sábado, 6 de agosto de 2011

O percurso das vozes

Como fazer um caminho por vinte e nove vezes acompanhado de um outro ser - e de um mouro morto na bagageira - e não ceder um pouco de si mesmo? Ou ainda, como não sentir ceder um pouco de si mesmo?
Ainda que se sejam homens, moralmente censuráveis e dependentes do secretismo. Ainda que a discrição e o silêncio sejam as características - e as necessidades - maiores de tais tipos, como não ceder a partilhar algo...
Assim vão os dois personagens no carro, falando um com o outro sobre tudo e sobre nada, o que é o mesmo que dizer sobre a realidade do fluxo da população mundial e sobre as suas próprias pequenas existências.
O diálogo parte e retorna, enreda-se e expande-se, perde-se sem nunca lhes fugir porque estão ali inevitavelmente trancados há vinte e nove sábados e crê-se que estão muitos mais por contabilizar.
Vão abafando a culpa e a solidão criando uma intimidade estranha a partir do debate entre a funcionalidade pública daquela morte sistemática - o emigrante serve para deitar ao Canal da Mancha para que se saiba que todas as semanas morre, pelo menos, um dos que o tentam atravessar - e a moralidade daquela morte sempre única - os olhos dos emigrantes têm sempre cores diferentes que se vincam na memória.
Um está pela ideia de que se matem os emigrantes em massa para dar uma noção pública do descalabro, ao outro custa-lhe que este vigésimo nono não pareça já uma mancha difusa dos anteriores.
Um é novo e o outro é velho, mas provocam-se pelo (pouco) que ficaram a conhecer um do outro: os sonhos ou os amores.
Fizeram-se companheiros a partir do seu silêncio e sem conhecerem os nomes um do outro - ou assim nos parece, e nos parece mais trágico, a nós que também não os saberemos - mas sabendo que a partilha daqueles longos percursos entre vida e morte os tornam irmãos para sempre.
Mesmo se eles próprios reconhecem que, de futuro, se evitarão ao cruzarem-se na rua, porque a vivência daquelas viagens não pode existir em mais parte alguma.
Sem estrutura, sem narrativa, sem descrições, o romance é todo uma sucessão de diálogos que existem em abstracto. E, como tal, de dois seres que não existem senão encerrados naquele carro.
Se é verdade que qualquer diálogo pode existir cerrado para as condições exteriores, aqui sente-se que, numa viagem de carro de setecentos quilómetros, só a mera noção de movimento, de alteração do cenário ou do mero cansaço dos dois viajantes deveria influenciar a percepção do diálogo.
Falta a estas duas vozes a reverberação dos faróis e a modulação do caminho para as tornar mais vivas e não as vozes de um calmo debate protegido da realidade.


Afogados (Carlos Eugenio López)
Estrofes & Versos
1ª edição - Agosto de 2010
192 páginas

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