quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Detective escusada

O Vizinho começa mal para o leitor com o mínimo de exigência.
Não falo do primeiro capítulo, uma narração pela voz da vítima dos momentos que antecedem aquilo que lhe vai acontecer, mas do segundo que começa com uma descrição da forma como a (aparentemente) alarve e pouco exigente Sargento Detective D. D. Warren aborda um buffet.
Meia dúzia de páginas mais à frente, a descrição de um suspeito é resumida através da comparação à personagem de McDreamy e descrita através de um diálogo idiota entre ela e um outro polícia em que ele faz de conta que não conhece a série televisiva correspondente.
Talvez a culpa seja minha, mas não quero saber como uma mulher de Boston faz para encher a pança ao máximo antes de se sentir enfardada e muito menos quero ter de compreender as minhas personagens através de referências contemporâneas para as quais posso não estar capacitado.
Depois de tantos detectives de requintado gosto culinário, prefiro que os investigadores tenham um apreço especial por esta ou, então, que lhe sejam indiferentes e se nutram à base de sandes comidas no carro. Tal como prefiro que estes me descrevam os suspeitos da forma habitual.
E já que estou a dizer aquilo que gosto, gosto de personagens com nome próprio e não com duas iniciais que se lêem (no original) como "Didi" - cujas sugestões de origem são todas desprezíveis - e que passa muito tempo com falta de sexo - depois disto, continua a incompreensível mania das escritoras para com as suas personagens femininas...
Sendo que continuei a ler o livro, apesar de tudo, acabei por descobrir que esta detective nem sequer importa à história. Anda por lá mas a sua determinação é limitada pela necessidade de mandatos, a sua perspicácia é limitada pela sua falta de instinto e a sua eficácia é limitada pelo seu desconhecimento dos temas mais importantes envolvidos na investigação.
No final, ela nada resolveu nem nada se mostrou. Foi uma personagem que não foi capaz de apresentar um único traço de personalidade ou um único talento.
Compreendido que este policial não chega a ter uma detective, é possível olhar com algum tacto para ele.
Há uma variação de thriller aqui metido em que todas as restantes personagens envolvidas têm uma história passada conturbada e interessante.
São essas vidas passadas, todas repletas de traumas socialmente silenciados, que moldam as atitudes correntes das personagens.
Personagens que são, sem excepção, dúbias. Os traços do seu comportamento deixam-nos sempre indecisos quanto à avaliação de "bom ou mau" que teremos para elas.
O livro tem dois traços que procura tornar didáticos através dessas personagens: a pedofilia e a internet.
Há algumas reflexões sobre como o sistema penal olha sem distinção para todos os casos englobados na denominação de "pedofilia" e muitas explicações sobre os traços deixados por qualquer passagem pela internet e as formas de os descobrir. Não se alongam demais mas deixam alguma ressonância no leitor.
E tornam mais óbvio que não é pela investigação policial que este livro se torna interessante. Este deveria ser um drama centrado nas personagens e, eventualmente, nas suas fugas.
Claro, continuaria a ser um drama misturado com thriller, mas deixaria em pano de fundo e despersonalizada a investigação policial (como, afinal, já acontece) e aprofundaria mais os dois temas que tomou como centrais levando a exploração do passado das personagens ao extremo ao invés de os guardar para revelações finais.


O Vizinho (Lisa Gardner)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Maio de 2011
360 páginas

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Um truque de um policial

O que há para além de um título que parece um truque de marketing para programar uma colecção de policiais com vinte seis títulos obrigatórios?
Para esta questão julgo que a resposta primeira é a de que a série é protagonizada por uma investigadora privada, profissão menos habitual para as mulheres protagonistas que costumam estar ligadas à polícia ou serem meras diletantes.
Depois tem de vir o policial comme il faut para que se comece a acreditar em que há algo mais do que duas ideias a tentarem vender livros.
O início é “tremido”. A narradora apresenta-se como mulher duplamente divorciada mas cheia de amigos, que gosta de viver em espaços reduzidos mas que passa o tempo a viajar de um lado para o outro. E que acaba de matar alguém pela primeira vez na sua profissão mas ainda não sabe bem o que sentir.
Isto tudo bem na forma de uma espécie de recado dactilografado que também avisa que a investigadora escreveu dois relatórios de linguagem seca, um para a polícia e outro para os seus arquivos.
A apresentação através de composição da primária é forçada a abrir o livro. Parece mais sinal de preguiça de quem quis despachar a construção da personagem para depois não se preocupar com os detalhes de personalidade ao longo do livro.
A revelação de que matou alguém é um truque desnecessário que não aguça mais o interesse à conta disso, nem origina nenhuma inovação narrativa pois para a forma como o relato começa é como se o recado nem sequer existisse. O seu único efeito real é estragar os eventos do último capítulo quando se dá o confronto que resolve uma parte do que está a ser investigado.
Ainda assim, essa é a revelação menos importante do livro. A verdade sobre o caso a ser investigado, pelo menos a verdade “maior”, está resolvida a meio do livro.
As grandes pistas que colocam o leitor em alerta são reveladas sem nenhuma cautela, com linguagem denunciadora que as torna impossíveis de ignorar.
Só a protagonista é que não dá com elas e a razão é a que contraria a boa ideia de criar uma investigadora privada: ela anda seduzida pelo homem de quem deveria suspeitar.
Não é que os grandes detectives privados não se tenham envolvido com umas quantas femmes fatale, mas mantinham alguma desconfiança porque há sempre pistolas que cabem numa mala de mão!
A investigadora com uma dedicação à profissão que rivaliza com a de qualquer homem criado pela ficção é, afinal, uma mulher solitária sujeita às suas hormonas e ao desejo de não acabar sozinha - pelos visto não conta que aos 32 anos já se tenha divorciado duas vezes e não goste de ter uma vida fixa.
Sue Grafton é mulher mas não deve ser feminista ou não humilhava assim uma mulher que criou para se afirmar num mundo habitualmente masculino.
Volto à pergunta inicial para lhe responder em definitivo. A resposta primeira é, também, a resposta única e uma que se dá à força de bastante boa vontade depois de ver o que o livro faz com essa “inovação”.
Tenho comigo o segundo volume da saga e a minha intenção de lê-lo de seguida desapareceu por completo. Aliás, a minha intenção de lê-lo.
Como ainda não acabei de dar vazão ao muito mau humor gerado por esta leitura, ainda tenho mais um parágrafo a acrescentar sobre a segunda letra do alfabeto a que se dedicou Sue Grafton. Se bandoleiro era demasiado rebuscado para a tradução de "B" Is for Burglar, pelo menos bandido tinha uma relação genérica mas fiel ao original. “B” de Busca é preguiça da tradução a juntar à da autora!


"A" de Alibi (Sue Grafton)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Abril de 2010
220 páginas

sábado, 27 de agosto de 2011

Um fim a que voltar

Como diversos dos melhores livros que já deveríamos ter lido há muito sem saber porque tal não aconteceu, O Fim do Sr Y esteve comigo durante mais de um ano até que a pessoa a quem pertence me interrogasse pela sua devolução.
Nessa altura comprometi-me a ler o livro sem mais demoras e agora mal posso esperar por o reler. É um desses livros que não se esgota senão quando a nossa capacidade para nos abrirmos às suas ideias.
Um exemplo simples é o nome da protagonista, anagrama de I AM NOT REAL, informação que é como os grandes twists finais de Hitchcock que só nos adoçam o segundo visionamento do filme na busca dos detalhes significativos.
Este é um trabalho de uma imaginação extraordinária, repleto de reminescências de outras obras que merecem o nosso apreço, mas trabalhando-as até serem um todo que supera um somatório de reconhecimentos e referências.
A Fenomologia de Martin Heidegger, a militarização new age (ver aqui), o sobrenatural Gótico, a Alta Ficção Científica de H.G. Wells a Arthur C. Clarke, a realidade consciente de The Matrix... Estou só a citar as evidentes para não me precipitar em erros sobre temas que ainda não aceitei estarem ou não lá.
Convém entrar uma primeira vez despreparado no romance e uma segunda vez com a pesquisa feita em todos os domínios em que detínhamos falhas.
A vez a seguir (e, se calhar, mais uma ou duas ainda) já será para comparar os nossos argumentos contra os da narradora.
A partir daí, talvez possamos voltar apenas para apreciar a criação e a composição de Scarlett Thomas.
Seja como for, temos de voltar ao livro, isso é inevitável. Mesmo assim nada garante que saibamos ler todos os sentidos do livro e da sua enorme reflexão.
Porque isso é o livro, sem que notemos, num cenário tão bem inventado que o disfarce é parte do prazer.
O livro tem algo de aventura erudita enquanto se lida com o livro dentro do livro e algo de thriller ideológico em vez de físico.
Mas é a colisão interrogativa de assuntos - filosofia criada no processo de descoberta ou experimentação em sabedoria aventurosa, nem sei bem como lhe chamar - que o livro se faz, nos enriquece e se eterniza.
Brilhante é o que me apetece dizer, mesmo com o risco da proximidade afectiva da leitura me possa estar a afectar o juízo que lhe faço.
Sobre os elogios ao livro, apenas ainda não estou certo se o epílogo os merece. É demasiado evidente no caminho para o qual nos leva. Mas com um dos regressos ao livro, espero conseguir tirar uma conclusão.


O fim do Sr Y (Scarlett Thomas)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Junho de 2008
432 páginas

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Realidade policial

O relato sobre o roubo do La Joconde começa no estilo que só a França poderia proporcionar: um crime fantástico ocorrendo por entre a serenidade geral.
Era um período inocente em que o país confiava no estatuto da Arte para precaver qualquer crime, deixava os seus quadros serem levados da parede sem qualquer pedido ser necessário e admirava as paixões dedicadas pelos artistas mais excêntricos aos seres dos quadros.
O roubo ocorre deixando um rombo no prestígio e na confiança de Paris e do Louvre mas não há tempo para receio sobre o destino do quadro quando nos envolvemos no policial em que a personagem central é sedutora e vítima, mulher e quadro
A obra estava esquecida, amada apenas por alguns poetas que lhe deixavam flores. Era uma mulher extraordinária para uma mão cheia de homens sensíveis mas era um quadro menosprezado pelos artistas emergentes.
Depois de roubada tornar-se-ia na imagem mais vista em todos o mundo e viria a tornar-se num mito sem igual.
O relato é sobre este roubo e esta transformação. O roubo de La Joconde tornou-a no ícone que é hoje.
A sua falta no Louvre tornou-a na obra que todos os olhos reconhecem mesmo se nunca saíram da sua aldeia natal no Perú.
Um relato detalhado que cobre todas as hipóteses e todos os desenvolvimentos, mesmo os que surgiram décadas depois.
Sendo um relato aprofundado sobre o roubo, há uma secção do livro que diverge para informação importante sobre Picasso e Apollinaire devido ao seu envolvimento nas peripécias legais que se seguiram ao roubo.
Informação que aprofunda o entendimento de quem eram aqueles homens e do porquê de agirem da forma que agiram no contexto do caso.
Aí o livro perde o foco, uma inevitabilidade para um relato que supera a mera peça jornalística. Mas, mais importante do que isso, o livro perde uma oportunidade.
Os dois homens pouco acabaram por ter de relação directa com o roubo do quadro (que se saiba...) e, por isso, seria mais importante que a autora explorasse o que está logo abaixo da superfície.
A inocência de um Velho Mundo - com a França, ainda e sempre, a representante maior - crente no poder dos valores palpáveis da Arte como elemento fundamental de identidade e respeitada acima de tudo o resto como algo maior do que o Homem; contra a ferocidade exploratória do Novo Mundo - pela mão dos inevitáveis Estados Unidos da América - sedento de entretenimento e reclamando a posse individual do património geral.
Este relato do roubo do que era um quadro parcialmente esquecido e é agora o quadro mais famoso do mundo é o nascimento do noir quando os seus personagens ainda eram inocentes para assumir tal exercício policial contra um roubo repleto de cinismo, algo que os jornais internacionais acabariam por explorar a fundo desde logo e ainda durante alguns anos mais.
O livro de R. A. Scotti - uma forte surpresa, apesar de tudo o que eu possa ter apresentado em contrário - é quase um exercício de realismo em ficção policial. Só que essa descoberta só chega no final do livro e, talvez por isso, ficou por ser explorado.


Mona Lisa desaparecida (R. A. Scotti)
Casa das Letras
1ª edição - Julho de 2010
260 páginas

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O épico do pequeno país


Comprar uma casa é comprar uma história de família. Comprar uma história de famíia é comprar uma história da vila. Comprar uma história da vila é comprar uma história do país. Comprar uma história do país é comprar uma história das pessoas.
O contador vai descobrindo a história que podia ser um fôlego longo sobre uma vila do interior de Portugal ou um retrato julgador do círculo fechado das vidas sempre cosidas umas às outras. Não é mas mesmo assim passa por ser o épico de famílias grandes e homens sós.
Um épico corrido sobre a realidade nacional, uma realidade que atravessa o Atlântico e que, nem por isso, deixa de ser uma realidade vilanesca.
Em vez dos personagens memoráveis ao serviço de um grande amor temos a tormenta de muitas pequenas personagens em um único novelo de pequenos dramas.
O épico deste país corre em poucas páginas - contadas contra a dos grandes romances de outros países - e sempre com um entendimento rústico da nossa grandeza.
Um épico com um olhar que nos sabe pequenos mesmo quando a nossa pequenez é feita da humildade à cabeça erguida de quem conquistou o mundo e partilhou a Língua em todos os continente.
Um épico que cobre muitas décadas sem um friso por onde seguir em linha recta. Segue pelos caminhos inconstantes que falam da própria arte de contar.
A memória não tem fluxo constante nem percurso suave. E, como tal, o acto de contar a história de uma personagem não se deixa limitar.
Vagueia no tempo a personagens que lhe estão antes e depois, que falam sobre dela ou que ouvem (e recontam) sobre ela. Passeia pelo Tempo, perdendo-se para reencontrar temas que são eternos, para as personagens e para o interior do país a que estão condenadas.
O contar a história é um acto que salta de género em género até que do folhetim de onde partiu encontra a poesia.
Dos saltos se fez épico. Dos dados no Tempo para atravessar gerações de uma história só. Dos dados na escrita para atravessar os talentos de um país só.
Todas as histórias são iguais. Todas as Eras são iguais. Nenhuma escrita é igual.
O verdadeiro épico é o da demanda pela linguagem original, sem restrições na sua mistura, louvando o muito que este país soube (e sabe) escrever.
Para um país pequeno um épico verdadeiro será sempre do que fez com a Língua para se engrandecer no mundo!



O Prazer e o Tédio (José Carlos Barros)
Oficina do Livro
1ª edição - Junho de 2009
192 páginas

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Do sexo e da mente

O narrador de Nuno Júdice parte da sua memória de A filosofia na alcova para perseguir as memórias do que foi o seu primeiro encontro com o entendimento da sexualidade.
Memórias que o levam, também, a Odisseia ou Em busca do tempo perdido, em busca de referências para definir o seu papel num falhanço amoroso
O livro O Complexo de Sagitário acaba por perseguir a mesma filosofia do livro que homenageia, ou seja, uma intelectualização do acto sexual.
Se bem que aqui o acto sexual não tem a variedade ilimitada da obra de Sade, pelo contrário é a inconcretização do acto que merece a reflexão do narrador.
O seu entendimento de si próprio naquele momento particular de recusa de um corpo feminino ocorre ao olhar para a mente e não para o corpo.
O desejo físico existia mas a visão do que estava para vir falava-lhe do que tinha acontecido em textos que o moldavam. Textos que aconteciam na mesma realidade que aquele encontro, porque a leitura concretiza-se na memória com o mesmo impacto.
O problema não vem do homem e da mulher ali presentes mas dos homens e mulheres que foram antes deles - em texto - que se moldaram na realidade do narrador mais intensamente do que aqueles dois corpos ali prestes a encontrarem-se.
O casal que que por pouco não se concretiza em tudo se compara aos casais que foram e, portanto, em tudo suscita a memória do que haveria de se tornar.
O texto é belíssimo, poético como não poderia deixar de ser, e algumas das dissertações associativas entre a ficção própria e a ficção alheia - aquilo que a sinopse apelida de ensaio mas é, possivelmente, inclassificável - são memoráveis como parágrafos que queríamos
Só que nem sempre os traços de ficção conseguem sustentar o ensaio enquanto este, por momentos, se sobrepõem também à expectativa de composição de uma história (sem que tal tenha de ocorrer em moldes conformistas).
O modelo desta novela, pela necessidade de combinação de elementos em uniformidade sensitiva, é um risco. O belo resultado, apesar de imperfeições, merece que que a leitura seja o nosso elogio a Nuno Júdice.


O Complexo de Sagitário (Nuno Júdice)
Publicações Dom Quixote
1ª edição - Fevereiro de 2011
136 páginas

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Uma estrutura quase ideal

Há que reconhecer que Antes de Adormecer faz uso de uma brilhante estrutura que reduz o tempo real da história a um mero dia enquanto consegue alongar o tempo estrutural da história a vários anos.
Estamos no momento essencial para se desvendar a trama dado que isto é um thriller dependente do momento em que a sua protagonista adormece, mas a introdução do diário mesmo a meio do livro alonga a experiência do leitor através dos olhos da vítima.
As revelações estão sempre dependentes de como ocorreram para Christine ao longo dos dias em que tomou nota das poucas memórias que vai tendo, mas acabam por acontecer em catadupa, umas vezes contradizendo-se outras ficando desconexas.
É um efeito da memória fragmentária muito conseguido em livro, dado que a personagem não conhece nada do que está escrito e tem de se familiarizar com toda a realidade em poucas horas, antes que adormeça e, eventualmente, se esqueça de tudo isso novamente.
O leitor está nas mesmas condições desta personagem e se a ideia é criar uma relação entre os dois, nada melhor do que tal técnica quando se trata de um thriller.
Não se trata apenas de frustar a ânsia do leitor em busca de respostas rápidas, mas trata-se de criar o sentimento de repetição cansativa e que causa o fechamento da mente sobre as considerações relativas à vida de Christine e não sobre o eventual mistério que está por desabrochar na sua plenitude.
O leitor é chamado a olhar para um lado através de um efeito essencial de imersão do único ponto de vista narrativo possível, enquanto as ocorrência maiores se resguardam .
O que isso também nos dá é um drama bem conseguido sobre uma personagem com características únicas, algo que está para lá de géneros literários e só beneficia o livro.
Já a forma como S. J. Watson avança para a resolução da trama é mais fraca do que deveria. Com um leque reduzido de personagens e hipóteses, mesmo com uma ou outra boa tentativa fazer a mente do leitor divergir naquela natural paranóia de cobrir todos os ângulos e descobrir o final do livro antes de lá chegar, não há muitas hipóteses de falhar no momento de determinar quem é o grande culpado e porquê.
E a grande cena final, um confronto ao género de filme, é mesmo o elo imaginativo mais fraco do livro que se fica por ali sem saber depois sugerir as dimensões mais perturbadoras do que está para vir.
Não é causa para deixar de ler o livro, apenas para se esperar que, numa próxima tentativa, a excelente ideia do autor para o miolo do texto tenha a devida correspondência nos momentos entre os quais fica suportada.


Antes de Adormecer (S. J. Watson)
Civilização Editora
1ª edição - Maio de 2011
344 páginas

domingo, 14 de agosto de 2011

Crime à beira-mar plantado

Não se sabe o que esperar de um livro que é, até certo ponto, um texto de História (melhor, da particular História do crime nacional). Mas que, no fundo, é uma revelação do Passado para a modernidade.
Os relatos apresentados são aquilo a que chamaria um discurso do comediante intelectual. São construídos naquela forma de quem conta uma história pontuada de comentários irónicos, mas a quantidade (e qualidade) da informação impede sempre que se reduza o que se lê à mera piada curiosa.
No seu conjunto - embora ainda estejam longe de uma totalidade, visto que haverá um segundo volume e sabe-se lá quantos casos ficam de fora - dão um retrato de um país que sempre viveu perante uma violência generalizada e gigantesca.
Violência que era partilhada entre os criminosos e homens da lei. À violência (ou mera ameaça de tal) dos primeiros respondiam os segundos, por vezes, com medidas extremas.
A violência era regra abusada por todos, pelo que se tornava natural conviver com o incómodo permanente causado pelo crime e o espectáculo macabro causado pelo julgamento (cuja sentença, de tempos a tempos, lá conseguia encontrar a sua forma de justiça).
Havia um ou outro acto de clemência, mas a população tinha o gosto por seguir as consequências da violência e, sobretudo, as revelações idioticas dos menos brilhantes dos seus executantes.
Claro que nestes relatos não há só um festim de carnificina. Há também detalhes fascinantes a reter, dos pessoais aos Históricos.
Até os primórdios daquilo que as séries de investigação criminal tornaram em léxico comum surge aqui, como na forma como se começaram a fazer recolhas para descobrir traços de sangue subsistentes num chão lavado.
Mas a violência está primeiro, fascinante e, acima de tudo, clarificadora sobre a convivência deste país com o crime e o seu relato. O número de textos literários escritos a partir de alguns dos crimes aqui presentes surpreende e acaba por nos entristecer que a versão moderna dessa leitura popular tenha passado das mãos de Camilo Castelo Branco para as dos jornalistas do Correio da Manhã.
No fundo é uma leitura essencial - e muito bem conduzida por um interessado com um minucioso grau de pesquisa feita - para um Portugal de outrora que se vai alongando para o século XXI de formas menos honrosas - isto, claro, se entendermos a justiça violenta de outrora como honesta apesar de errada.
Só em direcção ao final do conjunto dos relatos perde-se a sensação de descoberta. O interesse já não é tão acentuado pois a novidade já se esfriou mas, sobretudo, porque os Roubos de Sacristia não têm a panache do Banditismo à Moda Lusitana nem os Crimes do Diabo aguçam os nervos como as Mortes de Alcova.
Estruturalmente, este era um livro em que a escalada de violência vinha a calhar, pois era também uma escalada de riso.
O mesmo, já agora, se deve dizer das ilustrações que vão passando de leituras próprias dos relatos a reproduções dos mesmos. Mas, lá está, julgo que tal continua a ser culpa da menor inspiração que a Inqusição causa quando colocada lado a lado com um (imaginário) "par de cornos".


Crime e Castigo no país dos brandos costumes (Pedro Almeida Vieira)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Abril de 2011
200 páginas

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Desconchavado

Um homem teve cinco mulheres, todas elas arquétipos do que está em falta no bom homem - também um arquétipo, que o nome Adriano Gentil bem traduz - seja o afecto da mãe quando miúdo, seja o desejo sexual quando velho.
Um homem tão bom amou sempre os arquétipos (leia-se esposas) por igual -  por ordem: lindíssima mas fria na cama; organizada até ao último fio de cabelo mas tresloucada na cama; um furacão de energia sedutor mas extenuante na vida comum; a perfeita devota do seu santo homem mas que se abandona porque o aceita calada; e a cabeleireira de carnes vivas em licra berrante mas sem refinamento que lhe valha.
E com tanto amor achou por bem garantir-lhes um fim de vida igualitário e comum em que devem gerir a herança em conjunto.
Apresentadas que são as mulheres e as respectivas relações - é, pelo menos, metade do livro - entra em cena o retrato de grupo no feminino, aguçando a promessa bem francesa (culpe-se Jacques Demy ou François Ozon) do melodrama .
O autor lá caminha para os exageros dramáticos tão ansiados, mesmo se trai a montagem livrando-se sem savoir faire de personagens que não lhe servem os propósitos, oferecendo o crime de faca e alguidar (não tem, nem poderia ter, outra designação) tão anunciado com engenho mas pouca graça.
Quando o crime se desenrola até ao final possível, estamos pouco convencidos, mas depois chega um inesperado Post Scriptum que se faz diferente mais do que faz diferença.
Surpreende aí o livro porque termina com a assombração da vida feminina - vá, da vida humana - que deve algo a Edgar Allen Poe mas que não deve nada ao que ficou para trás.
O melhor do livro é a sua ideia final, a reinvenção tenebrosa da realidade idosa nacional, que é um corte total com a croniqueta de vidas conjugais pouco maduras.
Que tão bom final esteja num livro que aponta a todas as direcções excepto essa deve ser culpa de um autor apaixonado pelas suas ideias e que não soube descartar o frívolo que tanta vontade tinha em descrever.


As herdeiras de Adriano Gentil (José António Saraiva)
Oficina do Livro
1ª edição - Junho de 2006
196 páginas

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Magia literária

Ainda há alguns livros atrás a linguagem comum entre seres estava em foco e já sobre ela leio de novo.
David Soares, apesar da ternura, estava a contar o fim dessa linguagem comum. Verónica Murguía, não sem dor prolongada, está a contar a redescoberta dessa linguagem.
Esta é uma demanda acidental que leva Auliya do entendimento das monções à imersão na fantasia alheia.
Do medo que causava aos que a rodeavam acabou por se tornar símbolo idolatrado do inexplicável, tal como o coxear pelo qual a denegriam passou a ser a marca fantástica da sua existência para lá de terrena.
Ela entendeu, primeiro, o comportamento da água, depois a voz dos animais e, finalmente, o próprio encantamento que rege os seres lendários.
A travessia do deserto - repleta de miragens, de tentações, de desafios, de medos - é obrigatória e significativa, como tais sequências sempre foram na literatura, para se atingir o formidável momento em que a heroína deixa de compreender a linguagem universal para passar a fazer parte da existência desse estado maior de possibilidades, em que os seres se compreendem inteiramente.
Já não somente seres terrenos, mas todos os que existem invisíveis para a maioria da Humanidade.
Aquilo a que se chama Magia, e que está praticamente ausente do mundo moderno, é apenas esta forma de estar aberto às impossibilidades do reconhecimento. A existência despreocupada com o julgamento (racional) alheio, mas capaz de aceitar a ligação inesperada da sua própria voz (da imaginação) à de um escorpião ou de um djinn. E criar o espaço comum em que se ensinam mutuamente, pelo bem e pelo mal, mas sem deixar de percorrer o infinito defronte dos olhos!
Através da linguagem escrita, repegou a autora nas linguagens que olhavam de modo diverso para a mesma (ir)realidade e, d'As mil e uma noites aos cadernos de Bruce Chatwin, seguiu reunindo-as no momento em que poderiam estar esquecidas.
Percebeu que essas linguagens se entendiam, bastando que alguém as juntasse, e por isso conseguiu com elas criar uma nova imensa tradução do inaudível pelo mundo.
O seu próprio acto de Magia literária é a criação de algo de tão genuíno e repleto da tradição contista do mundo.


Auliya (Verónica Murguía)
Ambar
1ª edição - Maio de 2003
200 páginas

sábado, 6 de agosto de 2011

O percurso das vozes

Como fazer um caminho por vinte e nove vezes acompanhado de um outro ser - e de um mouro morto na bagageira - e não ceder um pouco de si mesmo? Ou ainda, como não sentir ceder um pouco de si mesmo?
Ainda que se sejam homens, moralmente censuráveis e dependentes do secretismo. Ainda que a discrição e o silêncio sejam as características - e as necessidades - maiores de tais tipos, como não ceder a partilhar algo...
Assim vão os dois personagens no carro, falando um com o outro sobre tudo e sobre nada, o que é o mesmo que dizer sobre a realidade do fluxo da população mundial e sobre as suas próprias pequenas existências.
O diálogo parte e retorna, enreda-se e expande-se, perde-se sem nunca lhes fugir porque estão ali inevitavelmente trancados há vinte e nove sábados e crê-se que estão muitos mais por contabilizar.
Vão abafando a culpa e a solidão criando uma intimidade estranha a partir do debate entre a funcionalidade pública daquela morte sistemática - o emigrante serve para deitar ao Canal da Mancha para que se saiba que todas as semanas morre, pelo menos, um dos que o tentam atravessar - e a moralidade daquela morte sempre única - os olhos dos emigrantes têm sempre cores diferentes que se vincam na memória.
Um está pela ideia de que se matem os emigrantes em massa para dar uma noção pública do descalabro, ao outro custa-lhe que este vigésimo nono não pareça já uma mancha difusa dos anteriores.
Um é novo e o outro é velho, mas provocam-se pelo (pouco) que ficaram a conhecer um do outro: os sonhos ou os amores.
Fizeram-se companheiros a partir do seu silêncio e sem conhecerem os nomes um do outro - ou assim nos parece, e nos parece mais trágico, a nós que também não os saberemos - mas sabendo que a partilha daqueles longos percursos entre vida e morte os tornam irmãos para sempre.
Mesmo se eles próprios reconhecem que, de futuro, se evitarão ao cruzarem-se na rua, porque a vivência daquelas viagens não pode existir em mais parte alguma.
Sem estrutura, sem narrativa, sem descrições, o romance é todo uma sucessão de diálogos que existem em abstracto. E, como tal, de dois seres que não existem senão encerrados naquele carro.
Se é verdade que qualquer diálogo pode existir cerrado para as condições exteriores, aqui sente-se que, numa viagem de carro de setecentos quilómetros, só a mera noção de movimento, de alteração do cenário ou do mero cansaço dos dois viajantes deveria influenciar a percepção do diálogo.
Falta a estas duas vozes a reverberação dos faróis e a modulação do caminho para as tornar mais vivas e não as vozes de um calmo debate protegido da realidade.


Afogados (Carlos Eugenio López)
Estrofes & Versos
1ª edição - Agosto de 2010
192 páginas

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Crónica do que se perdeu

Trinta anos passados, dos bons malandros Mário Zambujal passou aos loucos amantes. Duas crónicas de distância para dois Portugal diferentes. Dois livros que não podiam ser mais constratantes.
O primeiro tinha a inventividade que levava abelhas para um assalto à Gulbenkian. Este tem a evidência que a nova criminalidade nacional só tem razões desinteressantes e meios repetitivos.
Há, também, dados em comum entre os dois livros. Sobretudo a facilidade do jogo com a Língua Portuguesa, a sua abordagem solta das amarras castradoras mas reverente à eloquência que ainda suscita o prazer na leitura.
Mas até a Língua popularmente rudita passa de saborosa a estafada à conta da historinha aqui escrita.
Este livro tem uns casos amorosos, perturbações de desejos achados e perdidos (e achados novamente), tudo indigno a menos que se queira escrever uma telenovela.
Algo que compreenderia se fosse para massacrar a partir do seu interior com o género ficcional que Portugal mais idolatra, mas nem isso.
Há personagens que fazem o típico novo "malandro" - aldrabões que fogem para o Brasil depois do golpe
Não há ironia suficiente nessas figuras, nem na sua disposição dentro da trama, para evitar que o mistério que surge se resolva da forma absolutamente previsível.
Seja a forma do romance já sem graça - quando o rapaz que percebe que aquilo que queria esteve sempre à sua frente - ou a dos mistérios despachados "a metro" - com o telemóvel a vir em socorro da verdade como solução mais básica da vida moderna - o exagero não é grande o suficiente para o humor surtir efeito e o resultado final é um modelo colado ao que deveria ser ironizado.
Os amantes não são assim tão loucos e, portanto, a sua história não é assim tão risível. Vai daí que o país saia limpo desta (suposta) provocação.
Esta nova leva de malandros (nem que sejam mariolas das paixões), não por ser real e todos os dias surgir na televisão (ou, pelo menos, num dos poucos pasquins que ainda vende) mas por não ter charme nem uma vida interessante, não devia estar num livro.
Daqui por uns anos quando forem procurar o que era o nosso país por estes dias, com este livro vão achar que tudo é desengraçado.


Dama de Espadas (Mário Zambujal)
Clube do Autor
3ª edição - Janeiro de 2010
220 páginas

Saudades da malandragem

Esta é a crónica de um Portugal que tinha, inevitavelmente, de deixar de ser. Uma Lisboa repleta de malandros engenhosos e com passados que os tornam memoráveis.
Malandros com vidas de bairro mas ambições de grandeza.
Malandros que davam personalidade ao seu espaço, que davam colorido à sua cidade, que davam substância à sua era.
São criminosos de estilo, indispensáveis à memória de um local que se engrandecia tanto quanto se revoltava com eles.
Deixam saudades de um tempo que já não volta a ser, do qual ainda se lê com prazer (e depois com saudade).
São criminosos que não disparam senão sobre si mesmos, que recorrem a abelhas para o grande assalto que Portugal nunca vira, que formam uma quadrilha qual grupo de amigos a que queremos pertencer.
Divertido e admirado, assim é o livro que leva as personagens a bem mesmo quando lhes faz mal.
O destino do grande golpe criminoso é uma desgraça, mas é uma desgraça como não se verá outras. A desgraça é brava, é louca, é brilhante.
Só se pode tratar assim tão mal alguém de quem se gosta muito. E Mário Zambujal devia mesmo gostar desta classe de bandidos.
Este é um livro que deveria ter lido há muito, lá pela mesma altura em que descobria um outro retrato humorado e liberto perante a nossa Língua e os nossos Costumes, O que diz Molero.
Senti-me agora como quando era miúdo e descobria o prazer de ir à descoberta de outros bairros e tornar-me num malandro de ocasião... sem sequer gostar de brincar na rua!


Crónica dos Bons Malandros (Mário Zambujal)
Livraria Bertrand
2ª edição - Junho de 1980
220 páginas