sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Narração interveniente

O retrato de grande envergadura da política Europeia dos últimos cem anos pode ser traçada com uma trama no interior da Península Ibérica – com um saltinho a Paris.
Uma trama que muitas vezes passa por locais que estão longe de ser os mais fortemente assinalados no mapa. Tarragona, Beja ou, e sobretudo, Setúbal.
A cidade da autora é-lhe útil para construir uma base mais confortável para sustentar a construção do seu romance histórico, sendo em igual medida útil para demonstrar que as grandes ideias políticas podem ter repercussões mais interessantes em locais que podemos pensar serem de segunda linha.
Fica-se a conhecer Setúbal pela maneira como está escrita com tanto conhecimento e amor, dando ainda mais intensidade ao seu povo, sofredor, e aos personagens que vivem a saga do tempo que corre – sempre para os ultrapassar!
Este não é um romance histórico que usa os seus personagens para acrescentar melodrama à descrição de eventos excitantes por si mesmos.
Há um sentido crítico de quem olha a História como definição da identidade. Os acontecimentos transformam os personagens que estavam, precisamente, a tentar afectá-los.
O sentido crítico de Alice Brito, no entanto, não fala apenas aos personagens, também aos leitores que sentem que a narradora, a par da própria narrativa, trata de fazer julgamentos sobre os extremos políticos, sejam as diferentes modalidades de fascismo que se manifestarem na Península Ibérica ou as utopias de esquerda transformadas em pesadelos.
Abordando as facções ao longo de um século a autora faz ver como como os percalços que as ideologias causam e enfrentam das vidas vidas individuais estavam destinados a encaminhar a realidade até ao seu estado actual.
Como se o corrente e desapontante estado de coisas fosse um destino que alguém deveria ter conseguido prever. E como tal continua a ser verdade para o futuro próximo. A autora faz tudo isto com uma linguagem tão instigante quanto sedutora. Uma linguagem com gosto por jogos que não se intrometam na função essencial e que tem coragem de ser criativa com a forma como afirma a realidade de formas não habituais. Recorrendo, inclusive, ao calão como mais uma forma de enriquecimento da Língua.
Pela voz da sua narradora, Alice Brito intervém no livro e interage com o leitor. Fala das evidências da História e revolta-se com elas. Cola-se à credibilidade do linguajar dos personagens e eleva o texto às exigências do que merece ser Literatura.


O Dia em que Estaline Encontrou Picasso na Biblioteca (Alice Brito)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Abril de 2015
368 páginas

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