terça-feira, 22 de novembro de 2016

Um homem, um jogo, um mundo




Sob a capa de uma biografia que será de particular interesse para os adeptos Benfiquistas está um extraordinário relato dos efeitos de algumas das mais importantes convulsões do século XX e das transformações que levaram o futebol à maturação actual.
As suas "transferências" - as circunstâncias daquele tempo tornam a aplicação de tal termo muito errónea - enquanto jogador ora acompanham ora antecipam os problemas que se vivam na Europa.
A sua partida de Budapeste para Viena foi, antes de mais, uma afirmação identitária, visto que o clube a que chegou, Hakoah, era um projecto desportivo judeu.
Além de se afastar do anti-semitismo húngaro, a possibilidade de se aproximar do profissionalismo tem o relevo da ascensão social a que aspiravam muitos dos operários que se transformavam em futebolistas e que tinham no interior do clube a única posição de contacto com as elites.
O projecto tinha também o objectivo de exaltar a cultura e unir o povo judaico, estivesse este em que parte do mundo fosse.
Daí que depois de uma digressão aos Estados Unidos da América Guttman por lá tenha ficado, mais um de entre os muitos jogadores da Europa central que por aquela altura aceitaram o apelo do outro lado do Atlântico.
O aproveitamento dos talentos equiparava o futebol de lá ao melhor que se jogava na Europa, o que não evitou que as dificuldades económicas acabassem por levar a que a sua significância desaparecesse durante décadas.
O próprio Guttman seria levado à falência pelo crash da bolsa de Nova iorque, precisamente a cidade onde ficara a jogar.
De ambos os problemas recuperou formando uma nova versão do Hakoah antes de regressar à versão original dessa associação judaica para acabar a carreira e transformar-se em treinador.
Já como tal vai para a Holanda, depois para a Áustria de onde foge aos Nazis para a Hungria, país onde começa a sua saga de conquistas logo abreviada pela necessidade de se esconder para sobreviver aos anos da II Guerra Mundial.
Um período devastador para a Europa do qual, compreensivelmente, o treinador nunca falou e que permanece maioritariamente vedado ao leitor apesar de uma breve indicação de Detlev Claussen na Cronologia que traça no final do livro.
A partir de 1947 torna-se parte do trio de treinadores que revoluciona o futebol a partir da Hungria, implementando conceitos que hoje parecem ser a norma depois de terem estado desaparecidos durante algumas décadas.
Tornar todos os jogadores capazes de ocupar as várias posições da táctica estabelecida sendo o mais significativo de entre eles.
A partir desse período perseguiu de forma mais assertiva a profissionalização que já defendera enquanto jogador. Para os seus pupilos e para si próprio.
Daí que na Hungria ou em Itália tenha abandonado os clubes quando outros - dirigentes ou mesmo jogadores como Puskás - interferiam no seu trabalho e, na sua opinião, desrespeitavam a profissão de treinador que ele estava a implementar como essencial.
Foi o próprio Puskás que o encaminhou para o seu próximo desafio depois da equipa deste se recusar regressar à Hungria sobre o domínio Soviético.
Guttman acabaria no Brasil transformando a irreverência dos jogadores do São Paulo numa aplicação profissional.
A imposição de regras rígidas sobre o comportamento dos jogadores fora dos treino é tão revolucionária como o aperfeiçoamento da táctica 4-2-4.
Se nem sempre os resultados do trabalho de Guttman foram imediatos nos clubes por onde passava, a sua influência é notória como força transformadora do futebol de uma dada região como o demonstra a vitória da selecção brasileira no Mundial de 1958.
Aquilo que se esperado de Pep Guardiola em Inglaterra, por exemplo, numa comparação que não é despropositada e a que se tem de voltar.
A sua chegada a Portugal e, sobretudo, a passagem do FC Porto ao SL Benfica torna possível a afirmação de Guttman como figura do futebol e, mais importante, do treinador como estando a par das estrelas dentro do campo.
Olhando para como a sua estratégia implicava uma intensidade e compromisso de todos os jogadores no momento de pressionar os adversários sem nunca deixar de afirmar o ataque e, inevitavelmente, o golo como o essencial do jogo.
O trabalho do treinador tornou-se visível e entendido como essencial para dotar os jogadores - alguns de menor valia - da capacidade para ganhar jogos como equipa, levando ao expoente máximo os verdadeiros talentos que a integravam.
Traçando uma linha pelos nomes que fizeram o "Futebol Total", reencontramos o corolário dessa exigência para com os jogadores em Guardiola.
Ele próprio que tem vindo a tornar compreensível o papel que o treinador tem no trabalho de uma equipa e que parece ter precisado de aprender no Barcelona a lição que Guttman sempre intuiu, que um mesmo treinador não consegue motivar os jogadores que tudo ganham senão por um número de épocas limitado.
A história de Béla Guttman não termina neste ponto mas tem nele o seu corolário. Os muitos "quase" que vêm depois são já a leitura de um declínio que torna a leitura um pouco mais dolorosa mas que se mostra o tipo de final devido para um livro assim.
Uma biografia que se lê como uma saga humana no coração de um confronto épico novo que se erigiu nos relvados.
Com Guttman bem no meio deles participando da constituição do futebol como viria a ser no futuro que ele pareceu entender muito antes dos restantes.
Se para os que gostam de futebol este é um livro fascinante, Detlev Claussen fá-lo ser em igual medida para quem não aprecia o desporto.
Conseguindo encontrar numa vida singular um traçado em que se lê parte da História do século XX, o autor vai mais longe espraiando a sua reflexão pelos acontecimentos externos ao futebol.
Para depois regressar com as consequências desses acontecimentos à realidade do desporto e à construção deste homem como figura admirável.


Béla Guttmann - Uma história mundial do futebol (Detlev Claussen)
Edições Paquiderme
Sem indicação da edição - 2015
160 páginas

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