sexta-feira, 29 de maio de 2015

Literatura excretada

Um ditador narra num fluxo de consciência alucinada a sua visão de ter deitado cá para fora um país por inteiro.
Deitou cá para fora, assim mesmo, já que o ditador crê que tudo provém do seu corpo, sobretudo do sistema urinário, mas também por via do vómito ou do sémem.
Saem dele as maravilhas que levam o país - Africano, não nomeado, mas de suspeita fácil - para diante, ainda que a sua visão do local não deixe de ser comandada por uma noção de pequena escala, de aldeia fechada na redoma de um globo que agita na mão para ver cair os flocos das suas fantasias que criam vida.
Sem ele e para lá dele, nada daquilo pode existir. Ele é uma alma sacrificada à existência de todos, seja qual for a sua respectiva classe profissional.
A sua bondade é enorme, o seu dom criativo é inigualável. Mas ele não esconde o seu próprio prazer em mandar.
Tudo lhe está submisso, porque tudo lhe provém do falo. Tudo é urinado para fora do seu corpo e para dentro do país.
O ditador desfaz-se a pouco e pouco para que o país se encha. Por isso é que ele está doente, cancro da próstata.
Só que ele só admite desfazer-se por dentro enquanto o que vier cá para fora se lhe submeta. Ou melhor, se submeta ao seu falo, a sua obsessão permanente.
O falo é a extensão da criação e aquilo a partir do qual cria a ilusão de que se convence.
A sua visão do país é uma concepção que só existe na sua mente, um erro feito de arrogância e falta de discernimento. E do falo mais a sua produção!
O país tal como o conheceremos pela mente do ditador é um "falocia", parte falo parte falácia, uma afirmação falsa porque baseadas em todos os pressupostos errados e subjectivos.
A descrição que o ditador faz é um delírio, alimentado por uma aproximação do fim da vida, numa revisão do que ficou para trás que não deixa de ser alimentada a arrogância.
No seu excesso metafórico - se de metáfora se pode falar, quando não há qualquer subtileza na comparação da criação de tudo à constante excreção por via do falo - a descrição do ditador tem uma beleza que nos seduz.
O choque é brutal. A linguagem e a imagética venceram a constatação da violência da realidade ali contada, de um homem que domina tudo e todos pelo falo.
A submissão alheia descrita com arrogância e deleite está transformada numa saborosa cadência de palavras.
A consciência - se é que se pode chamar como tal o tipo de discurso que aqui ocorre - de um homem vil a convencer-nos a estar próximos do poder e a partilhar com ele a excitação das suas acções censuráveis.
O discurso do ditador é um feito, livre de perspectivas alternativas, livre de amarras a um realismo digno de indignação.
A onda em que se torna o discurso torna simples o envolvimento com o mesmo e complica a análise objectiva que dele é necessária ser feita.
Trata-se de uma armadilha, convincente, em que o leitor cede - como o povo, como o próprio ditador - ao chamariz do poder e da sua expressão escatológica, de arrogância fálica.


O Ocaso dos Pirilampos (Adriana Mixinge)
Guerra & Paz
1ª edição - Maio de 2014
200 páginas

terça-feira, 26 de maio de 2015

Um personagem para a memória

Um estranho lugar para morrer não é um thriller embora paire em torno de alguns conceitos da estrutura do género que ajudam a encaminhar aquilo que o livro na verdade é: um trabalho de imersão num personagem em igualmente medida hilariante e melancólico.
Sheldon Horowitz é um velho de uma rabugenta ferocidade que aceitou mudar-se de Nova Iorque para a Noruega para estar perto da única família que lhe resta, a sua neta.
Alienado por um país onde tanto a Cultura como a Língua lhe parecem bizarrias, Sheldon rememoria o seu passado, sofrendo ainda mais por isso.
As suas afirmações sobre ter sido um sniper na Guerra da Coreia contrastam com as histórias passadas de não ter passado de um secretário de guerra e fazem a sua neta desconfiar de que está a ficar senil.
O leitor tem a mesma dúvida a propósito de Sheldon, porque a par das descrições vívidas que Sheldon faz dos seus tempos de sniper, há nele uma hesitação mental decorrente da velhice e que coloca tudo em causa.
Esse dúvida alimenta o interesse imediato por Sheldon, a par de um corrosivo humor que ele lança nas suas linhas de diálogo.
O equilíbrio entre as memórias, descritas de forma eximía ao ponto de serem envolventes, e os diálogos, escorreitos sem deixarem de ser propícios à idade do protagonista e ainda com um carisma próprio do seu americanismo, é um dos méritos maiores do autor.
Derek B. Miller tratou aqui de criar um personagem que se revela memorável ainda nem dois capítulos decorreram, daquelas que se tornam mais importantes do que a trama em que se inserem.
Um personagem com uma vida interior complexa (e credível) que supera em muito a vida que possa haver à sua volta - e que há, em abundância, ou não estivéssemos numa forma de thriller.
Tanto que a sua opção por resguardar e depois fugir com o filho da assassinada vizinha de cima tem mais do que uma explicação. E essas vão do estritamente pessoal ao abrangente domínio da consciência histórica.
Por um lado a incapacidade de Sheldon lidar com o próprio filho sem ser ao incutir-lhe um sentido de dívida para com o seu país - que pagará com a vida!
Por outro um sentimento de recusa de ser como os outros Europeus que se deixaram ficar atrás de portas fechadas enquanto o seu povo era levado para o extermínio.
Todas as razões que traçam um espectro de ligação entre estas duas motivações vão surgindo na cabeça de Shledon à medida que vagueia com o miúdo.
Ele que sentiu ter falhado o seu tempo de ser alguém por inteiro ao não ter podido participar na II Guerra Mundial, reclama para si uma batalha em que serve a causa justa.
O que se segue é em parte coragem e sabedoria, é em parte devaneio e tontice. A sua fuga com o miúdo tem momentos onde a lógica faz o seu papel e outros em que a rendição ao absurdo (como vestir o miúdo como um Viking Judeu) também surte o seu benéfico efeito.
Daí resulta que a fuga seja, também, aventura. Boa parte do percurso - e do percurso de leitura - faz-se como se de um avô e neto em passeio se tratassem, já capazes de se entenderem sem uma plataforma de comunicação.
O caminho que dois elementos com idades tão díspares faz é cómico e comovente em doses certas, distribuídas pelos momentos mais ajuízados para tal.
Pela mão de Miller, o que era excesso e impossibilidade torna-se parte da personalidade de Sheldon e uma pista mais para a verdade da sua existência.
Quando tudo se resolve, a excitação maior não é das cenas escritas mas de estarmos perto de compreender por inteiro Sheldon.
Esta é uma obra de contenção onde um personagem se torna o próprio motivo do livro, expandido-se numa complexidade que faz valer uma vida de mais de 80 anos e que entendemos plenamente nesta narrativa de alguns dias.
A seu lado estão outros personagens interessantes, como os inspectores da polícia que lhe poderiam demonstrar a coragem a e perspicácia que ali existe.
Só que o livro é todo ele de Shelton, uma figura que os bibliófilos terão prazer de acrescentar ao rol de heróis improváveis e seres literários que vivem bem para lá das páginas.


Um estranho lugar para morrer (Derek B. Miller)
Edições Asa
1ª edição - Outubro de 2014
304 páginas

terça-feira, 19 de maio de 2015

Romancear com a Morte

Pode ser escrito um romance que se passa durante uma epidemia tão terrível que quase dizima a totalidade da população europeia.
Um romance digno por ser tecido com enorme domínio, em tons discretos mas perto de se tornarem fascinantes. Entre um cangalheiro  e uma professora.
Um cangalheiro a braços com a constante falta que rodeia a Gripe Espanhola. Da falta de carroças para transportar os caixões à falta de madeira para os cosntruir. Mas sobretudo a falta de consciência das autoridades para a enormidade do que se passa e de que só o falhanço dos serviços pode dar conta: dos médicos, dos padres e, finalmente, dos próprios cangalheiros.
Uma professora sem o profundo sentido maternal que era esperado dela, que por ter de cuidar da sua irmã não consegue ser apoio para mais ninguém naquele tempo de morte.
Encontram-se para serem amigos, para terem alguém com quem conversar. O fascínio mútuo é quase tão intenso quanto a sua propensão para terem atitudes que  os levam a afastarem-se mutuamente.
No entanto é a sociedade à sua volta que mais os enfrenta, censurando aquela relação entre estatutos sociais tão diferentes.
Ele não está ao nível dela e tanto o seu empregado como as suas irmãs o censuram. Ela rejeita tais noções antiquadas e até faz com que a sua criada durma no mesmo piso que ela para sentir menos solidão.
Pois se ele se refugiava na música, tocando piano mesmo quando deveria estar focado no trabalho, ela encontra menos escapatória aos limites que a sociedade lhe impõe.
O romance entre eles faz-se por não ocorrer nada que o trace. Eles não procuram momentos secretos, encontram-se às claras para garantirem um ao outro companhia.
Afinal as preocupações pessoais nunca desaparecem, mesmo no meio de um evento que muda a face do globo.
Torna-se interessante que seja quase em paralelo que o livro traça o peso que recai sobre cada uma destas pessoas e que as atrai uma para a outra na busca de consolo.
A ele pesa-lhe, mais do que os mortos, a responsabilidade que tem em mãos de avisar as autoridades e garantir que elas tentem o impossível, impedir o regresso dos soldados a casa.
A ela pesa-lhe uma irmã paranóica capaz até de uma greve de fome que a vai condicionando até aos limites do ridículo. 
Uma pessoa que vive é tão importante quantos milhões que morrem. E, por outro lado, é tão destrutiva da resistência humana quanto elas.
Cada situação precisa de consolo porque à escala individual é comparável, embora nunca o possa ser à escala humana.
Tal como isso é válido para Henry e Allen, assim é para os que os rodeiam, que nunca deixam de julgar o romance entre classes sociais embora a sua mente só devesse estar ocupada com a mortífera pandemia.
Resulta num romance bem controlado em que a escala global e a escala pessoal se unem sem dificuldade.
Reina James conseguiu escrever, com bom gosto, um romance proibido numa retrógada sociedade de classes em que o contexto história não se transforma em pano de fundo nem se torna no elemento esmagador da história.


Epidemia (Reina James)
Publicações Dom Quixote
1ª edição - Janeiro de 2007
344 páginas

segunda-feira, 11 de maio de 2015

O tipo errado de "peregrino"

Estes contos de Pedro Miguel Rocha queres ser retratos de soluções utópicas para problemas do mundo actual. Do Acordo Ortográfico e da padronização do ensino da Língua  à força política e independência portuguesa.
Só com boa vontade se podem ver soluções para problemas reais quando os textos não vão para lá de uma estilo que tem muito de condescendente - até na mora com que muitos se despedem - o que lhe retira a aura de ingenuidade que pudesse ter.
Combinado com o abuso das parábolas, metáforas e personificação o livro parece mesmo um conjunto de textos infantilizantes que tomam o leitor por limitado.
A nenhuma outra conclusão se pode chegar quando um dos contos é sobre um rapaz que, num sonho, percorre um bairro onde moram os Sete Pecados Capitais e cresce para escrever um livro que transforma toda a Humanidade.
O autor até se mostra inspirado pela filosofia de José Saramago e sonha uma espécie de José Saramago e sonha uma espécie de Jangada de Pedra feita de Portugal e Galiza - ideia de Estado que o autor defenderá outras vezes - mas não há forma de levar a sério como literatura adulta estes Contos Peregrinos.
Ainda que Tiago Patrício a defenda passando para o leitor o erro pela incapacidade de se render ao sonho do autor.
Aos poucos, o cinismo quotidiano e a corrupção da linguagem roubaram-nos a hipótese de pensar a esperança e sempre que um texto evoca outras possibilidade é difícil deixá-lo chegar ao fim. O Censor que deixámos instalar dentro de nós avisa-nos do excesso de ingenuidade e faz soar um alarme porque estamos a entrar num terreno perigoso, próximo da utopia, um lugar cada vez mais impossível de visitar, tal como um futuro em comunidade.
Culpando o cinismo, Tiago Patrício transporta a rejeição do leitor para um patamar de falhanço humano.
Uma espécie de sentimento de culpa que ignora que é pela evolução - em direcção ao cinismo, se tal for sinónimo de maturidade e questionamento - que o leitor aprecia ou não o que está para lá da ingenuidade das ideias - o que, repito, não existe ou o escritor não referenciava Teixeira de Pascoaes.
Este posfácio tem, pelo menos, o mérito de desafiar o leitor - como tem o de Carlos Quiroga - a procurar no texto que o precede aquilo que outros nele viram.
(Não se encontra, mas tenta-se ainda assim...)
Só que com cada um dos quinze contos a ter o seu próprio posfácio, acabam estes por parecerem favores de circunstância na sua maioria.
Por autores melhores do que Pedro Miguel Rocha - Mário de Carvalho ou Ondjaki entre eles - que estes sejam mais significativos do que os próprios contos é um sinal terminal para o livro.
Estes contos são peregrinos por estarem muito mais para o lado do desajuste do que para o lado da singularidade.


Contos Peregrinos (Pedro Miguel Rocha)
Esfera do Caos
Sem indicação da edição - Maio de 2014
184 páginas

sábado, 9 de maio de 2015

Problemas à primeira

O Nadador mostra potencial mas sofre de problemas que se podem apontar a uma única e óbvia causa, ser um primeiro trabalho.
Joakim Zander tem boas ideias, faz uma escolha perspicaz de cenários, tenta criar personagens cativantes e coloca-as num cenário de relações geopolíticas ao longo das eras que proporciona uma base de ligação realista à trama.
Com esses elementos do seu lado o autor consegue criar capítulos empolgantes onde a tensão passa pela forma como o cenário é usado pelos personagens ou como as conspirações do poder se abatem até sobre quem julga poder delas falar numa sociedade evoluída.
Com isso Zander aproveita mesmo para fazer reflexões morais pertinentes - sem forçar conclusões nos leitores - sobre as formas de actuação (de grande e pequena escala) dos serviços americanos em cenários do Médio Oriente.
São esses mesmo personagens que estão em demasia na trama, não porque ela não almejasse o suficiente para os albergar mas porque para todos elas há a tentativa de um tratamento de primeira instância, como se pudessem ser elevados a personagens centrais sem custos para o desenvolvimento mútuo.
Até pelo investimento nos personagens que essa abordagem exige - e que não é depois compensado quando são removidos por deixarem de interessar à trama - é uma escolha contraproducente.
Todos excepto o que dá título ao livro e que é mantido em grande medida numa incompletude que quer funcionar como aura de mistério.
Justificava-se que assim fosse caso a sua relação com Klara Walldéen, a real protagonista, fosse mais difícil de definir ou aceitar.
Pelo contrário, é muito fácil - e muito cedo ainda - perceber qual a importância d'o nadador na vida de Klara e aquilo que ele vai personificar na resolução da trama.
Uma resolução que vale pela tensão que já foi valorizada, mas que não é tão complexa assim que justifique os múltiplos pontos de vista que são usados.
Por ser um momento "de acção", parece um caso de montagem cinematográfica para adicionar emoção (desnecessária) de forma artificial ao que ali acontece.
Mais visível nessa secção do livro, a pouca precisão com os saltos entre tempos, locais e personagens da história, sendo o mais comum que o autor não deixe correr o suficiente os capítulos para melhor apreciarmos as motivações de cada acção.
Por serem estas questões de execução se afirma que os problemas de um primeiro esforço, que se corrigidos pela experiência podem conduzir a uma maior apreciação das suas ideias que querem estender a consciência dura dos policiais nórdicos à leitura da política de guerra mundial.


O Nadador (Joakim Zander)
Suma de Letras / Editora Objectiva
1ª edição - Julho de 2014
464 páginas

segunda-feira, 4 de maio de 2015

À segunda

Palavra desconhecida até ao lançamento deste livro (e se existe na Língua Portuguesa é ainda uma dúvida), "informacionista" tem um sentido claro mas abrangente com um impacto significativo.
A atracção do livro está na expectativa que essa palavra provoca, de trabalho de captação de informação, de acção dissimulada, de algo muito perto da espionagem.
Pode dizer-se que o início d'A Informacionista está perto disso, constituíndo uma incursão a África em busca de uma rapariga raptada há muito tempo atrás e cujo rasto está praticamente perdido.
A protagonista chega aonde ninguém antes conseguiu sequer percepcionar e o interesse particular deste seu trabalho é que se baseia, em grande medida, no instinto e num passado decorrido naquele continente.
Ela está tanto à procura da rapariga como à procura de um reencontro pessoal com a história da qual fugiu, o que ajuda a criar o retrato de Munroe com a trama em andamento.
Conveniência aceitável para um género que quer moldar-se no interior da acção. Só que uma conveniência que acaba por vir a prejudicar o livro mais para diante.
A missão a que Munroe se propõs acabará por a colocar numa posição delicada em que as suas capacidades são praticamente ridicularizadas pelo seu falhanço em se defender por umas horas.
Aquilo a que ela recorre depois de se escapar num primeiro momento não são as suas capacidades de integração e desaparecimento mas antes velhos contactos.
Em particular um homem que deixou para trás e sem notícias por longos anos, mas que à conta de uma velha paixão sacrificará bom senso e argúcia para a ajudar.
O papel dela não fica reduzido a nada, mas não deixa de se ver reduzido a um mero catalisador de emoções alheias que dificilmente escapam aos seus encantos femininos.
O processo de minimização do feminismo do livro é contrariado pelo surgimento de um lado de figura de acção da protagonista.
O seu comportamento é de uma violência mais associada aos homens, ainda que a ferocidade do ataque corpo a corpo assente nas vantagens táctictas de um corpo feminino: velocidade e compactidade.
Como figura de acção Munroe torna-se, em absoluto, dissonante em relação àquilo que Taylor Stevens definiu já em Os Inocentes.
O maior bloco da segunda metade do primeiro livro da autora nega que o mundo em que ela se movia era o da recolha de dados e informações, com a discrição e a inteligência a sobreporem-se às armas e ao estardalhaço.
Traindo expectativas e conformando-se com a banalidade dos thrillers em que a musculatura faz mais do que o cérebro, A Informacionista revela-se um livro falhado.
Já a sua continuação, sem sequer depender da diminuição das expectativas causadas pelo primeiro tomo, revela-se precisamente o contrário: sólido e absorvente, capaz de adicionar elementos originais à personalidade de Munroe e de valorizar um sentimento de defesa da condição feminina.
N'Os Inocentes o processo está ao nível do resultado da narrativa, mostrando facetas da protagonista que pareciam elemento periféricos no primeiro livro e demonstrando as suas capacidades que ou falhavam ou estavam ausentes anteriormente.
Munroe vai actuar em nome da amizade sem perder a compostura de um trabalho onde a lógica não se pode condicionar por relações pessoais.
Agora mostra-se ao serviço dos pergaminhos que o estatuto de informacionista já definia para ela e que a autora viria a descrever ao longo desta leitura e como acima ficou transcrito.
Conhecemos de forma prática nesta trama tanto o seu meticuloso processo de reconhecimento da situação em que se vai envolver como a sua mestria no disfarce cujas bases são a sua rápida leitura das reacções alheias que lhe permitem moldar a personalidade ao que lhes agrada.
Este livro é aquele que dá consistência à táctica de se comportar como uma menina inocente para obter informações.
A par da mais distintiva - e ainda revelada no primeiro livro - capacidade para passar por um rapaz, isso torna-a num elemento de múltiplas metamorfoses em potência embora maioritariamente seja pela condição de mulher (estereotipada) que ela vença.
O uso da androgenia de forma mais vincada acaba por marcar uma evolução para a personagem que lhe serviu de modelo nos traços de feminismo sofredor, Lisbeth Salander.
Também Munroe ultrapassa uma barreira de capacidade de domínio a partir de um caso de violação.
A autora volta a conquistar o espaço do feminismo com singificado no desenrolar do livro, o que torna a leitura bem mais interessante até porque isso demonstra evolução como escritora.
A integração num culto onde jovens raparigas são prostituídas por troca de mantimentos e protecção reforça a ideia da autora estar a criar uma mulher que seja defensora de outras.
Reconhece-se que tal já fora tentado no primeiro livro, embora fosse o dinheiro o motivo e que a escravidão da rapariga acabasse por ser uma consequência em segundo plano (senão mesmo acidental) da ganância.
Sem moralismos desfasados da eficácia objectiva deste género de obra, Taylor Stevens consegue com o segundo livro criar uma personagem onde o seu género é preponderante para a definir mas que interessa ao leitor independentemente disso por ser o elemento condutor de uma história que está longe da crescente formatação do thriller.
Os Inocentes não abdica de ter um elemento de acção, mas este é um pontuar de um trabalho de campo mais complexo e meticuloso.


A Informacionista (Taylor Stevens)
Topseller
1ª edição - Abril de 2014
336 páginas


Os Inocentes (Taylor Stevens)
Topseller
1ª edição - Setembro de 2014
352 páginas