quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Instantes de progressão

Uma abordagem a Israel Sketchbook poderá parecer estranho no seio deste blogue, masnão deixa de ser um caso em que uma narrativa se constrói.
A sequência imagética esparsa e pessoal ganha sentido por via das palavras do autor que ajudam a entrar nos interstícios que levam o autor do ponto de vista para um desenho ao seguinte ou que nos elucidam do papel que cada local ou pessoa representado teve na viagem.
Mas há também - talvez mais correcto fosse dizer sobretudo- uma narrativa num sentido mais global e numa interpretação mais lata do que é o domínio ficcional.
O livro parece um percurso longo através das várias zonas visitadas por Ricardo Cabral, sentido pessoalmente por ele através do desenho.
Só que o próprio autor explica que, apesar de o livro parecer uno, trata-se de um trabalho de três viagens distintas que ele terá trabalhado numa linha contínua.
Tanto quanto sabemos Ricardo Cabral terá agrupado, não só, locais visitados em viagens diferentes mas desenhos do mesmo local feitos em momentos distantes entre si. Isso é, possivelmente, sinal de um autor.
Encontrada a sua coerência interna, o seu trabalho faseado não se torna num compósito, torna-se numa obra.
Os traços de autor que se encontram passam, primeiro que tudo, pela importância que o próprio desenho tem por contraste com um livro similar feito a partir de fotografias.
A mistura de visões assombrosas dos montes da Galileia com detalhes tão corriqueiros como a mesa do pequeno-almoço tomado em Safed ou a garrafa de cerveja que comprou mostram que a transmissão da experiência está a um nível de interesse muito pessoal - como era intenção - que não resiste também ao próprio desafio que desenhar exerce sobre o autor.
Essa mistura entre o extraordinário e o banal não imita, no entanto, o tipo de registo de viagem que qualquer pessoa faz por estes dias com uma máquina digital, registando insistentemente todos os momentos sem filtro lógico ou de gosto. Há um fio condutor que nos permite vaguear como o próprio autor e que evita o cansaço de uma recolha sistemática apenas dos locais mais belos. Há uma vivência quase comunal da experiência do acto privado desta viagem.
Apesar disto, a verdade é que o método de trabalho de Ricardo Cabral combina o desenho com a fotografia, usando ele estas últimas para pintar os desenhos que executou. Esse elemento de apoio é essencial, ainda que nao precisemos de o conhecer para fazer comparações.
As cores que de lá retira dão um realismo às imagens que tornam o ambiente mais compreensível mas que não apagam a verdadeira pessoalidade do autor e do seu desenho feito de linhas nem sempre perfeitas ou de uma perspectiva ligeiramente enviesada.
Desenho através do qual ele volta a tornar-se criador - e não copista - da realidade em redor, acrescentando elementos essenciais do espaço em volta mesmo se não visíveis no ponto onde está (ver, em específico as páginas 124-125) ou reproduzindo num único desenho três momentos distintos do movimento de uma única rapariga que ali brinca.
Pelo desenho Ricardo Cabral reinventa tempo e espaço como o quis ver e não como o viu, de facto.


O penúltimo desenho de Israel Sketchbook é um indicativo do que viria depois em NewBorn - 10 Dias no Kosovo.
O autor tornou-se menos preocupado em ser um completista do desenho e da cor para se preocupar mais com a representação do movimento da própria vida.
Como nesse penúltimo desenho em que as muitas representações das pessoas que circulam se vão sobrepondo à representação do cenário, aqui o próprio acto de desenhar torna-se essencial na página.
Mais do que isso, o movimento que se sente vem do próprio acto de desenhar estar patente na representação da experiência da viagem.
Os traços deixados a lápis em torno dos elementos pintados dão conta de qual o verdadeiro foco de atenção do desenhador e de qual o espaço que só é essencial para que o desenho não fique a pender no vazio.
Há mesmo um desenho (páginas 48-49) em que estamos perante a representação das páginas de um caderno em que a mão do autor vai traçando esboços das pessoas que passam.
Aí se concretiza uma espécie de visão metalinguística do desenho sobre a sua execução.
Mais adiante (páginas 116-117), quatro desenhos do mesmo local vão gradualmente enchendo-se de cor a partir de um único ponto.
Percebe-se mais fortemente como a execução do desenho reforça a visão (ou eventualmente o imaginário, não podemos ter a certeza) de autor. Esse crescendo de cor transmite as emoções que Ricardo Cabral projectou para a sua observação.
Como ele viu é inteligível na página de forma cada vez mais precisa numa forma de expressão que supera o que foi meramente visto para reentrar no campo da recriação.
Neste livro há mais sequências de quatro painéis em que o ponto de vista é sempre o mesmo mas as pessoas mudam. Talvez nenhuma seja tão intensa quanto a acima referida, mas todas dão a noção clara de passagem do tempo.
Esse é outro elemento importante para o entendimento do que se passa até à existência final de um desenho na página.
Um desenho demora tempo mas nem todos os elementos são imutáveis. Daí que o desenhador não se satisfaça com uma única captação do que viu.
Essa ideia está patente desde o início de Israel Sketchbook na forma como a coloração vem devolver o instantâneo ao que não o é. A fotografia que serve de apoio e, no final, dá cor a cada desenho acaba por ser um dos momentos que ocorrem enquanto o desenhador leva o seu tempo a traçar a realidade.
A fotografia estacou o movimento que o desenho consegue reproduzir. O instante ajuda a complementar a mobilidade da vida.
Esta ideia concretiza-se na forma como Ricardo Cabral termina os seus desenhos dentro de automóveis usando para o mundo exterior a própria fotografia que tirou. No movimento do carro os elementos que permanecem são evidentes (e evidenciados pelo desenho) mas os muitos elemento que mudam acabam por ser resumidos no acaso de uma placa de auto-estrada que nada diz do que veio antes ou depois.
Como no sentido inverso, aqueles que são provavelmente os melhores desenhos deste conjunto, nascem a partir de fotografias porque o desenho era impossível naquele momento. Aí a imagem é muito mais demorada e detalhada, mas é a cor que os afasta do fotorrealismo, sublinhando que o desenho não pretende apenas imitar ou substituir a fotografia.
Mas é ao ver-se o desenho deixado totalmente por pintar (páginas 28-29) que se vê a aglutinação de tudo que ficou escrito acima (mesmo na ausência de cor).
Um homem em três posições/momentos distintos dentro do mesmo desenho permanece por colorir porque o objecto do desenho interferiu com este e não se terá permitido ser fotogrado para que, através desse único instante, servisse a captação do tempo que ele próprio já influenciara.
O movimento torna-se desenho e torna-se mutação do desenho.


Depois das sequências de panéis de NewBorn - 10 Dias no Kosovo tornava-se evidente que a própria ideia da narração banda desenhística já nascia nos desenhos de Ricardo Cabral.
Pontas Soltas é essa evidência na reunião de várias das suas histórias, embora o tema escolhido como ligação entre todas, Cidades, não seja o mais acertado. Eu sugeriria Instantes, algo que poderia mesmo ser o tema de ligação destes três livros.
Lágrimas de Elefante é a história mais interessante como estruturação narrativa em banda desenhada, superando a mera leitura do quotidiano, inserindo elementos que acabam por fazer as vinhetas ultrapassar o único ponto de vista possível.
Como esta, The Lisbon Studio é maravilhosa de inventividade, aproximando-se do Fantástico para falar da imaginação que transforma um espaço quando o trabalho nele executado é o de criação artística.
Mas são as restantes histórias que mais se relacionam com os dois sketchbooks que vieram antes, recuperando os elementos que fui descrevendo.
Da Cidade... usa os elementos de texto para demonstrar que a vida de um local é um acto contínuo sempre ligado que o desenho - ou a sucessão de desenhos - consegue captar melhor na sua morfose do que uma fotografia alguma vez conseguirá.
5 Jours (nas suas duas partes desenhas com um intervalo pelo meio) utiliza narrativamente os traços por colorir, a visão do próprio papel em que o desenho está prestes a nascer ou o uso de fotografia como cenário de fundo para fixar a vertigem incapturável pelo desenho. Os elementos essenciais que se foram destacando, sobretudo, no trabalho sobre o Kosovo. O processo de desenho entra mesmo no tema da banda desenhada, com uma voz balonada pertencente ao criado invisível a descrever as características envolvidas no desenho que estamos a ver ao mesmo tempo.
No entanto, é em Barcelona-Kosovo-Barcelona que Ricardo Cabral deixa os elementos mais importantes para perspectivarmos o progresso no seu trabalho futuro.
Ao reproduzir os sacos de pano e o papel de mesa em que fez alguns dos desenhos da história, Ricardo Cabral faz notar que tanto o meio como o material serão tão importantes para a expressão do desenho como as formas do seus traços, as cores aplicadas mais tarde ou o ponto de vista escolhido.
Não se trata somente de dar conta da textura do trabalho mas também da realidade em que o desenho interfere - e molda - porque este não se restringe ao papel cuidado nos blocos do autor.
O desenho de Ricardo Cabral espraia-se para fora da página como na própria vida do autor que ele nos vai mostrando trabalhada a nosso prazer.


Israel Sketchbook (Ricardo Cabral)
Edições Asa
1ª edição - Outubro de 2009
214 páginas


NewBorn - 10 Dias no Kosovo (Ricardo Cabral)
Edições Asa
1ª edição - Outubro de 2010
144 páginas


Pontas Soltas (Ricardo Cabral)
Editorial Presença
1ª edição - Outubro de 2011
92 páginas

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