Esta é a história de um pequeno árabe nascido da tragédia, habitante da realidade mais inóspita que um país civilizado tem para mostrar.
Um rapaz que, mesmo assim, vive demonstrando todas as melhores qualidades que um ser humano pode possuir.
Dignidade, fidelidade, coragem, perseverância. Todas nascidas dentro de si e não transformadas pelo mundo, mostrando que até um rapaz mal nascido pode ter direito a um ambiente propício.
Propício para ele e não para a sociedade, visto que é uma velha prostituta judia que o alberga a troco de dinheiro. Mas o que ela lhe incute e o que ele aprende a sentir por ela tem uma elevação que poucas vezes uma educação institucional consegue transmitir.
Ele relata a sua vida a alguém que, descobrimos bastante tarde, pertence à “pequena burguesia”, uma classe priveligiada que acaba por se comparar muito ao próprio leitor, que certamente sempre viveu em condições melhores do que aquelas relatadas (ou nem teria acesso a livros).
O relato revela um olhar casualmente profundo sobre a vida, com tanto a ensinar que se torna difícil esconder as emoções fortes que gera.
O que ele tem para contar da vida que nos causaria pena e das pessoas que nos causariam asco está repleto de uma combinação surpreendente de sabedoria e ternura!
Uma bondosa sabedoria que lhe nasce dessa conjugação de aparência impossível entre os poucos anos de existência e os muitos sofrimentos de vida. Que nasce de ser uma criança quem vive o pior que a Humanidade e a Natureza guardam para o ser humano e, com isso, encarar, pensar e falar da realidade com uma honestidade desarmante e incensurável.
O olhar é puro e o seu desconhecimento da aprendizagem social faz dele um entendido profundo da entida
Sendo criança, é também o seu apanágio o amor incondicional pela figura materna que lhe coube em destino. Apanágio que na idade adulta rapidamente se perderia, substituído por um triste desprezo cínico que não sabe separar as circunstâncias externas da essência das relações criadas.
Pelos olhos dele a velha prostituta torna-se para nós numa admirável figura que todos deveríamos ser capazes de amar como o pequeno árabe que até teria razões graves para se apartar dela.
Todo o relato é uma biografia que tenta mostrar àqueles privilegiados que o podem acolher para o futuro como ele lhes chega e, também, persuadi-los de que merece um pedaço de boa sorte na vida.
Mas o seu efeito mais convincente e, até, devastador para as visões mais pedantes e imutáveis sobre a vida é o de que deve ser preservado o seu estado de alma que venceu sobre todas as adversidades vale mais para o futuro - para a vida de todos à sua volta - do que o conforto financeiro.
Romain Gary usou para o relato uma linguagem perfeitamente apropriada à personagem que a usa e que, pela sua origem comum e pela sua falta de educação, deveria estar empobrecida.
O contrário é que é verdade, com um uso tão original e inteligente das limitações que a Língua Francesa (entrevista por via da tradução, claro) que lhe dá uma expressividade comparável à de qualquer uso eloquente da vastidão linguística.
Mais ainda, abre várias perspectivas de uso da língua, de criação de hábitos e recursos no seio da mesma, de manipulação orgânica que a torna mais sentida e mais vivida - assim adicionando à capacidade tocante do discurso.
Talvez a comparação roce o exagero, mas tão virtuoso e expressivo uso da Língua pode situar-se lado a lado com a inventividade com que Anthony Burgess dotou a sua distopia.
Assim caminho para a inevitável conclusão: tanto quanto é comovente, este é um livro fascinante. Um trabalho de filigrana literária inesquecível que deveria ser reapresentado a cada nova geração.
Não vou ceder à tentação fácil de iniciar uma ordenação das leituras que preencheram os últimos meses. Vou antes dizer que se há um livro que me apetece comprar em molhada de forma a transportar sempre um exemplar comigo sabendo que teria facilidade no gesto de o distribuir tanto a um velho amigo como a um conhecido de ocasião.
Estou em crer que não se dever permitir a nenhum leitor que regresse a casa sem Uma vida à sua frente.
Uma vida à sua frente (Romain Gary como Émile Ajar)
Sextante Editora
1ª edição - Janeiro de 2011
184 páginas
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