terça-feira, 20 de agosto de 2013

A razão do crime e o crime da Razão

Faz falta uma expressão portuguesa que tenha a equivalência do "crime novel", uma certa genralidade que permite compreender que o crime tem um papel central na história sem as implicações de investigação ou concretização do nosso "policial".
À falta de ideia melhor, assumo o Romance de Crime (e não Romance Criminal), para acentuar a importância do Romance com a complementaridade do cenário em que se move.
Agora sinto-me à vontade para falar de Casamentos e Infidelidades como um Romance de Crime, a história patética e assutadora - ambos os adjectivos nascidos da sua sua banalidade - de um homem que se decide matar a mulher para a poupar a vê-lo divorciar-se dela para estar com a sua nova paixão.
Como o título revela desde logo, a trama não fica neste "um para um", antes ganha contornos cada vez mais complicados em torno dos muito intervenientes que são, sem excepção, tudo aquilo que fazem por não parecer ser.
Das fragilidades que uns julgam ver nos outros sobra muito pouco, na verdade, mas de tão simples que seria de resolver, a situação central do livro torna-se no elemento essencial que motivará o passeio pela mente de Philip Bartels.
Este homem típico de uma classe média pacificada e insatisfeita decide-se e depois duvida do tal assassinato misericordioso.
Ao leitor é exposto o seu processo mental, pelo qual ele se vai convencendo das razões - a fragilidade e o embaraço da mulher - para o crime que quer cometer.
O mais consternador é o facto de parecer que ele, realmente, é capaz de crer na bondade das suas intenções, uma forma de ser um moderado tresloucado ou um psicopata com empatia.
Fica então exposto perante nós um personagem que tendo tudo para viver contentado, se decide pela liberdade e pela felicidade, concretizando-a através de um método que parece quase inocente, num tempo em que as aparências e a submissão feminina eram a norma.
E com ele fica exposta aquela sociedade que se vale das aparências, que é um tempo onde a sociedade recuperou a grande inocência depois da Guerra ter demonstrado o quão longe disso podem estar os seres humanos.
Como aliás estão aqui, pois a ideia da mentira e do crime não está só com o nosso protagonista, mas também com todos os que em torno dela gravitam.
Nenhum personagem está muito distante dessa hipótese de poupar o outro à tristeza, matando-o.
Obstinadamente, insistem em acreditar nos próprios mitos que a sociedade lhes impinge.
A par dos pecados e crimes para com os outros a que estes personagens se dedicam, há outro a que quase todos eles também cedem, um crime contra si mesmos e que é o do seu apagamento.
Uns e outros vão aceitando levar a existência que não querem mais porque acham que o seu par não sobreviverá à verdade, de que eles precisam de ser livres.
Mas se nunca ousaram tentar libertar-se é, também, porque querem acreditar na sua importância para a vida alheia dos seus presentes ou futuros cônjuges.
Equilíbrios precários para viver bem em sociedade e consigo mesmos, de pessoas com ainda menos escrúpulos do que o protagonista.
O final do livro volta a instalar a dúvida sobre até que ponto a única sinceridade possível pode vir dessa vontade de matar alguém para lhe poupar embaraços e dificuldades, de lhe poupar ter de se recolocar em sociedade, em novas mentiras - mesmo se felizes agora!
Claro que não se chega a dar tal conclusão, mas a mente humana tem esta capacidade de criar os cenários mais desejados, matizá-los com as cores de consciência mais úteis e por aí argumentar até se convencer a si e a quem oiça.
Até porque o termo de comparação será o maior dos criminosos, aquele que sem nenhum tipo de envolvimento e decidindo-se a ganhar a sua felicidade, é também aquele que recusa todos os momentos em que poderia salvar as restantes consciências e colocar todas as vidas nos eixos.
Assim se faz um emocionante retrato da sociedade que vivia de aparências, imaginava crimes e racionalizava
as razões para os cometer.


Casamentos e Infidelidades (John Bingham)
Editorial Presença
2ª edição - Julho de 2009
188 páginas

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