segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Magia literária

Ainda há alguns livros atrás a linguagem comum entre seres estava em foco e já sobre ela leio de novo.
David Soares, apesar da ternura, estava a contar o fim dessa linguagem comum. Verónica Murguía, não sem dor prolongada, está a contar a redescoberta dessa linguagem.
Esta é uma demanda acidental que leva Auliya do entendimento das monções à imersão na fantasia alheia.
Do medo que causava aos que a rodeavam acabou por se tornar símbolo idolatrado do inexplicável, tal como o coxear pelo qual a denegriam passou a ser a marca fantástica da sua existência para lá de terrena.
Ela entendeu, primeiro, o comportamento da água, depois a voz dos animais e, finalmente, o próprio encantamento que rege os seres lendários.
A travessia do deserto - repleta de miragens, de tentações, de desafios, de medos - é obrigatória e significativa, como tais sequências sempre foram na literatura, para se atingir o formidável momento em que a heroína deixa de compreender a linguagem universal para passar a fazer parte da existência desse estado maior de possibilidades, em que os seres se compreendem inteiramente.
Já não somente seres terrenos, mas todos os que existem invisíveis para a maioria da Humanidade.
Aquilo a que se chama Magia, e que está praticamente ausente do mundo moderno, é apenas esta forma de estar aberto às impossibilidades do reconhecimento. A existência despreocupada com o julgamento (racional) alheio, mas capaz de aceitar a ligação inesperada da sua própria voz (da imaginação) à de um escorpião ou de um djinn. E criar o espaço comum em que se ensinam mutuamente, pelo bem e pelo mal, mas sem deixar de percorrer o infinito defronte dos olhos!
Através da linguagem escrita, repegou a autora nas linguagens que olhavam de modo diverso para a mesma (ir)realidade e, d'As mil e uma noites aos cadernos de Bruce Chatwin, seguiu reunindo-as no momento em que poderiam estar esquecidas.
Percebeu que essas linguagens se entendiam, bastando que alguém as juntasse, e por isso conseguiu com elas criar uma nova imensa tradução do inaudível pelo mundo.
O seu próprio acto de Magia literária é a criação de algo de tão genuíno e repleto da tradição contista do mundo.


Auliya (Verónica Murguía)
Ambar
1ª edição - Maio de 2003
200 páginas

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