segunda-feira, 20 de março de 2017

Corpo convulso




Uma mulher de absoluta banalidade. Assim a descreve o marido no início do livro. Até que se torna vegetariana.
O livro de Han Kang falha em provar que essa escolha a torne digna de relevo.
Isso advém de uma falha de concepção que nasce com a estrutura pouco habitual d'A Vegetariana.
Sendo Yeong-hye o corpo do conflito do livro, é pela voz de familiares que sabemos o que lhe acontece.
Cada uma das três partes revela as reacções do marido, do cunhado e da irmã da protagonista, sendo cada um deles à vez o motivo pelo qual se é informado do que se passa na vida de Yeong-hye.
As manifestações de Yeong-hye irrompem ao longo do livro apenas para descrever trechos do sonho que a marcou de tal forma que a levou a decidir tornar-se vegetariana.
Primeiro é o marido quem nos conta como essa decisão o afecta e se torna numa fonte de enorme embate da mulher com o resto da família.
Depois o cunhado tem com ela - e a sua persistente mancha de infância - fantasias sexuais ao mesmo tempo que se sente inspirado para fazer o seu melhor trabalho artístico.
Quando chega a vez da irmã, o relato é da forma como ela retira do percurso de Yeong-hye uma nova visão para a sua própria vida.
Cada um destes personagens vive episódios que são consequência dos actos da vegetariana do título, tornando-a, no processo, secundária ainda que sempre presente.
O protagonismo não fica com Yeong-hye que, mesmo no momento da sua decisão inicial, parece ser sobretudo uma mulher em reacção a algo.
Mesmo quando na primeira parte se torna num incómodo para toda a família, não é por uma luta de convicção, apenas por reacção a um sonho. Visceral, de certo, quando até lhe traz asco pelo cheiro a carne no corpo do marido, mas inexplicável.
Tal como depois se mostra como uma espécie de criança nas mãos do cunhado que nela pinta os seus desejos e chega a concretizá-los, reagindo ela às folhas desenhadas no corpo com uma fixação pela aproximação à condição de vegetal.
Se na última parte é a sua irmã quem, no final, reage ao estado da irmã, deixando-se contaminar pela mentalidade de alguém que teve a seu cargo durante muito tempo, Yeong-hye também continua a reagir.
Agora à loucura, que a faz levar ao extremo da irreflexão a decisão com que surpreendeu o marido.
Já não se trata de deixar de comer carne nem de se transformar numa árvore. Trata-se da sua luta contra a própria existência através de uma resistência não violenta (senão para si própria) que é, afinal, uma desistência.
Extremando a sua posição Yeong-hye confronta o julgamento que outros fazem dela como não se destacando de forma nenhuma.
Só que a mentalidade de Yeong-hye não é caracterizada e todas as suas reacções acabam por ser banalizadas por um exagero da parte da autora que a coloca frente a frente com pessoas de extremos.
Homens que ou a descartam para se livrarem de preocupações ou abusam dela para satisfazerem as suas necessidades.
Mulheres que a transformam - com precisão, à sua loucura - no modelo da resistência à sociedade patriarcal machista.
Até o pai e a mãe de Yeong-hye são abusadores ao lidarem com a decisão da filha, forçando-a a comer carne (ele) ou tentando enganá-la servindo-lha disfarça num caldo de vegetais (ela).
Yeong-hye reage tentando matar-se e vomitando as entranhas, numa rejeição fortíssima da autoridade que pensam ter sobre o que para eles é uma filha pouco perspicaz e muito manienta.
Extremismo contra extremismo. Só que se o primeiro teve origem em Yeong-hye - por mais que os alheios possam ter sido mais duros - havia que ser justificado para se tornar simbólico da luta de uma mulher pelo direito ao seu corpo e à sua morte.
Han Kang nunca chega a mostrar a força com que se transforma uma pessoa de forma tão radical, mesmo quando o sonho se revela uma recalcada memória de infância que enfatiza o papel do pai como ditador dentro da sociedade onde a mulher se forma.
Sente-se que o livro tem uma tese expressa sem amarras, o que a torna pouco eficaz, demasiado dependente que está do entendimento que o leitor faça e que, por sua vez, dependeria de algum conhecimento do contexto da sociedade Coreana que se traga para a leitura para melhor funcionar.
A progressão das opções de vida da vegetariana é exponencial e, ainda que aceitando-se a inverosimilhança da mesma ou a impercepção total de como poderá ser realista num país tão distante, não há forma de reconciliar isso com um discurso esclarecido por parte da sua autora.
Uma contradição clara se pensarmos que na linguagem Han Kang procura a crua economia descritiva que faça mossa.
Dela fazendo emergir a sensibilidade com que descreve, sobretudo, o corpo da sua protagonista, fazendo-o com o labor que aspira à permanência.
Pela linguagem Han Kang está muito mais perto de estabelecer de forma sólida essa ideia de como o corpo da mulher é o último reduto de defesa contra a crueldade do mundo à sua volta.
Ela sabe como expressar que o corpo é a identidade com que se resiste à violência alheia.
Que esse corpo albergue uma mente que parte de um sonho e acaba na loucura sem parecer capaz de decidir por si própria é a sua fraqueza.
Esta dicotomia é o sinal de que a autora levou a história demasiado longe nas situações que lhe servem à demonstração do que quer afirmar.


A Vegetariana (Han Kang)
Dom Quixote
1ª edição - Setembro de 2016
192 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário