domingo, 30 de novembro de 2014

Péssimo

Nunca tendo lido nada escrito por Frederick Forsyth não deixava de conhecer a boa opinião generalizada do seu livro O Chacal que deu origem a um filme que, esse sim, conheço e acho bem executado, The Day of the Jackal.
Por isso decidi-me a pegar neste A Lista da Morte e descobrir quais as qualidades que o tornaram reconhecido e que ele parece aplicar à realidade política contemporânea.
Mera curiosidade e nenhumas expectativas relativamente ao trabalho do autor e, mesmo assim, acabei desapontado.
Começo pelo mais notório, a escrita, que é causa de aborrecimento primeiro e sofrimento depois.
Se quiser ser bondoso direi que tem a falta de emoção que se aplica num relatório.
Se quiser ser maldoso direi que tem a falta de qualidade com que um jovem estudante despacha as suas composições.
Raramente Forsyth gasta palavras a trabalhar as emoções de uma personagem ou a sua personalidade, a sua tentativa é a de construir um realismo assente nas acções executadas.
No momento em que isso significa páginas consecutivas de descrição de como se prepara o equipamento para um salto de pára-quedas e um único parágrafo para descrever uma personagem com chavões, o realismo não resulta.
Falando de chavões, essa forma de usar as personagens em que elas são nomes humanos para engrenagens da trama, demonstra que o autor apenas consegue pensar no esqueleto do livro, quase se sentindo obrigado a entregar alguns dos seus desenvolvimentos a personagens.
Não há sequer uma ideia de trabalho literário neste livro, de tal maneira que as duas personagens centrais - que se deveriam estar a gladiar no tabuleiro da espionagem moderna - recebem nomes que são descritivos da sua função: Batedor e Pregador.
A lista dos nomes das personagens é, aliás, aquilo com que o livro abre e que permite que Forsyth nunca mais tenha de voltar a aplicar-se em tratá-los por outra coisa que não a sua patente.
Aliás, mesmo com as personagens reduzidas a ideias gerais, Forsyth consegue enganar-se em detalhes que os caracterizam.
Pouca atenção ou pouco interesse, mas a falta de consistência ao longo do livro tanto com os dados como com as personagens é talvez o aspecto mais grave de todo o mau trabalho feito.
Cada um destes elementos separados já a tornariam dura, mas em conjunto minam por completo a leitura do que deveria ser um estruturado thriller cheio de ligações.
Descarnado, não é mais do que uma história de um bom, um mau e os diferentes ajudantes a que podem recorrer.
Em vez de complexo o livro começa a parecer absurdo, ligando um terrorista islâmico a um tresloucado pirata somali ou um agente americano de topo a um adolescente que é o melhor hacker de que ninguém ouviu falar.
Impressionante é ainda haver algumas boas ideias no meio disto,
Como aquela em que os Americanos usam a sua arte cinematográfica para combater os terroristas no seu meio de divulgação favorito e desacreditando-os em vez de os bombardearem.
Uma visão da necessidade de inteligência e subtileza acrescidas que o jogo do contra-terrorismo cada vez mais exige entre as artimanhas dos inimigos e a consciência da sociedade.
São poucas essas boas ideias e ficam afundadas nas areias movediças de uma péssima narração - a todos os níveis!


A Lista da Morte (Frederick Forsyth)
Bertrand Editora
1ª edição - Julho de 2014
312 páginas

sábado, 29 de novembro de 2014

Informação e intenção

Vito Bruschini é um militante da sua própria consciência e, por isso, o que de mais interessante tem o seu livro é a informação que ele revela sem medos ou hesitações, mesmo que parte dela seja trabalhada como ficção.
As suas convicções são o motivo pelo qual escreveu um thriller sobre o domínio empresarial do mundo a partir do controlo da agricultura e da fome por todo o mundo.
O livro é muito interessante no seu início, criando um sentimento de tensão por conta das maquinações de uma sociedade secreta.
Se os planos lá descritos não foram reais, poderiam bem ter sido, com as consequências reais - ou, pelo menos, realistas - descritas no livro.
Atravessando décadas de acontecimentos que sugerem, sem dúvida, conspiração e manipulação, o livro vem até aos nossos dias e a uma sugestão de intenções perniciosas para acções de generosidade humana aparente tomadas pelas grande empresas.
Este entretenimento tem um lado de exigência ao leitor para que deixe de estar desatento e tente obter mais informação em fontes que a tratem como tal.
Não que depois dessa pesquisa se venha a colocar de lado o trabalho do autor - que é jornalista - neste livro, até porque como se tem visto o mundo acaba por procurar e receber cada vez melhor informação a partir de meios de comunicação que utilizam o divertimento como embrulho para ela.
Só mais tarde, a caminho do seu final, é que o livro toma contornos mais comuns, com impossíveis cenas de guerrilha protagonizadas por um grupo de amadores.
A substância que até aí enchera o livro desaparece para dar lugar às cenas de acção.
Aí o interesse do livro esmorece até porque Bruschini não é um executante exímio do género, mas sobra algo assinalável.
Um detalhe que o destingue e que o mostra ainda fiel aos seus princípicos de militância, o de trazer para o papel de heróis um grupo de terroristas com cujas intenções ele claramente se identifica.
Ou talvez seja o grupo a manifestação das suas intenções, a recuperação de um engajamento activo contra a cultura
Faz lembrar um Baader-Meinhof-Bande de índole mais bondosa mas com a mesma determinação, como se o autor tivesse algo como um sentimento de saudosismo com revisão utópica do que foram décadas passadas de luta contra o fascismo corporativo.
O livro não termina com heroísmo, termina com uma admissão de impotência. A ingenuidade não tem lugar neste mundo pois também disso podem as corporações servir-se para atingir os seus fins.
Se a intenção é apenas de alerta ou se há mesmo um incitamento ao retorno de um activismo político mais feroz, talvez só o autor possa garantir.
A maioria dos leitores ficará, sem dúvida, apenas pela qualidade da informação e de como ela é trabalhada em forma de conspiração.


Os Segredos do Clube Bilderberg (Vito Bruschini)
Clube do Autor
1ª edição - Julho de 2014
420 páginas

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Por melhorar

Décimo sexto volume da saga de Alex Cross e há uma conclusão a tirar, mesmo sem ter lido todos os volumes para trás: isto já não é um policial.
Alex Cross já não é trabalhado aqui como o grande detective que, noutros volumes, se sente que ele terá sido.
Fisicamente e mentalmente imponente, Alex Cross faz cada vez menos trabalho, passando mais tempo a correr de arma em punho atrás de informações que lhe são dadas em vez de ele ter de as procurar.
Claro que há uma grande trama sobre como um político importante tem matado mulheres e os seus corpos são desfeitos num triturador de madeira.
Só que, tirando um final curioso em que o "ao serviço da nação" toma proporções interessantes, a trama funciona numa espécie de visão genérica de thriller de Thomas Harris com promessas de horrores e personagens arrebatadoras por todos os motivos (humanamente) errados.
Nem os horrores nem as personagens são explorados, substituídos por um avanço constantes da acção.
Aquilo em que James Patterson se foca a propósito da sua personagem é a família, numa exploração cada vez mais sentimental que parece ter invadido esta saga a partir de outras das suas obras mais recentes.
Desde logo ao colocar como primeira vítima uma sobrinha de Alex Cross, personagem que não chegamos a conhecer bem, mas que é capaz de colocar em polvorosa o detective que irá lutar mais vincadamente contra o secretismo do FBI e da NSA.
Essa personagem poderia ter sido uma mulher anónima pois na verdade o efeito emocional que ela traria a Cross seria, como é, sempre suplantado pelo causado pela ameaça de morte eminente que paira sobre a avó do protagonista.
A dirupção na família é o melhor componente deste livro e o que deveria ser um mecanismo secundário acaba por disputar o protagonismo com o restante.
Na verdade, ganha mesmo esse protagonismo porque é aquilo em que as personagens melhor são aproveitadas.
O que deveria acontecer é que a tragédia familiar deveria afectar os poderes de investigação de Alex Cross, mas como este não está a usá-los o drama acaba por funcionar por si só.
A velha senhora sobrevive ainda mais uns volumes pois parece ser o pólo oposto do detective nos momentos das discussões.
É duvidoso que ela alguma vez venha a morrer mas devia. Sobretudo neste volume, onde a sua morte teria adicionado ao drama do detective e obrigado-o a transformar-se o que daria novas possibilidades à série.
Está necessitada de se recentrar em casos que aproveitem a totalidade das capacidades do detective permitindo-lhe alguma amplitude de decisões no que concerne à família. Para o bem e para o mal, a avó dele continua a ser uma âncora para Cross.
Não deixa de ser um daqueles livros cujos capítulos curtos funcionam muito bem enquanto se viaja em transportes públicos.
Deveria ser mais do que isso mas James Patterson parece estar demasiado mecanizado num processo de criação que não lhe permite fazer mudanças importantes.


Eu, Alex Cross (James Patterson)
Topseller
1ª edição - Outubro de 2014
384 páginas

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O progresso

Este livro é aquilo que se exige de uma sequela, não só por ser melhor que o livro do qual provém, mas por dar origem a uma escalada dos elementos mais interessantes d'O Jogo.
Anders de la Motte não tentou revirar a situação do seu protagonista de forma a que ele voltasse ao ponto de partida e estivesse envolvido em mais uma saga de acções irreflectidas e perigosas com transmissão directa online.
A questão do egocentrismo individualista potenciado pela internet fica de lado para que o autor possa evidenciar mais fortemente que o seu verdadeiro interesse está no domínio que é possível exercer sobre o indivíduo através dos novos modelos de comunicação.
Um domínio que era mais imediato no primeiro livro e que neste segundo livro tem traços de realismo.
Realismo corporativo que já sabemos ser verdade, até num pequeno país como o nosso, o da manipulação da opinião pública.
Orientação das "massas", criação artificial de movimentos, desvio de atenção para dar oportunidade a que decisões verdadeiramente importantes se mantenham secretas.
Muito se aprende sobre as dificuldades inerentes a um trabalho deste tipo quando se quer que seja bem feito e com a amplitude que a internet exige.
Longe de um teor didáctico, de la Motte usa as tácticas mais banais pelas quais se executam essas intenções para criar o sentido de urgência que é necessáro à leitura.
A escrita em fóruns e blogues e a criação de múltiplas identidades internéticas ganham emoção na visão que o protagonista tem delas e funcionam como cenas da máxima emoção.
Isto não quer dizer que o autor tenha deixado de lado as grandes cenas que se espera de um thriller.
Na verdade ele continua a ir a alguns momentos de exagero em que o seu protagonista se coloca a par dos heróis de acção dos tempos modernos.
Só que tais cenas deixaram de ser parte uma parte tão significativa do livro - como foram com o primeiro - para passarem a estar ao serviço de uma construção mais laboriosa e progressiva.
Só a limitação da sua estrutura se mantém, com os pontos de vista intercalados a levarem-no a criar, por demasiadas vezes, uma coincidência das situações que HP e a irmã vivem, propositadamente confundíveis entre si pela forma como a escrita é trabalhada, sem que verdadeira tensão nasça desse efeito.
O salto que falta a Anders de la Motte para ser um escritor a seguir com total atenção não será dado com Bolha, o próximo e final tomo desta história, mas confio que um passo mais adiante no tema garantirá uma leitura intensa.
Afinal tudo começou com um jogo e já chegou ao ponto da conspiração política. Onde acabará interessa aos leitores.


Vibração (Anders de la Motte)
Bertrand Editora
1ª edição - Maio de 2014
400 páginas

sábado, 22 de novembro de 2014

Quando o confronto é a resposta

A combinação do ambiente gótico e da literatura policial que Marc Pastor traz para A Mulher Má evoca com elegância as obras de Edgar Allan Poe, autor que o Espanhol não deixa de nomear ao longo das suas páginas.
Parece ser o estilo devido a uma Barcelona no início do século XX em plena fase de transição, tentando albergar tanto o progresso como a memória mas na qual primeiro parece ter-se espalhado a vilania.
A vilania sempre se apropiou da modernidade antes da restante sociedade, pelo que tal momento de transformação é excepcional para o trabalho de Marc Pastor.
O estudo do Mal que faz a partir da história verídica de uma raptora de crianças fala de um crime inimaginável para aquele período. Executado pela mão da mais inesperada vilã, uma mulher também já mãe.
Esse estudo tem maior impacto porque é feito contra a ingenuidade envolvente, em que as pessoas confiavam que tudo correria bem com as suas crianças.
O nível de confiança rapidamente afectado pela crueldade nunca antes vista - ou não lembrada, pois a humanidade tende a deixar-se surpreender por ela de tempos a tempos - e transformando-se num nível de preocupação demasiado elevado que já se ameça transformar em vigilância restringente.
Se o Mal existe e se manifesta de forma sempre nova, há que garantir que a consciência dele também evolui, mas tentando evitar que ela própria se transforme numa forma de Mal (menor, talvez).
Uma luta pela preservação de algo de verdadeiramente Bom que resista imutável contra cada novo passo do mundo.
Neste livros isso traduz-se em pequenas batalhas.
O século que terminou em confronto com o que acaba de começar. A razão contra a cren(dice)ça. A evolução contra a pulsão.
Marc Pastor reforça esse confronto entre a assombração e a realidade do Mal fazendo Edgar Allan Poe dialogar com Dashiell Hammett.
Moisès Corvo, detective da polícia que investe mais de si do que é suposto e que não consegue aceitar a fraca resolução do caso, é o Sam Spade d'A Mulher Má.
Se um nome excepcional faz metade do personagem, então este detective poderia quase de imediato entrar na galeria de grandes protagonistas do Policial.
Está perto disso, visto que Marc Pastor trabalha os seus diálogos fazendo justiça a Hammett e às gerações que influenciou, dando uma verve às disputas do detective que se saboreiam como nos melhores noir.
Infelizmente não chega a inscrever-se nessa galeria. O detective acrescenta muito ao livro, um sentido de propósito e uma força motriz para muitos capítulos, mas não recebe de volta a devida atenção por parte do autor. Como personagem é tratado apenas por fogachos.
Parte da culpa para tal está no facto da atenção de Pastor estar dividida entre os elementos essenciais da sua história e um que ele adicionou crendo-o como tal sem razão. Falo da sua escolha para narrador da Morte.
Uma escolha que vem adicionar uma espécie de sentido de magia ao seu livro, sem que esse seja realmente necessário pois o ambiente gótico e amedrontante prevalece sem necessidade de tal narrador.
O seu único benefício - e chamá-lo assim é duvidoso - é o alívio que proporciona ao contribuir com humor negro (novamente o talento de Marc Pastor para as palavras das suas personagens) e bastante ironia nascida da relação conflituosa entre a sua função e a sua presença entre humanos.
Continua a tratar-se de um artifício. Não resultava em A Rapariga que Roubava Livros - nem, numa aproximação do mesmo ãmbito, em Visto do Céu - nem resulta aqui.
Funciona como um elemento de distracção para o leitor (em parte) e para o escritor (sobretudo) daquilo que é o cerne do trabalho do romance.
Melhor seria ter um livro dedicado inteiramente à Morte como protagonista de uma vivência atemporal com visitas ao nosso pequeno mundo.
Acaba por deturpar a memória do que foi o livro, um policial gótico explorando a essência do Mal, mesmo se não impede que se recomende vivamente a sua leitura.


A Mulher Má (Marc Pastor)
Topseller
1ª edição - Setembro de 2014
254 páginas

sábado, 15 de novembro de 2014

Querer mais

Ao primeiro policial protagonizado pelo Inspector Montalbano fiquei com a crença de que Andrea Camilleri é um génio.
Até hoje cada uma das suas obras tem provado isso mesmo e cada vez mais as suas obras fora do formato daquele género.
Têm sido algumas as obras curtas traduzidas por cá, mas cuja perspicácia acerca da condição humana rivaliza com a dos grandes romances.
Sem desperdício de qualquer palavra, sem excesso de qualquer expressão, Camilleri escreve tal como é: um homem sábio cuja idade já não lhe permite derivas ou falhanços, apenas obras exímias.
Obras nascidas da visão em simultâneo conciliadora e de confronto entre a estranheza da realidade que vê à sua volta - e se Itália é terreno fértil para tal! - e a familiaridade das mais arrojadas criações literárias.
Desta vez dedicou-se a explorar a ruptura de crescimento causada pela diferença entre a exigência que a sociedade faz e o desejo natural. Através da história de uma rapariga com corpo de mulher.
Um princípio clássico das histórias escabrosas que falam dos mais primitivos instintos humanos e que não deixam de remeter para os mesmos temores para os quais os contos recolhidos pelos Irmãos Grimm já alertavam.
Ainda que faça pensar no enorme retrocesso que representa este tormento que os homens continuam a colocar sobre as mulheres, este não é um alerta feito livro.
Este é um recontar muito original de um certo comportamente feminino que se perpetua a partir do desfasamento demasiado intenso entre a mente e o corpo.
Neste caso uma mulher escolhida para ser exibida por um marido incapaz de fazer sexo mas que a ama ao ponto de lhe proporcionar jovens amantes.
Uma mulher que não consegue deixar de se envolver emocionalmente com um desses amantes a prazo, revelando a sua infantilidade emocional de quem confunde bom sexo com paixão.
Esse amante, um adolescente ele próprio, tudo fará para a persuadir a continuar o jogo de sedução, até ao ponto em que ela acredita que é amor aquilo que vivem e se sente capaz de partilhar o seu mundo secreto.
Vindo da sua infância interrompida, esse mundo secreto aglomera a imaginação infantil com a perversidade adolescente, componentes da sua personalidade que lhe ficaram vincadas logo abaixo da superfície mais visível do seu comportamento.
A quebra do seu desenvolvimento e todas as etapas fora da normalidade que enfrentou apenas por ser mais bela do que as restantes - ou ser bela mais cedo do que as restantes - levam a que a sua percepção confundo todos os polos que encaramos com naturalidade.
Seja realidade ou imaginação, seja bem ou mal, para ela tudo é indistinguível e existe continuadamente. Tal como para os homens da sua vida ela ser menina ou mulher, ser esposa ou amante, ser dela mesma ou de todos os que a queiram, era o mesmo.
Daí nasce a grande tragédia deste livro - na verdade tragicomédia - cheia dos actos extremos que nascem do despeito e do calculismo.
O resultado mantém o leitor sempre a exaltação no leitor, dando-lhe doses renovadas de surpresa escrita com uma beleza que não está orientada para a exibição mas para a precisão.
Não sei quantos exemplares de cada livro de Andrea Camilleri vende, mas é uma preciosidade que a Bertrand continue a publicá-lo entre nós.
Infelizmente ainda não o faz com a mesma cadência com que ele os escreve, vários por ano como se estivesse numa luta contra o tempo para nos legar todas as maravilhas que tem dentro da sua mente.


O todo-meu (Andrea Camilleri)
Bertand Editora
1ª edição - Junho de 2014
152 páginas

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A doença da descoberta

À loucura branca que Jaime Rocha ficcionaliza associamos facilmente o ruído branco, um esconderijo social em que todos disfarçam a sua normalidade sob a capa de uma originalidade distintiva.
Cada um reivindicando para si a peculiariedade que o torna único, que o salva da norma que dilui cada pessoas nas restantes.
Até que, subitamente, a fatalidade transforma a sua vítima levando a que a verdadeira loucura se alastre pelo corpo e tudo altere em favor daquele que é agora o portador de uma visão privilegiada.
A partir daí passa a conseguir encarar o mundo de uma forma nunca antes vista, aquela massa de falsos loucos desaparecida para uma meticulosa descoberta da novidade de todos os espaços anteriormente visitados.
Só que a descoberta vem carregada do assombro do terrível que existe em redor de cada um e que está oculto a maior parte do tempo.
Logo essa descoberta o empurra para o receio de um desconhecido que deveria ser familiar por estar contido no mais essencial do ser humano.
O mundo tal como ele verdadeiramente é encerra Vítor sobre si próprio. As paredes da casa de onde não sai há meses são apenas um símbolo disso mesmo. Um símbolo palpável que ajude a melhor avisar o personagem da sua condição.
O cancro mestatizado de que sofre não é só uma causa das suas aflições, é a expressão potenciadora das suas novas capacidades.
Uma libertação da mente por sacrifício do corpo, os sentidos potenciados até ao sacrifício. Sobretudo a visão, perdida depois da descoberta do mundo para lá do mundo.
Definitivamente encerrado em si mesmo, no negrume de si mesmo, pode ele deixar-se ir: prosseguir por mão alheia o caminho de libertação.
Esse caminho tem apenas uma forma de ser percorrido. O término do caminho é o término do homem e logo aí o peso da falsidade se esfuma.
A loucura construída para diferenciação - que tudo deforma e constringe - desaparece. A falsidade do ruído de fundo mental deixa de poder isolar Vítor.
A verdadeira loucura torna-se a situação aceitável e isso cria nos que ficam por cá o incómodo do entendimento.
O inconsciente como monstro perpétuo de um homem. Assombrado pelo surrealismo daquilo que consegue imaginar mas que recusa por obrigação social.
Há algo de Kafkiano em Jaime Rocha, sem lirismos desnecessários mas com a expressão mundana de algo extraordinário e perturbador.
Este seu livro, gigante na sua brevidade, tem um poder literário que nos condena à memória e nos obriga à revisita. Que maravilha de livro.


A Loucura Branca (Jaime Rocha)
Relógio D'Água Editores
Sem indicação da edição - Maio de 2014
112 páginas