época.
O cenário social, talvez o mais importante para os objectivos do relato, mas igualmente o cenário geográfico: uma Lisboa em que todas as ruas são conhecidas e justificadamente calcorreadas, pelo que estão insufladas de vida.
Vida feita de figurantes e locais cheios de peculiaridades que soam sinceras, tanto ou mais do que os diálogos que integram os dialectos de rua ou a mera mistura do galego com o português. E sem que isso seja um aproveitamente para dar ao livro um qualquer "sabor" de época e disfarçar um menor conhecimento ou trabalho de investigação.
Tudo isto é a ficção escrita a partir da realidade, logo bem sustentada, e cujo resultado final vai um pouco para lá do entretenimento literário - diria mesmo que é uma ficção que se aproxima do trabalho que Pedro Almeida Vieira já fizera.
A descrição da violência como retrato quase banal da nossa capital em pleno século XIX é elucidativa e até assustadora.
Só que, numa aproximação curiosa ao procedural, a autora conclui o livro com o relato do julgamento do famoso assassino.
Mesmo sabendo como este terminaria, é impossível não sentir a tensão e a dúvida em torno das decisões tomadas, entre elas talvez a mais importante sendo a da monarca pela utilização ou não da pena de morte no país.
Um romance que estrutura alguma da História violenta do nosso país a partir do que é, certamente, um dos seus maiores mitos - talvez até o único do lado sombrio da sociedade.
Um romance em que a autora não deixa de arriscar em parágrafos ricos e longos, jogando com as palavras e com a pontuação sem colocar em risco o ritmo de cada capítulo; o que o torna tão bem escrito e ainda mais digno de atenção do que a etiqueta literária poderá explicitar.


O Assassino do Aqueduto (Anabela Natário)
A Esfera dos Livros
1ª edição - Janeiro de 2014
300 páginas

sábado, 26 de julho de 2014

Algumas viagens a fazer

Tenho por hábito deixar para o final do texto as considerações sobre os elementos editoriais de um livro que podem influenciar a apreciação do texto que guarda no seu interior.
Desta vez o contrário tem de acontecer pelo choque que é descobrir - já no último terço do livro - alguns contos publicados directamente na sua língua original, o Espanhol que não necessariamente na sua forma mais abrangente.
Não faz para mim sentido que numa edição nacional alguns textos - que podem ser contados pelos dedos de uma mão só - surjam noutra língua que não o Português.
Mesmo que tal tenha acontecido por uma questão financeira - todos compreendemos que uma editora que se lança no nosso pequeno mercado tem limitações nesse domínio - não se aceita.
Não é porque o Espanhol é, no essencial, parecido com o Português ou porque os leitores nacionais têm boa capacidade de adaptação linguística que se pode justificar a falta de tradução dos contos.
Tal assumpção não aconteceria caso tivesse sido convidado um escritor Polaco ou Flamengo.
O que aconteceu foi uma perda irreparável, pois mesmo com uma tentativa esforçada para ler o conto de David Toscana - escritor de quem muito apreciei Santa Maria do Circo e O Último Leitor - não era capaz de mais do que "seguir a história". As pequenas falhas na leitura não me permitiam usufruir da qualidade da escrita.
Este forte lamento numa edição tão convidativa como esta, com uma ideia editorial interessante e um título perspicaz e chamativo mas, acima de tudo, um cuidado na combinação dos textos com as fotos e ilustrações que os acompanham, parece-me um caso grave que poderia (ou que poderá mesmo, em alguns casos) colocar em causa futuras reacções a livros da editora.
Até porque, no restante, esta antologia é como qualquer outra. Alguns dos contos são muito bons e outros só podem ser classificados como falhanços.
E essas considerações dependerão sempre do leitor, mesmo se o editor poderia ter feito uma selecção de trinta autores ainda mais consistente.
Com isso em mente, abordarei apenas os contos que se destacam pela sua alta qualidade.

A Berlim de Joana Bértholo é uma execução com mestria de uma história de dissociação de um casal que é, ao mesmo tempo, a história de diferentes processos de inadaptação dos emigrantes.
Tudo com a descrição palpável de um perfil da cidade que é uma retoma mais discreta - no sentido em que é mais difícil de penetrar - do que há 100 anos atrás a tornou numa das míticas cidades do pecado.
O perfil de uma cidade que nunca se apaga, mesmo que agora esteja coberto pelo "cosmopolismo".

Mário de Carvalho dá em Ashitueba uma visão de um Futuro que é já o Presente de muitos locais. A ameaça da derrocada do que foi a capital de um Império e um dos símbolos da Europa é a ameaça sobre a persistência da memória e da consicência.
Em pouquíssimas páginas, a criação de um mundo à beira do desaparecimento e um texto com uma força de alerta para lá do seu prazer literário: da decadência não há escapatória.

Uma história de amor com todas as grandes dificuldades a ela inerentes - das diferenças de classe à pressão dos pares - numa Babel moderna, isto é a Tallinn de João Lopes Marques.
O contínuo desencontro de culturas apesar das ligações internéticas como símbolo de um mundo que está todo ligado sem sequer se ter chegado a conhecer.
E uma certa ironia para com as consequências do fim de uma história de amor para cada género, sobretudo tendo em atenção que é uma mistura de velhas realidades e modernas hipóteses que afastam um casal que na sua improvável junção tinha tudo para "dar certo".

A La Paz de Raquel Ochoa é toda ela ironia cómica (mal) tratando a diferença que se estabelece entre o viajante ocasional e o viajante "profissionalizado".
O acaso que proporciona as melhores descobertas e a sistematização que se torna num desapontamento. A ignorância continua a proporcionar felicidade, porque traz a liberdade de falhar e a superação desse facto em direcção a novas vitórias.

João Ricardo Pedro proporciona-nos uma viagem literária perpétua a Montevideu naquele que é um dos exercícios mais extraordinários do livro.
Um exercício de metalinguagem cheio de referências apaixonantes que se desejam que fossem verdadeiras. A literatura fabricada a criar desejo de uma existência real.
Um exercício ainda mais repleto de imaginação, que merecia uma extensão para uma edição independente do conto.
Depois deste conto, mais nenhum pareceu ser capaz de se destacar até ao final do livro, o que demonstra bem o efeito que ele tem no leitor.

Contos Capitais (Vários)
Edições Parsifal
1ª edição - Abril de 2013
404 páginas

terça-feira, 22 de julho de 2014

O prazer do conhecimento

Este é um livro que lida com o grande mistério do conhecimento, habilmente representado pela dúvida sobre o verdadeiro destino da Biblioteca de Alexandria.
Dos aspectos a abordar neste livro, o mais destacado é a defesa do conhecimento feita pelo seu autor, um académico que aproveita para explanar as muitas histórias da História ao longo do livro com declarada capacidade de as manter interessantes e enquadradas.
O facto da sua heroína ser, tal como ele, uma académica sobre quem cai a responsabilidade de preservar o conhecimento parece uma inevitabilidade e permite que este thriller se desenrole acima de tudo pela mente.
Claro que o exagero está sempre subjacente a este tipo de personagens, saídas de uma piscina genética onde o raciocínio lógico de Sherlock Holmes foi potenciado até um ponto de impossível brilhantismo.
Mas a forma que assume o jogo de pistas neste caso é assaz interessante, pois não envolve apenas enigmas deixados ao longo de um percurso exótico, acrescenta-lhe a decifração do condicionamento a que a protagonista foi sujeita por um seu colega, entretanto morto. Um verdadeiro jogo Pavloviano entre altas inteligências.
Estes pontos de maior interesse do livro acabam por ir disfarçando as fraquezas que A. M. Dean revela neste seu primeiro livro.
Afinal, sendo um académico e como o próprio tema denuncia, o seu interesse pelo conhecimento torna-o um pouco avsso ao entendimento da desenvoltura humana.
São muitos os diálogos que acabam por servir o propósitos expositivos das temáticas que o autor aborda. Os restantes mostram-se sempre constritos por uma falta de fluência natural(ista).
As personagens, como os diálogo, estão muitas vezes ao serviço de revelações - históricas e da trama - e não são desenvolvidas em conformidade com a importância que assumem.
Felizmente que entre o par mais importante do livro - a protagonista e o mestre que lhe passou a responsabilidade pelo conhecimento no Mundo - esses detalhes de caracterização são completados no processo da acção, ajudando a manter o interesse.
Apesar dele ser morto no início do livro, o homem que lhe passa a ela a responsabilidade vai-se revelando nas memórias do que fez nos poucos momentos em que se cruzaram, revelando um planeamento preciso e uma certa dose de mistério.
Já a protagonista, Emily, revela-se uma mulher determinada e sedenta de viver uma aventura que a leve para lá da limitação da teoria em que sempre trabalhou e do bom senso que a parece conter.
Perante a "interacção" entre estes dois personagens, a trama paralela à da dominação do conhecimento - de dominação do poder mundial - poderia ter sido mais comedida.
Um certo risco de irrealismo - sobretudo quando a salvação terá de ficar nas mãos de uma mulher recém integrada na ordem secreta dos que defendem a Biblioteca de Alexandria - leva a leitura ao limite do aceitável.
O balanço é a de um desequilíbrio com potencial futuro. E se o leitor nunca pousa o livro é porque ele próprio está seduzido pela aventura que o representa, sedento acumulador de conhecimento que se vê justificado e elevado à condição de aventureiro.
O conhecimento que o leitor obtém aqui, ainda para mais, versa sobre o seu tema favorito: livros e bibliotecas. Fica difícil resistir, convenhamos.


O Bibliotecário (A. M. Dean)
Clube do Autor
1ª edição - Março de 2014
404 páginas

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Um sítio familiar aonde nunca fomos

Um livro de viagens costuma ser o relato da partida ao encontro de um local desconhecido ou o relato do reencontro com um lugar de fascínio.
Este livro de Brendan Behan é algo de muito diferente, um conjunto de crónica pessoalíssimas de quem não só habita Nova iorque como é parte da cidade.
O seu texto é um delírio de memórias, sobretudo de eventos regados a álcool e repletos de personagens da fauna mais marcante e/ou bizarra da famosa cidade.
A combinação da narrativa na primeira pessoa com uma energia vinda da oralidade - como Vilas-Matas nos revela no prefácio - dá ao relato o poder de um êxtase.
A verdade é que o leitor não fica fascinado pelo cenrário que lhe é descrito, sente-se a vivê-lo.
Parte desse efeito deve-se à própria cidade, um antro fascinante, eterno desconhecido mas com uma familiaridade facilmente criada.
Só que esta não é uma cidade que se destaque pelos seus monumentos de excepção ou por uma beleza a cada esquina.
Antes pelo contrário, entre algumas luzes fortes são os traços negros encobertos ou vividos em privado que lhe aumenta o poder sobre quem a olha.
O que a distingue acima de tudo são as vidas que se destacam no seu interior, sobretudo as que estão repletas da boémia que conduz ao génio criativo.
Brendan Behan encontrou-se, confrontou-se e entendeu-se com boa parte dos que deram (a sua) vida a Nova Iorque, daí que esta sua crónica seja tão intensa num jogo de tirada e resposta entre ele e as figuras fasntásticas com quem ele se cruza.
A Nova Iorque de Brendan Behan é parte tenebrosa, parte resplandecente, e tão mais interessante por isso.
É a Nova Iorque em que parece haver uma tão precisa confluência das pessoas ao longo dos bairros de encontro ao escritor que a cidade parece a sua aldeia em que domina pela sua notória indiferença para tudo o que não seja o seu próprio interesse.
Com ele vagueamos pela realidade que vai de Greenwich Village à Bowery e ficamos convencidos de que somos capazes de associarmo-nos a pessoas que nunca conhecemos e responder-lhe com uma elevada dose de snobismo de verdadeiros nativos de Nova Iorque.
Com o livro a ter sido escrito pelos corredores do Chelsea Hotel, ele é o que o próprio mostra da sua cidade, uma criação bêbada e genial feita no local onde as grandes personalidades vieram descobrir Nova Iorque e acrescentar-lhe o poder dos mitos gloriosos e tombados.
Como Vilas-Matas o disse no prefácio melhor do que eu o tentei aqui, este livro deixou em mim uma estranha saudade de bares onde nunca entrei.
Esta Nova Iorque é de todos nós, que nunca lá estivemos nem poderemos estar.


Nova Iorque (Brendan Behan)
Tinta da China
Sem indicação da edição - Setembro de 2010
152 páginas

domingo, 20 de julho de 2014

E o papel do leitor?

Tenho uma relação difícil com José Luís Peixoto, daquelas relações que estão por criar. Depois de Morreste-me nunca mais o li, afastado por uma certa sensação de aplauso constante que o fabrica como figura de marketing literário cuja confirmação pode não acontecer.
Livro confirma-me que estou em dívida (comigo mesmo) por não ler mais regularmente o escritor, pois a sua escrita atinge picos de uma assombrosa beleza.
Livro confirma-me, ao mesmo tempo, que os receios têm algum fundamento e que terá de ser com cuidado que voltarei a ler José Luís Peixoto.
Da beleza dá-nos conta a forma como constrói uma realidade alargada a partir de um conjunto reduzido de personagens vivendo um conjunto disperso de episódios.
Essas personagens representam realidades grupais mas acima de tudo traçam-se a si mesmas numa complexidade que tem tanto de realismo como de literário e que proporciona a compreensão de uma realidade a par de um maravilhamento de imaginação.
Os episódios em que vão existindo são pequenas maravilhas contidas em si mesmas, micro universos literários que merecem uma atenção isolada para si mas que vão fazendo a caracterização de dois países (Portugal e França) e da realidade que os une ainda (a emigração).
Há um fascínio nas ideias que José Luís Peixoto revela, acontecimentos que nos parecem só poder terem nascido da imaginação mas que vão demonstrando que podem ser assomos de realidade trabalhada.
Sobretudo porque esses episódios estão ligados e nessa deambulação entre Portugal e França começa a encontrar-se um fio condutor de uma narrativa maior que é destes personagens e dos homens e mulheres que viveram essa mesma deambulação.
Só que à realidade adiciona José Luís Peixoto o amor literário que é seu, dos leitores e, entretanto, dessas personagens que criou.
Essa relação com os livros adiciona uma camada de impossibilidade e magia ao sofrimento que ele descreve, numa hipótese de salvação que só pertence à esperança de quem revê em histórias a História, adicionando-lhe "acasos felizes".
A ambição que José Luís Peixoto cola às páginas é a de uma elevação que a literacia, a Literatura e o livro concedem às personagens - logo, às pessoas.
Como aquele jogo de palavras sublinhadas num livro, mensagens codificadas, bilhetes de amor, conversa facilitada pelo interface de um livro. Como se as capas do mesmo protegessem aquelas pessoas e fizessem perdurar os seus sentimentos.
Tudo isto é magnífico e nele se vai vendo a promessa do que o autor enceta numa segunda parte do seu livro, um exercício de concretização literária (e gráfica) do que ele escrevera antes.
Algo para lá da metalinguagem, algo a caminho da metarealidade - que seria interessante saber se acontece igualmente nos seus livros de não ficção.
O problema é que este exercício de experimentalismo acontece em ruptura e não em integração. Fosse todo o livro um misto de espanto literário e 
Nada tenho contra o experimentalismo. Apenas neste caso esse experimentalismo surge como acrescento. Um acrescento em busca de sentidos maiores para esta execução literária.
A busca de um passo adiante na modernidade dos livros que funciona mal dentro do objecto por não estar integrada na sua totalidade.
O leitor fica com a dúvida sobre que livro está a ler. É possível reconciliar ambas as partes de Livro - estão, afinal, a rementer de uma para outra; narrativa infinita embora não necessariamente numa forma cíclica - mas não é possível acreditar que sejam ambas partes do mesmo livro.
Há um livro passado de mão em mão entre personagens e que é, no final, passado para a mão do leitor. Está, portanto, o autor a passar ao leitor o livro pela mão das suas criações.
Sendo isso uma verdade permanente dos livros, esta explicitação do processo quer ser construtiva de uma relação mais intensa do leitor com os livros, mas parece autofágica.
Falando de si mesmo - também por via do autor elencar as suas referências (quase exibindo-se) - o livro está a roubar ao leitor parte do seu papel. Um papel que este é chamado a executar na primeira parte do livro e que deveria ter sido chamado a executar com maestria se o "jogo" da segunda parte existisse com a devida imposição na primeira parte da escrita.
Por isso o papel do leitor perante este livro está manco, tal como o livro está manco com uma das suas partes desequilibrada contra a outra.
Na minha opinião é a segunda em relação à primeira parte, para outros leitores será a primeira parte em relação à segunda (embora este caso pareça mais difícil). Impossível é ficar satisfeito sem se ter recebido um desafio - um livro, o Livro - devidamente equilibrado.


Livro (José Luís Peixoto)
Quetzal
3ª edição - Outubro de 2010
264 páginas

domingo, 13 de julho de 2014

Dos que não são Dan Brown

Uma conspiração de contornos fantasiosos no limite do impossível é sempre capaz de apelar a qualquer leitor, em qualquer ponto do mundo.
O exotismo da localização da acção e das peripécias descritas aliam-se a um tema "quente" de tal maneira que uma qualquer pequena variação continua a vender, por mais que os livros se mostrem como exibições dos talentos de pesquisa e manipulação de dados do seu autor.
A hipótese de contrariar este ocupação global das livrarias, sobre a qual ouvi um certeiro "Credo, isto está cheio de Dan Browns", pode passar por livros como este O Terceiro Bispo.
Desde logo um livro que aparece com uma lógica de abordagem local, trazendo a acção até Lisboa - mesmo se com ligação directa ao Vaticano - e dando o protagonismo a uma figura realista e exemplar da actualidade nacional.
Para o leitor português poderá ser caso para estranheza inicial, este de não encontrar um protagonista que seja quase um herói, brilhante a nível intelectual se não igualmente a nível físico, vagueando pelo mundo ao sabor de uma conta sem fundo à vista.
A estranheza só pode vir a transformar-se num prazer de descobrir o modelo de um investigador nacional que poderia ver-se perpetuado.
Se nos falta a tradição da detective privado, um jornalista desempregado que tem de aceitar um trabalho de investigação secreto da parte de um advogado seu amigo pode ser uma ideia para continuar a explorar.
Com "esperteza de rua", contactos antigos e uma rede de colaboradores em potência feita de todos os seus colegas igualmente no desemprego, este é um investigador cuja eficácia está dependente de vários elementos e cujo trabalho não é imune a falhas.
Ele investiga um caso que vai interligar as profecias de São Malaquias, o terceiro Segredo de Fátima e a situação excepcional de haver dois Papas vivos.
Esta criação literária apontada em específico ao público português firma-se também no aproveitamento de uma série de elementos religiosos do nosso país - e que não são poucos, como se reconhecerá - para a trama global.
Os jogos de poder no Vaticano vêm dar com o já revelado último Segredo de Fátima, o que torna ainda mais interessante o que sucede no livro.
Não é uma grande descoberta de segredos por revelar que toma o protagonismo do livro, antes a forma como toda a informação pode ser (re)interpretada para dar sentido a uma manipulação "do povo".
O livro torna-se numa antítese do que costuma ser este género literário, dando conta de como se pode convencer o leitor com uma narrativa que é, na realidade, uma mentira com vários elementos verdadeiros - e, por isso, vendida como uma revelação e não apenas uma ficção.
A conclusão é que estamos perante uma versão realista - até cínica - do mistério investigativo mas que na sua subversão continua a cumprir para com as expectativas do género.
Sobretudo porque tem a inteligência de optar pela brevidade eficaz em lugar da exaustiva demonstração de conhecimentos do seu autor (coisa que por vezes se assemelha a uma arrogante exibição do autor perante o leitor).
Apesar desta destacada eficácia que a narrativa mostra, ficou um corte por fazer ao livro.
Os capítulos que descrevem aquela que é uma das teorias sobre o que realmente aconteceu na Cova da Iria são dos mais bem escritos do livro e dos que mais captarão o interesse dos leitores.
No entanto não fazem falta, não acrescentam nada que não tivesse sido escrito de forma mais sucinta noutro ponto do texto e parecem uma exibição de Frederico Duarte Carvalho do seu talento para a recriação histórica.
Isso acontece porque surgem como capítulo soltos no meio da narrativa que depois ficam esquecidos, sem uma utilização daquele cenário para a conclusão do livro.
Espera-se que possa haver um próximo livro protagonizado por Joaquim Barata para saber se Frederico Duarte Carvalho continua a criar um género em estilo próprio e se esse estilo está apurado ao máximo.


O Terceiro Bispo (Frederico Duarte Carvalho)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Novembro de 2013
304 páginas