quarta-feira, 24 de junho de 2009

O mundo à altura dos olhos de uma criança

Não tenho dúvidas que o sucesso de O Rapaz do Pijama às Riscas é mais do que um mero acaso.
Este livro juvenil tem o condão de estar impregnado com uma verdadeira e nada condescendente visão de criança do mundo.
Uma visão capaz de transformar Auschwitz em Acho-Vil e Führer em Fúria.
Uma visão capaz tanto de se relacionar com as crianças como de surpreender os adultos.
Porque aqui as crianças são tratadas com um respeito inabalável.
Não só como público, mas também como personagens. Em ambos os casos são vistas na sua complexidade emotiva, tomadas no seu universo singular como origem, percurso e destinatário desta obra de ficção.
Assim é possível falhar-lhes de um tema igualmente complexo sem ser preciso recorrer a explicações e evidências, mas antes dando lugar à própria compreensão - emocional, lá está novamente - de um sentido familiar e reconhecível da existência num tempo e num contexto social muito distinto.
Fala-se de e para crianças numa linguagem - e não me refiro somente à escrita mas a toda a forma como o texto foi pensado e criado - que lhes consegue ser familiar com o devido espaço à indagação e à descoberta.

Não é, de resto, estranho que os adultos devam também ler este livro pois só ele, nesta forma singular de abordar uma tragédia pelos olhos de uma criança, consegue derrubar o efeito que a televisão tem neles.
As vivas emoções, tão simples na sua exposição mas com a complexidade que há muito a sociologia evidenciou nas crianças, são a forma de encarar o verdadeiro efeito de uma tragédia.
Tornando as emoções empáticas para o leitor no desarme de pertencerem a uma criança, consegue este livro superar a barreira da "pena distanciada" que um moderno genocídio causa à distância de um ecrã.
Esse efeito pode ser tremendo e assustador, mas é certamente útil nos dias de hoje.
E este pequeno livro para os mais pequenos torna-se num verdadeiro condensado de emoções para o mundo actual.
Um livro que aborda um dos mais dramáticos episódios da História Mundial de forma inovadora, escorreita, desarmante, imaginativa, honesta, singular, sugestiva... E muitos outros adjectivos se lhe aplicariam.


















O Rapaz do Pijama às Riscas (John Boyne)
Edições Asa
2ª Edição - Janeiro de 2009
176 páginas

domingo, 21 de junho de 2009

Singularidade apreciável

Não me sobram dúvidas de que Aprendiz de Assassino é o início de uma saga de fantasia brilhante.
Logo a abrir, a qualidade da escrita de Hobb é evidente e notável.
A sua construção de um mundo intrigante sem recorrer às convenções mais comuns do género - ainda que o seu protagonista seja, como muitos dos heróis do género, um indivíduo de capacidades singulares acossado por um mundo que não o compreende - é subtil mas riquíssima.
A sua construção da narrativa, em relato directo de uma vida que se confunde com a evolução do reino; ou a caracterização de personagens são igualmente deliciosas.

Claro que Aprendiz de Assassino tem mérito muito para lá da sua qualidade como saga de fantasia.
Ao aproximar este mundo de um realismo magistral, não só pelas intrigas palacianas ou decisões que poderiam ter saído de um qualquer romance histórico, mas pela verosimilhança das suas personagens e pela naturalidade com que elas parecem tomar decisões e evoluir.
Mas acima de tudo isto está a notável essência de um romance sobre a entrada na idade adulta, sobre a solidão humana e sobre o lugar de um rapaz no mundo.
O que de certa forma resume o essencial sobre este livro, capaz de suplantar o seu género e capaz de estabelecer uma singular empatia com o leitor por via da essência que se revela para lá do exterior (extraordinário) de fantasia.


















Aprendiz de assassino (Robin Hobb)
Saída de Emergência
1ª Edição - Março de 2009
400 páginas

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Tretas não, Bullshit


Não é uma moda nova, mas parece agora crescente entre os leitores mais jovens, uma espécie de nova elite de bibliófilos.
Essa moda é a de afirmar que só lêem no original, não nas traduções que "empobrecem e deturpam" o texto original, quer na sua qualidade de escrita, quer nos seus pormenores ininteligíveis senão no original.
Não tenho nada contra tal opinião. É, em muitos casos, verdade, e eu próprio opto com alguns livros por escolher a edição original e debater-me com a minha própria pobreza (relativa) de vocabulário.
Mas esta opinião envolve um problema de atitude que parece uma arrogância de carácter e uma formatação cultural: esses originais tratam-se apenas de livros em língua inglesa.
De entre todos os motivos que haveria para optar entre as edições inglesas (ou americanas) - o preço menor, a mais rápida tradução ou a maior variedade de escolha - eles limitam-se a escolher um que parece prestigiante mas que mostra o quanto a sua cultura está reduzida à do mundo em língua inglesa.
E, apesar de todos esses motivos à escolha, esperar-se-ia que num mundo que, do cinema à internet, se encontra suficientemente anglicizado, essa mesma elite bibliófila optasse por cultivar o gosto pela sua própria língua, assim exigindo a constante elevação da qualidade das traduções e do trato com a língua portuguesa.


Por isso, sempre que oiço tal afirmação, há uma irritação que logo de mim se destila, fazendo-me perder qualquer assomo de graciosidade para perguntar irritado Então e lês russo? Japonês, talvez? Ao menos francês e italiano? Espanhol, pronto?
A resposta é sempre a mesma por parte do meu interlocutor, um embaraço silencioso.
Eu conheço as minhas limitações e confesso-as.
Leio em português e em inglês com a mesma fluência mas prefiro evitar ficar a matutar no sentido de uma palavra até conseguir ter um dicionário comigo, pelo que prefiro a minha própria língua.
Já em francês, se na banda desenhada não me atrapalho, ao tentar ler o Metamorfose dei por mim a sentir-me burro.
Quanto ao italiano, tendo comprado igualmente banda desenhada quando visitei Veneza, a parecença com o português não é suficiente para evitar que tenha de, muitas vezes, tirar o sentido da frase pelo da imagem.
De espanhol sei o que apanho dos filme de Almodóvar, o que dá para pedir direcções do outro lado da fronteira mas nunca para ler convenientemente.
Se me tivesse rendido a essa ideologia de "ler apenas o original", então teria perdido a riqueza dos clássicos russos, dos poemas épicos gregos e da diversidade das letras espanholas que existem por esse mundo fora e que sempre foram tão bem tratadas entre a edição nacional.
Seria um leitor pobre e arrogamente isolado.
A menos que Juan Rulfo, Fiódor Dostoiévski e Ésquilo sempre tenham escrito em inglês e eu não soubesse do assunto.

sábado, 13 de junho de 2009

Demais para um livro só


Achei curioso que começasse a ler O pai dos nossos pais pouco depois da revelação ao mundo de Ida, o elo que falta, e que vinha sendo estudada em segredo à conta dos fanáticos.
Aqui lida-se com o temor da prova de uma teoria contra as outras, porque mesmo os cientistas precisam de ter fé na sua crença, precisam de algo a defender.
E entre aquilo que cada um pode defender, há várias teorias que Bernard Werber aproveita para explanar neste livro, em jeito de jornalismo de divulgação científica.
Fá-lo, combinando diversos géneros, policial, romance de aventuras, reconstituição de época e reflexão filosófica.
Na essência estamos próximos de um thriller onde a ciência é veículo e objectivo.
Mas a ligação entre os géneros é periclitante e nem sempre conseguida.
Se a trama central corre no presente, há uma outra que nela ressoa e serve para ilustrar as teorias à medida que elas surgem, mas por vezes a segunda apenas vem interromper a primeira.
O rápido crescendo e resolução em forma de romance de aventuras acelera um prometedor policial fazendo-o perder a sua essência.
E nunca há ironia suficiente para lidar com as caricatas personagens ou com o desfecho que, de certa forma, desmancha toda a tensão anterior, reduzindo-a a alguma insignificância.
O resultado é menos variado do que disperso, menos entretido do que esquecível e menos provocador do que cómico.
Poderia ter sido muito mais interessante do que é, talvez se não aspirasse a "colocar o Rossio na Rua da Betesga".


















O pai dos nossos pais (Bernard Werber)
Terramar
1ª Edição - Agosto de 2002
288 páginas

sábado, 6 de junho de 2009

A solidão dos números primos

Esta é a primeira recensão a que não dou um título de minha autoria.
Afinal de contas, o nome deste livro é por si próprio suficientemente contudente sem deixar de lado o seu mistério, sugestivo enquanto lança pistas daquilo a que vamos.
Foi por ele que primeiro - e acima de tudo - quis pegar neste livro.
O seu título é magnífico.
Depois veio a capa.
Umas vezes profundamente irritante, lembrando aqueles melodramas de má memória a que o cinema italiano pareceu (muitas vezes) reduzido durante a década de 1990.
Mas outras, cativante naquele olhar andrógino, castamente provocador, com vontade de desaparecer na folhagem.
Uma capa que exige esta relação de amor-ódio e que, assim, se torna, realmente, na mais precisa capa que o livro pedia.

Esse olhar é o de Alice e Mattia.
São dois fantasmas que carregam as grilhetas do medo, da culpa, da humilhação, do desgosto.
Dois fantasmas que apenas ao tocarem-se parecem ganhar corpo, mas que assim que o fazem parecem sentir o peso das suas grilhetas ainda mais. Ou, pelo contrário, talvez sintam essas grilhetas escaparem-lhes e não o consigam aceitar.
Há entre eles um amor que se manifesta de forma quase assentimental.
O que verdadeiramente lhes resta são as dores de serem humanos e imperfeitos.
As suas maleitas sentem-se a cada pedaço de história, a cada escolha, mas nunca são definidos nem sentenciados.
Nomeá-los seria desvalorizar a complexidade do ser humano. Tentar definir ou justificar os actos de ambos seria destruir a suspensão em que seguimos os seus percursos onde ressoam os nossos próprios e os de toda a Humanidade.
Entramos nestas vidas discretamente, pois elas são já duas farpas a penetrarem nos corpos, e não temos de ser nós a cravá-las mais fundo. Nós observamos e sofremos lado a lado com elas.
Paolo Giordano foi delicado com os seus números primos e, consequentemente, nós conseguimos admirá-los e estimá-los.
São nossos, também; somos nós, também.
Deixemo-nos, então, ficar a sós com este livro!


















A solidão dos números primos (Paolo Giordano)
Círculo de Leitores
1ª Edição - Abril de 2009
272 páginas