domingo, 20 de novembro de 2011

A viagem e a fuga

Uma mesma personagem para três viagens em que se alteram cenários, idades e acompanhantes, mas onde a evidência  esencial se mantém: o viajante não é realmente capaz de viajar.
Viajar como o acto de se mudar do seu conforto próprio, do sedentarismo existencial que lhe conforta a vida, mas também a manieta.
Ele parte sozinho mas o seu primeiro destino é sempre ao encontro de pares viajantes que preencham o vazio da realidade que assola Damon.
Ele quer construir relações como não consegue manter na vida quotidiana. Quando em movimento obrigatório por um mesmo caminho, Damon quer acreditar que essa condicionante, umas vezes casual, outras forçada, chega para gerar uma verdade emocional entre ele próprio e de quem força o força a dele ser dependente ("O Seguidor"), de quem lhe propõe um futuro emocional para lá da viagem  ("O Amante") ou de quem a ele se agarra egoisticamente ("O Guardião").
A sua falta da inata compreensão que num regime de viagem, contra a imensa possibilidade geográfica que tem pela frente está a estreita possibilidade de relação humana.
Confinado a essas relações que, pelo contexto, são mais intensas e mais perecíveis do que num ambiente normal, ele vive uma ilusão que se desmorona sempre numa solidão que retorna sem excepção.
Cada uma das viagens fica por concluir porque cada uma das relações é abandonada a meio. Damon não se deixa submeter, não se permite prolongar um vínculo, nem se torna numa figura confiável.
Todos esses papéis que, experenciados por ordem, seriam sintomáticos de um amadurecimento acabam por ser estágios experimentais a que Damon só acede por os saber breves. E mesmo condenados a terminarem rapidamente, ele foge deles mais cedo.
Não fossem por esses períodos de viagem e nem se saberia que Damon testa uma condição humana para si mesmo.
Sente-se que, entre viagens, não haveria realmente nada a contar. As páginas vazias estão assim porque nada haveria para as preencher.
Só em viagem parece que Damon se consubstancia, preenchendo a quota de relações humanas que, naturalmente, deseja de tempos a tempos mas que, também naturalmente, é incapaz de acolher em si.
A solidão é o seu destino, um destino escolhido. Afinal, Damon não suporta as outras pessoas. Nem que o moldem, nem que o queiram, nem que o enraizem.
Senão veja-se como situações que para outras pessoas seriam marcas inesquecíveis (de culpa, provavelmente) - o abandono de um companheiro no meio de um país desconhecido, o abdicar da possibilidade de um amor e a longa tutela de uma amiga suicida no hospital - se mostram como memórias difusas, prestes a partirem para sempre.
O relato que Damon faz das suas três viagens está sempre mesclado - num jogo difícil mas muito bem concretizado - entre as primeira e terceira pessoas.
Assim se torna evidente o quanto o distanciamento dos anos, senão apenas da própria forma de vida que Damon escolheu para si, tornaram a figura que esteve nessas viagens uma outra que a figura actual reconhece apenas como um narrador distante.
Um narrador que cede, por vezes, a uma emoção ou um apontamento que com ele ficou, que ainda reconhece como seu e não como o de uma criação sua. Aí a sua voz lhe foge para o "eu" em vez do "ele".
Porque, mesmo as experiências de que se foge deixam sequelas na realidade pessoal, confirmando que conseguiu preencher-se do Sentir nas viagens que efectuou, o que lhe dá o poder de se satisfazer com o ressentir na sua vida afastada dos caminhos.


Um quarto desconhecido (Damon Galgut)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Maio de 2011
240 páginas

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