sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Alerta informático

Um grito de ajuda é um forte novelo policial onde as relações, motivações e revelações se complicam bastante até que tudo se resolva.
Um novelo policial que junta os melhores elementos do género à essência do que se denomina thriller, aproveitando algumas personagens verdadeiramente interessantes numa história mais complexa e com toques de rocambolesco que, no entanto, não ultrapassa os limites da sustentabilidade da descrença.
No entanto o que verdadeiramente o distingue, aquilo que o torna mais do que um prazer escapista, é a sua sugestão policial de valor sociológico.
Embora não seja absolutamente essencial à trama, a verdade é que cada leitor será um dos criminosos desta história.
Uma das grandes culpas aqui é a forma como a sociedade actual encara as relações.
Na era actual, assume-se como válido qualquer contacto informático, prova do bem-estar da pessoa que nos está a contactar.
Pior, com a diversidade e massificação dos meios de comunicação, torna-se a simplicidade em descaso. A era da informação serve como desculpa para adiar o contacto sério e dedicado ao outro.
Assim sendo, cada um de nós se acha culpado quando alguém desaparece, pois o contacto era sempre simples e parecia suficiente, mas no fim de contas não era verdadeiro.
A permissividade à confiança na tecnologia torna esta sociedade mais descuidada e frágil.
O crime é de todos nós, sobretudo quando nada fazemos.



















Um Grito de Ajuda (Steve Mosby)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Outubro de 2009
272 páginas

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A descoberta do juvenil

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/5/5f/Addams_Family.jpg
The Addams Family de Charles Addams

Um livro que à primeira página já convocou ao imaginário do leitor Edgar Allan Poe e Nathaniel Hawthorne, por mais que pareça, não será um livro tão comum e adolescente como alguns esperarão.
Claro que o livro tem como alvo um público que será mais jovem do que eu sou e do género oposto ao meu, mas qualquer um conseguirá apreciar o propósito simples da autora, o de relativizar a morte e a vida liceal - que, estou em crer, tem um imaginário colectivo cujo peso é muito maior na América do que por cá - por via do humor negro.
A autora faz isso criando ambientes que se aproximam, à escala apropriada, daqueles que os autores góticos criavam com o negrume do seu romantismo, conectando-os depois, com a sátira social perto de roçar o politicamente incorrecto, do imaginário cartoonesco que nos anos 1930 se gerou com The Addams Family.
Por isso é tão fácil seguir pelas páginas deste livro, entre alguns risos menos contidos e o prazer da imaginação honesta da autora, passando por citações de Woody Allen ou Laurie Anderson, recordando outras histórias e outras pérolas.
Não sou o público exacto deste livro, mas ele foi capaz de me lembrar aquelas obras da minha predilecção à idade a que ele se dirige, pelo que só espero que o público que realmente deve ler este livro possa depois dar o passo seguinte nas suas leituras.


















Ghostgirl - A Rapariga Invisível (Tonya Hurley)
Contraponto
1ª edição - Outubro de 2009
336 páginas

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Mera desculpa

Às vezes precisamos de uma mera desculpa para voltar a ler um livro que estimamos mas que vamos deixando na prateleira adiado perante a rápida acumulação de títulos por ler.
A minha desculpa, neste caso, foi a aproximação da estreia do filme protagonizado por esta criação de Robert E. Howard.
Salomão Kane é um aventureiro impetuoso e quase inconsciente. Salta contra todos os perigos inumanos confiante de que é a vontade de Deus que o conduz contra o mal, mesmo quando se trata apenas da sua sede de desafio.
Não é um herói perfeito, erra, muitas vezes é apenas um espectador dos mais estranhos acontecimentos, mas tem o ímpeto e a confiança cega - que combinados podem passar por simples loucura - que tantos gostaríamos de ter.
As suas aventuras são vividas em suspenso pois não há nada que nos faça antever as suas acções.
Ele é bravo e inteligente, um exímio espadachim, um feroz lutador "corpo a corpo" e um preciso atirador. Só que não é isso que o torna mais capaz de enfrentar os perigos selvagens, apenas reduz a sua desvantagem, pelo que ele se atira quase sem questionar, aceitando muitas vezes a morte que se aproxima apenas para se ver ainda vivo no final e então sim entender o foi que enfrentou.
Estas aventuras são escritas com uma qualidade inegável, a realidade dos confrontos é descrita com um dinamismo instintivo e mesmo os relatos contextualizadores são genuinamente empolgantes.
Empolgantes pela imaginação que contêm, pelas ligações que estabelecem a outros mitos que conhecemos bem e que em poucos parágrafos lhes dão força e os renovam ou que, mais simplesmente, os desenvolvem.
Nestas aventuras de Salomão Kane estão presentes tanto o prazer de criança a braços com laivos de acção emocionante como o prazer do adulto a ser desafiado por uma imaginação de tom elevado.
A edição da Saída de Emergência é igualmente cativante, fazendo justiça ao personagem.
Das manchas de sangue na capa aos vários pequenos símbolos e desenhos que salpicam as páginas, passando pela escolha do tipo de letra sugestivamente antiga mas nem por isso mais difícil de ler, este é um livro que causa um prazer simples de ter na mão, de folhear, de guardar.
Que outra mera desculpa surja no meu caminho muito em breve é o meu desejo, para que o intervalo de tempo até à próxima leitura de As Fabulosas Aventuras de Salomão Kane se encurte quando comparado ao que agora terminou.


















As Fabulosas Aventuras de Salomão Kane (Robert E. Howard)
Saída de Emergência
Sem indicação da edição - 2006
192 páginas

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Desbastar os resumos

Para que um exercício de humor como é este resulte, é preciso acrescentar-lhe algo e não meramente tentar reduzir uma obra a três vinhetas.
Neste caso, aquilo que o autor acrescentou foi a ironia, só que infelizmente só o fez pontualmente.
A ironia de dizer que o destino de Winston Smith como zombie que bebe gim o dia todo não é tão mau como nos podem fazer crer; ou que o facto do Cinema, numa clara excepção à regra, não ter imitado a literatura e ter permitido que John Rambo não morresse no final é de uma tristeza terrível por todas as sequelas que originou.
Nestes casos, o autor está a fazer algo mais do que resumir, está a pegar no imaginário popular - não necessariamente simplista - das obras e a relacionar-se com o leitor a um nível que permite rir do que sabemos e do que lemos e das ideias geralmente aceites.
Mas em muitos outros casos, o resumo é apenas isso, um descarnar o livro a um ponto que não tem interesse nenhum para o leitor, pois aquele que conhece a obra acha que o resumo lhe retira toda a essência e para aquele que não a conhece parecer-lhe-á uma idiotice que nunca lerá.
Porque não é possível reduzir um livro como a Odisseia a um simples Vou chegar tarde a casa... como fez António Lobo Antunes se não houver um contexto que se aplique, uma ironia de escritor para escritor que está a destacar a importância da escrita.
Essa ideia da importância de como se escreve está ausente de demasiados dos resumos de várias obras, até mesmo pela forma como elas se apresentam. Muitos destes resumos não dizem nada de relevante sobre a obra, nem sobre a capacidade humorística de Henrik Lange.
A par disto, fica ainda a pairar a questão discutível da escolha das obras.
Cada um trabalha sobre o material que - assumo - conhece, mas colocando na capa a palavra "Clássicos", convém corresponder a isso mesmo.
Portanto, o que fazem O Código Da Vinci ou O Perfume aqui?
Uma selecção mais pequena e mais pensada destes jogos literários teria dado um livro certamente mais curioso.


















90 Livros Clássicos para pessoas com pressa (Henrik Lange)
Editorial Presença
1ª edição - Novembro de 2009
192 páginas

sábado, 13 de fevereiro de 2010

De boa raça

Já antes falei de livros que se apresentam logo prontos a serem argumentos de cinema, procurando tanto a leitura como a venda de direitos fácil.
A Estirpe vem revelar, precisamente, o processo inverso, sendo visível a sua origem estrutural e narrativa ligada à concepção escrita de cenas, mas enriquecida pela dedicação literária.
Assim se tem uma história que se lê a um ritmo alucinante mas que tem uma atenção sincera para com as suas interessantes personagens.
Aliando às (reconhecíveis) originais ideias do realizador e à sua construção da história uma minúcia para com as personagens e com os detalhes quem ambientam os eventos que, deduzo, será a contribuição de Chuck Hogan, temos uma perspectiva original para um mito clássico que busca elementos modernos de thrillers para ir construindo, com vagar e dedicação, uma história que aguça a curiosidade e tem interrogações de fundo que são mais do que meros cliffhangers deixados quase ao acaso só para justificar que o leitor tenha de continuar em frente.
A Estirpe é um trabalho que merece o pouco tempo mas definitivamente compulsivo que lhe dedicamos. Agora esperemos pelo resto da trilogia para saber como vai tudo isto acabar.

















A Estirpe (Guillermo del Toro e Chuck Hogan)
Editora Objectiva
1ª edição - Setembro de 2009
560 páginas

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Vingadores

Tenho um colega colombiano que ao ver-me com A Virgem dos Sicários se apressou a avisar que as "coisas já não são assim", que o livro se referia "aos tempos mais fortes do narcotráfico".
Percebi que ele não tinha lido o livro, pois o livro nada tem a ver com esse flagelo.
O livro fala, isso sim, do apaziguamento da solidão entre aqueles que estão a perder um país e aqueles que o vêm perdendo.
Aquele que relata a história só consegue amaldiçoar o país que já não tem respeito a ninguém, mas vai ainda amando os jovens assassinos contratados que estão condenados ao desaparecimento.
Os sicários com que ele se faz acompanhar gozam o que podem nesses seus últimos tempos, apenas semi-conscientes do que os espera. Aproveitam aquilo que o narrador tem para oferecer a outro alguém - e nunca a si mesmo, cujo único luxo é o fato negro que guarda para que nele seja enterrado - e a final consciência do amor.
Os sicários retribuem como sabem e podem, com a vingança das ofensas que fazem ao homem que os acolheu.
Oferecem-lhe as mortes que ele não pediu mas imaginou até que, finalmente, ele se habitua a correr com o poder de vida e de morte - mas quase sempre de morte - como seu.
Tornam-se dois vingadores cruzando a vida, duros juízes para quem todo o crime, do verdadeiro ao merante feito da existência dos que não lhes agradam, se penaliza da mesma forma: com uma bala entre os olhos, precisamente onde se dão os sacramentos.
Este narrador que vai contando tanto é, afinal, ele próprio a Virgem dos seus sicários. Não os pode salvar da morte, mas dá-lhes a última benção antes que se vão.
Neste relato assombrado por uma melancolia raivosa, a escrita de Fernando Vallejo é uma torrente a cuja força só escapamos quando termina o livro.
Mas uma torrente que nos vai deixando imagens fortíssimas na sua margem, como a do rapaz que se vai confessar de se ter deitado com a namorada sem estarem casados, mas que não confessa os mortos que deixa no caminho, pois esses são para as consciências de quem os encomenda.


















A Virgem dos Sicários (Fernando Vallejo)
Editorial Teorema
Sem indicação da edição - Abril de 2001
156 páginas

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Trata de querer ser Obra

Com uma pequena pesquisa pela internet descobrimos que Pedro Canais se lançou com toda a determinação possível para poder escrever este livro.
Foram 10 anos de pesquisa, preparação e viagens, mais dois de escrita, sempre com Peregrinação como leitura inspiradora.
O que ele conseguiu com tudo isto foi escrever um romance que é uma deambulação pelo mundo por descobrir que se lerá daqui a 100 anos como se lê hoje.
Esta permanência faz-se com uma linguagem que tem uma erudição nascida noutras Eras e que tem também uma modernidade inteligente e plena de ritmo. Uma linguagem que fascina o leitor pela sua estranheza incial que rapidamente se torna numa interessante inventividade.
Esta permanência faz-se com um olhar crítico às ideias feitas que o mundo perpetua, que em todos os campos - político, religioso, cultural e social - serve tanto ao mundo que foi como ao mundo que agora é. Olhar para aquele tempo com os olhos de Martim Regos ensina-nos a olhar os erros que então ocorreram pelo mundo para assim sermos mais capazes perante os desafios que o mundo actual nos apresenta, demasiado próximos desses anteriores.
Esta permanência faz-se com uma personagem, Martim Regos, que atravessa o mundo sempre na ânsia de se superar, mesmo que nem sempre pelos motivos certos e muitas vezes terminando em infortúnido. Uma personagem memorável na galeria de incomparáveis aventureiros desventurados.
Este livro trata de querer ser imponente e perdurável, moderno e impregnado de um espírito clássico. Este livro trata de querer ser lido, recordado e admirado por méritos reais.
Este livro trata de querer ser Obra!


















A Lenda de Martim Regos (Pedro Canais)
Oficina do Livro
Edição especial - Fevereiro de 2009
608 páginas

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Inclinado sobre o livro

O delicioso O Livro Inclinado tem uma história muito simples, feita de pequenos episódios caricatos causados por um carrinho de bebé que rola solto por uma ladeira abaixo.
Mas a história é acessória, ritmada e divertida nas suas quadras - dois traços que a tradução portuguesa mantém e até mesmo valoriza - e magnificamente ilustrada, mas acessória.
O que importa é compreender como o mecanismo constitutivo do livro, a sua inclinação, é motivo central do jogo de leitura e de significados.
Tal como com O incrível rapaz que comia livros, aqui se apela à interacção com o significado do livro como objecto dinâmico, mutável e surpreendente.
Ao quebrar a barreira do rectângulo - como os livros de pop-ups fazem de uma outra forma - este livro cria uma riqueza para o livro que obrigatoriamente fará o leitor a ele reagir e se indagar sobre o que mais pode, afinal, um livro ser para além da definição - que neste caso significará igualmente limitação - académica que se habituou a conhecer.
Mas há algo de ainda mais curioso na inclinação do livro. Com as letras a escorregaram nas páginas da esquerda (quando temos o livro aberto) e as figuras a escorregarem nas páginas na direita, o leitor é conduzido ao coração do livro, convidado a um mergulho quase literal no interior do objecto que se apresenta à sua frente.
Onde as imagens e as palavras colidiriam está um espaço em branco, mas está também a imaginação do leitor.
O livro não só se apresenta como objecto, como obriga (agradavelmente) o leitor a tornar-se parte do livro.
Todos estes efeitos que resultam de um artifício realmente tão simples - mas que alguém teve de imaginar de forma pioneira - e todos os outros que cada leitor poderá descobrir por si, tornam O Livro Inclinado numa obra que 100 anos depois ainda surpreende e ainda merece o culto que foi ganhando.


















O Livro Inclinado (Cristina Carvalho)Orfeu Negro/Orfeu Mini
2ª edição - 2009
48 páginas