Começo a crítica por um detalhe que será indiferente para o conteúdo do livro mas que raramente o é para os leitores.
Trata-se da capa e aquilo que sobre ela direi será, provavalmente, contestado pela maioria dos leitores cuja opinião favorece este livro.
A capa é demasiado sugestiva do universo do "romance feminino" que tem padronizado a abordagem do design de tais edições.
Só a um segundo e mais atento olhar é que se reconhece a intenção de usar as cores para definir um universo de terror com o cenário a esbater-se para o sépia e o vermelho (que deveria ser menos vivo e mais vermelho-sangue) em evidência.
A degenerescência da capa - com um estilo de letra que acresce ao efeito perverso de vender um implícito romance - é grave porque não se aproxima do teor negro da abordagem a lendas antigas e crimes modernos.
Falando agora do livro, admito sem delonga que está bem escrito, que se lê com desenvoltura e que tem uma história que, no seu todo, é muito sedutora.
No entanto isso sente-se se nos deixarmos entrar na leitura sem atender à sua execução. Suponho que se trata de aceitar aquilo que há quem apelide de "entretenimento com o cérebro à porta".
Ou seja, estou a fazer estes primeiros e positivos comentários ao livro olhando para ele de maneira distante e benévola.
Aquilo que se passou durante a leitura do livro foi muito diferente dessa sensação de imersão num universo alheio.
Tanto a questão da plausabilidade como a da mera construção do livro estão sempre a vir ao de cima, a fazer-se notar pelos piores motivos.
Há bastante que se podia apontar nesses dois campos, mas acho que a peça central do livro - a história de três irmãs mantidas prisioneiras - serve melhor que o restante para exemplificar o que afirmo.
As suas histórias são reveladas a um anti-herói, carteiro que acha um envelope esquecido contendo um diário.
O diário pertence a uma dessas irmãs que o escreve no escuro, esfomeada e envenenada. Ainda assim ela consegue reproduzir com minúcia todas as palavras ditas pelo Jim do título muitos meses antes.
Seria de esperar que, em tais condições e com apenas alguns minutos antes que a sua carcereira volte, essa irmã resumisse os factos, confundisse detalhes, deixasse palavras pouco perceptíveis.
Pelo contrário, é um relato eloquente e aperfeiçoado de acontecimentos que uma pessoa lembraria mal mesmo num dia relaxado. Com a agravante de ser escrito num estilo que se dirige directamente a um leitor.
O artifício é tão evidente e tão despropositado que é difícil não sentir incómodo. E é mesmo impossível ceder a consciência que dele temos a partir daí.
Esse diário não termina sem um erro maior de lógica. Uma das últimas frases escritas é a reprodução da frase que esta rapariga presa dirige à irmã que está a alguns metros. Uma frase que a pretende acalmar enquanto faz saber o motivo pelo qual o diário vai ser interrompido: a carcereira aproxima-se.
Este truque é tão velho e falhado que a ironia de que ele merece ser alvo pode ser encontrada na cena sobre o Castelo de Arrrggghhh no filme Monty Python and the Holy Grail.
Essa irmã presa na mesma sala daquela que escreveu o primeiro diário também escreveu o seu, mostrando quão grande é a sorte de haver cadernos e lápis suficientes para todas.
O diário desta segunda irmã acabou molhado, mas felizmente só as primeiras páginas se tornaram ilegíveis. Aquelas que repetiam informação do primeiro diário, claro está. E apenas essas!
Mesmo querendo aceitar que a repetição de informação pode ser um aborrecimento para o leitor, não conseguiria ultrapassar o facto de as duas irmãs escreverem exactamente da mesma forma. Não me referido apenas a escreverem como se estivessem envolvidas numa interlocução, mas também ao facto de não haver um único traço distinto entre as "vozes" de ambas. Apenas se dá o caso de uma escrever sobre a fase da história em que ainda havia ingenuidade e amor e outra sobre a fase em que a raiva era dominante.
Falta ainda uma terceira irmã, que estava presa noutra zona da casa, mas que também encontrou papel e lápis para escrever um diário.
Esse diário já não temos direito a ler. O livro termina com o surgimento físico desse diário e com ele deixa um vazio.
Um vazio no espaço de uma das personagens - que até viveu o momento mais tenebroso da história; que até sobreviveu - que deveria ter algo a contar.
Um vazio na satisfação do leitor que esperaria, pelo menos, que as três irmãs tivessem o mesmo valor para o desenvolvimento da história e não fossem apenas um desdobramento para que não houvesse uma única mulher a suportar todos os acontecimentos.
Tudo isto levou a que a leitura se assemelhasse a um olhar constante para as costuras desfeitas de uma história.
Um livro feito de algumas boas microestruturas ligadas por uma conveniência macroestrutural facilista e pouco ponderada.
Tendo, ainda para mais, descoberto que o autor conseguiu que Howard Chaykin (um autor de banda desenhada que aprecio) lhe desenhasse esta magnífica tradução das últimas palavras do livro, sinto-me ainda mais defraudado por esta história - e pela capa, já agora.
Darling Jim (Christian Mørk)
Editorial Presença
1ª edição - Outubro de 2011
318 páginas
Também li o livro e concordo consigo :)
ResponderEliminarA minha opinião aqui http://viajarpelaleitura.blogspot.com/2011/10/darling-jim-o-lado-negro-da-seducao.html se tiver curiosidade.
Cumprimentos